segunda-feira, 4 de março de 2013

O golpe virá do STF?

Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:

Nesse post, vamos comentar a entrevista concedida por Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a correspondentes estrangeiros no primeiro de março, cuja íntegra foi divulgada no sábado.

Em 1962, o jovem Wanderley Guilherme dos Santos escreveu um livro visionário intitulado Quem dará o golpe no Brasil? Dois anos depois, a pergunta do cientista político seria respondida pela realidade: o golpe foi dado por gorilas de farda e donos de jornal. Pois bem, 50 anos depois, a mesma dúvida ressurge. A resposta também é parecida, basta trocar a farda dos gorilas por togas e capas. Ambos – militares e juízes – são funcionários públicos. Ambos pertencem àqueles setores médios que jamais compreenderam exatamente porque cargas d’água a sua alta cultura, seus elevados valores morais, seu ilimitado senso de honra e dignidade valem o mesmo que o de qualquer peão-de-obra quando se trata de escolher nossos representantes políticos.

O fato de Joaquim Barbosa vir de baixo pode ter acentuado ainda mais este sentimento antipolítica que vemos crescer nele na proporção que aumenta seu poder. É revoltante, né? O sujeito estuda como um louco, faz imensos sacrifícios pessoais, renuncia ao lazer, às vezes até mesmo ao amor, à amizade, para superar suas dificuldades, engole tantos sapos, e ao cabo, quando se trata de escolher quem serão nossos condutores políticos, o seu voto tem o mesmo valor que o de um vagabundo que nunca se esforçou para vencer na vida?

Apesar da minha ironia, essa é uma questão profundamente discutida na ciência política. Embora o voto tenha o mesmo valor para todos, os desejos políticos são diferentes. Há, de fato, um voto preguiçoso, acrítico e até mesmo corrompível, e há votos intensamente utópicos, carregados de esperança e desejo. É o que faz com que algumas vitórias eleitorais sejam tremendamente festejadas, enquanto outras ensejam um silêncio melancólico.

A democracia representativa, enfim, enfrenta inúmeras contradições. Os estudos acadêmicos do tema, como se dá com todos os outros, tornaram-se ultraespecializados, bizantinos, cheios de fórmulas matemáticas, tabelas, correlações intertextuais infindáveis. Não os estou desmerecendo, era inevitável que isso ocorresse. A tendência de qualquer ciência é mergulhar em si mesma. O problema, no caso da democracia, é que ela não é apenas uma ciência, uma teoria. Ela é sobretudo uma prática, uma lei, um destino. E mesmo enquanto teoria, é uma teoria aberta, disposta a mudar a si mesma. O sistema democrático é essencialmente dinâmico. 

A principal instância democrática, o parlamento, tem como função exatamente o ajuste constante do sistema de leis que dão forma e consistência ao regime democrático. De maneira que é possível, sim, usando-se o próprio sistema democrático, destruir-lhe a essência. Por exemplo, se o legislativo encontrar subterfúgios para restringir a liberdade de expressão, se o STF julgar a decisão legal, e o Executivo não vetar, veremos a destruição (ou o início dela) dos valores democráticos dentro de um regime republicano. De certa forma, o nosso sistema de comunicação, concentrado em poucas famílias, é resultado exatamente de subterfúgios como esse.

Quando eu falo em golpe, não quer dizer que acredito na existência de condições políticas, hoje, para a deflagração de um golpe hondurenho, no qual mídia, elites, alta cúpula militar e STF se mancomunaram para derrubar o presidente e silenciá-lo politicamente. Mas o julgamento da Ação Penal 470 foi um ensaio, de qualquer forma.

Entretanto, a função da teoria democrática não é combater um golpe. Golpe se combate com armas, força física, revolução, e naturalmente um bom desempenho na batalha de opiniões. Guerras produzem situações radicalmente antidemocráticas. Tanto que todas democracias trazem, em suas Constituições, capítulos sobre estado de emergência e leis marciais, quando uma série de garantias são suspensas em nome da sobrevivência. Isso vem de longe. A república romana, sempre avessa a monarquia e aos perigos do absolutismo, entendia que, em períodos de guerra, não havia outro jeito se não permitir ao cônsul se tornar um ditador, embora em caráter rigorosamente temporário.

A teoria democrática não combate o golpe e sim a possibilidade de golpe. A sua razão de ser, toda a sua complicada estrutura de pesos e contrapesos, restrições de tempo de mandato, necessidade de eleições periódicas, instituições que se confrontam mutuamente, é justamente fechar todas as frestas por onde a brisa fétida do poder absoluto possa imiscuir-se. A mera possibilidade, portanto, de que uma corte suprema possa aplicar um golpe na democracia, evidentemente que mancomunada com setores políticos interessados (na mídia e em alguns partidos), através de chicanas apenas aparentemente amparadas na lei, como aconteceu durante o julgamento do mensalão, constitui uma brecha que precisa ser urgentemente fechada pelo regime democrático.

Não são ingênuas as vozes que se erguem contra um “golpe”. São as poderosas vozes do instinto popular, quase sempre à frente da sagacidade lenta e pesada de intelectuais, jornalistas e acadêmicos.

Por outro lado, devemos estar conscientes de que o conceito de “golpe” ou “golpismo” é um dos mais surrados e manipulados na história política nacional. Raymondo Faoro, em seu clássico Os Donos do Poder, aborda com certo humor a tendência de todos os grupos políticos de tacharem seus oponentes de golpistas; acusações que seriam imediatamente invertidas quando a oposição chegava ao poder. Ou seja, a mesma imprensa “golpista” de hoje, se chegasse ao poder através da eleição de um de seus candidatos (do PSDB) tornar-se-ia “chapa branca” e imediatamente passaria a acusar a blogosfera, hoje “governista”, de golpista.

Entretanto, se todos querem dar golpes uns nos outros, é preciso admitir que há setores mais propensos a soluções de força do que outros. No Brasil, a direita, o udenismo, a mídia, todas faces da mesma figura geométrica, são historicamente favoráveis a soluções não democráticas. No dia seguinte à entrevista de Joaquim Barbosa, por exemplo, o Estadão festejou as declarações do presidente do STF com um editorial onde se diz textualmente o seguinte:

A previsão de que os mandados de prisão dos mensaleiros condenados deverão ser expedidos até julho é auspiciosa porque o julgamento da Ação Penal 470, que mobilizou a opinião pública nacional, teve o dom de, em grande medida, restabelecer a confiança dos brasileiros em pelo menos um dos Três Poderes da República.

Ou seja, a “opinião pública nacional”, um eufemismo adorável do jornal para a opinião dos lordes da mídia, elegeu definitivamente o Judiciário, o único dos três poderes que não é regido pelo sufrágio universal, como o único de sua confiança.

O presidente do STF, por sua vez, nessa entrevista a correspondentes estrangeiros (que deveria ser transformada num pequeno opúsculo intitulado ”O pensamento vivo de Joaquim Barbosa”), faz uma série de considerações políticas tão francamente hostis à democracia e ao próprio Brasil, que não caberia sequer na boca de um oposicionista, e sim na de lamentável traidor da pátria. Joaquim Barbosa daria um ótimo blogueiro… cubano.

Todos nós sabemos dos terríveis obstáculos que ainda temos que enfrentar, mas é profundamente lamentável que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) convoque correspondentes dos principais jornais do mundo para expô-los de maneira vulgar, sem uma visão compreensiva do nosso momento histórico. Sim, o nosso sistema prisional é caótico e absurdo, mas cumpre a um presidente do STF apontar as soluções que lhe cabem como autoridade e portanto co-responsável por estes problemas, e não enxovalhar seu país na frente de repórteres internacionais. 

Barbosa esqueceu que até alguns anos o Brasil tinha uma inflação de quase mil por cento ao ano, mais de 50 milhões de miseráveis, analfabetismo beirando os 15% da população, mortalidade infantil insuportável, finanças públicas estouradas, dívida externa impagável, com juros escorchantes, etc, etc, e coroando tudo isso um Jornal Nacional sendo assistindo por 80% dos lares, ou seja, vivendo o auge do monopólio midiático? Mais ainda, esqueceu Barbosa a imaturidade da nossa democracia? Não imagina ele que todos esses problemas apontados por ele descendem diretamente desse histórico? A troco de que transmitir à imprensa internacional a imagem de um país desorganizado? A quem interessa isso?

Vejamos algumas passagens do discurso de Joaquim Barbosa:

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[Ao ser perguntado sobre a razão de sua "popularidade" e de apontarem-no como possível candidato.] Eu acho, a minha opinião pessoal, é que é um fenômeno que está ocorrendo em outros países, certamente. A sociedade está cansada dos políticos tradicionais, dos políticos profissionais. Essa é a leitura que eu faço.

Podia definir o que é um político profissional?

Barbosa – É muito simples: nós temos parlamentares aí que estão há 30, 40 anos no Congresso ininterruptamente. E aqui ninguém jamais pensou em estabelecerturn limits.


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A acusação de Barbosa aos políticos foi ridicularizada imediatamente por diversos parlamentares, pois parte de um ministro do STF cujo mandato é VITALÍCIO. Os políticos, para se reelegerem diversas vezes, têm de atravessar desgastantes processos eleitorais. Se há um problema a ser apontado, é o controle da mídia por forças políticas locais, este sim um fator de desequilíbrio na democracia. Vários parlamentares também lembraram de figuras honradas, algumas até santificadas pela mídia, que tiveram inúmeros mandatos, como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves.

As supostas “acusações” de Barbosa ao sistema político brasileiro são deselegantes, contraditórias, e numa entrevista a repórteres de países ricos, cheiram a viralatice. A possibilidade de reeleição ilimitada de um parlamentar é uma garantia constitucional. Como frequentador de botequim, Barbosa tem o direito de expor a opinião que desejar, mas não é válido usar os recintos públicos do STF, nem o cargo, que lhe foi garantido pelo mesmo Parlamento que tão deselegantemente enxovalha, para preferir impropriedades sobre o nosso país. Não há nenhum estudo que prove, peremptoriamente, que “turn limits” melhorem a democracia. Ao contrário, uma restrição desse tipo, embora aparentemente traga dificuldades para a manutenção de “coronéis políticos”, também poderia prejudicar jovens lideranças populares.

Outras afirmações de Barbosa mostram uma visão estranha, quase messiânica de sua função no STF:

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Então não é uma corte de justiça comum, é um órgão político no significado essencial da palavra, de igual para igual com o Congresso Nacional e a Presidência da República. É isso que muita gente não entende, sobretudo os europeus.

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Porque os europeus não entendem, hein? Por que na democracia europeia, o STF tem a humildade fundamental de entender que é o único dos poderes que não passa pelo crivo popular. Na Constituição Inglesa, por exemplo, citada por Montesquieu, e por Alexander Hamilton em O Federalist, como a Ilíada dos sistemas democráticos, a decisão suprema última é sempre do Parlamento. E nos EUA, onde temos uma Suprema Corte poderosa, há todavia um sistema de mídia infinitamente mais plural (e ainda sim não suficientemente), garantindo a circulação das pressões sociais de maneira bem mais democrática e, portanto, mais segura.

Barbosa fez ainda críticas generalizantes, confusas, quase mesquinhas, sobre o próprio judiciário, que foram respondidas pelas próprias associações de magistrados, em nota duríssima.

Alguns lembraram de Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que também fez declarações agressivas contra setores corruptos do Judiciário, ao mencionar os “bandidos de toga”. Acontece que Eliana era corregedora, e de qualquer forma, suas declarações também foram deselegantes e populistas. É melhor agir do que falar. Assim deveria agir Barbosa, como presidente do CNJ que é. Agir para ajudar a resolver, ao invés de correr para expor nossas chagas para uma imprensa internacional ávida por notícias ruins do Brasil que aliviem problemas em seus próprios países.

O presidente do STF parece não entender a diferença entre o Judiciário e o Ministério Público, e faz uma interpretação odiosamente populista das proteções constitucionais a que tem direitos os réus no Brasil. É válido apontar os exageros da lei e denunciar os recursos infinitos que os réus dotados de bons advogados podem usar para adiar indefinidamente sua punição. Mas um presidente do STF deveria ter o mínimo cuidado para separar essa crítica da visão demagógica e popularesca da função da justiça, como se fosse melhor que retrocedêssemos a algum regime bárbaro, onde o juiz podia condenar quem lhe desse na telha, justa ou injustamente, independente da “irritante burocracia” dos regimes democráticos. Nos EUA, com sua longa cinematografia judiciária, quantos filmes não vimos em que assassinos são absolvidos porque faltam provas? Ora, isso não implica exatamente em falha da lei. Ao contrário, é prova de que os tribunais são rigososos, e a falha é antes da polícia. O problema da impunidade no Brasil, conforme bem apontaram as associações, é a falta de profissionalismo das nossas polícias. O que pensa Barbosa, que os juizes deveriam fazer justiça com as próprias mãos?

O pior é que Barbosa usa deliberadamente esta confusão, e ainda citando o lamentável exemplo do julgamento da Ação Penal 470, para condenar genericamente a atividade política. A entrevista conclui com um toque assustador:

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Jornalista – O senhor acha que o mensalão realmente mudou esse equilíbrio?

Barbosa – Sinaliza pelo menos. Sinaliza, tenho certeza que muitos juízes aí pelos estados se sentiram muito mais encorajados e incentivados a tomar decisões que até então não tomavam.


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Se os juízes, segundo o próprio Barbosa, “prevaricam”, então podem usar a liberdade de ação concedida pelo exemplo do Supremo para condenarem arbitrariamente (ou seja, a soldo de quem tem o poder de corromper) lideranças políticas em todo país. Some-se isso à Lei da Ficha Limpa, e teremos um Judiciário com poderes muito acima daqueles que a Constituição de 1988 previa, e muito acima do que a teoria democrática e o bom senso sugerem.

Há uma frase latina, que ninguém sabe muito bem de onde veio (me parece de inspiração gaulesa, em função do medo maior destes, de que o firmamento caísse sobre suas cabeças) nem o que significa exatamente, e que portanto é usada com liberdade por bons ou maus juízes: fiat justitia, ruat caelum. Que a justiça seja feita mesmo que os céus desabem. Esperemos que a Justiça brasileira tenha o bom senso de não permitir que o céu da nossa democracia se espatife sobre nosso futuro. Por enquanto, prefiro me agarrar a uma das falas finais de Marlow, protagonista de No Coração das Trevas, de Conrad: “Os céus não desabam por qualquer ninharia”.

3 comentários:

RLocatelli Digital disse...

Excelente análise da fala medíocre e viralata do joaquim batman. Ele encarna todas as idiossincrasias de nossa elite: é um linchador, tem vergonha do Brasil e tem ódio à democracia.

Luis disse...

Ninharia, fechou bem, esse pateta recalcado não vale a ninharia que lhe pagamos.

Sergio Uliano disse...

Joaquim Barbosa vê o povo brasileiro com os olhos dos colonizadores.