Por Marília Moschklovich, no sítio Outras Palavras:
Certo dia, pula pra mim um anúncio no Facebook: “Avalie os garotos de sua cidade”, ou qualquer coisa do tipo. A identidade visual é toda trabalhada em roxo (cor-de-rosa não cola mais entre jovens e adolescentes, pelo jeito) e preto, com uma pegada moderninha. . O nome do aplicativo anunciado (vale um prêmio para a equipe de marketing) é “Lulu“.
“Lulu” evoca ela, aquela mesma, Luluzinha. Lembram dela? A personagem foi criada em 1935 por uma cartunista chamada Marjorie Buell, que continuou a comandar o Lulu-business mesmo depois de 1945, quando John Stanley assumiu roteiros e desenhos dos gibis individuais. Ao contrário do que possa parecer, contrariando a trajetória comum de tantas personagens femininas, Luluzinha não nasceu como coadjuvante de seu “oposto-semelhante” Bolinha. Lulu foi protagonista desde sempre.
“Luluzinha”, assim como o “Clube da Luluzinha” são sinônimos de grupos exclusivamente femininos, que em geral têm um tom forte de empoderamento numa sociedade machista. Não seria, então, uma contradição, que o aplicativo chamado Lulu reproduzisse justamente um comportamento tão criticado pelas feministas em grupos de homens – avaliar e rankear as mulheres segundo critérios autoritários do grupo? As mulheres no Lulu não estariam fazendo o mesmo que reclamam que os homens fazem com elas todos os dias? Me parece que não.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar, de novo, que o machismo e a opressão de gênero são estruturais em nossa sociedade (escrevi sobre isso aqui, de levinho). Isso significa que não dependem de ações individuais isoladas para existir. Somos todos socializados com uma maneira de pensar e ver o mundo que reproduz um esquema de dominação. Nenhum homem é isoladamente responsável pelo machismo estrutural, nem nenhuma mulher. Por isso é tão complicado combatê-lo.
Em segundo lugar, devemos ter em mente sempre, quando se trata de qualquer tipo de opressão, o conceito de “falsa simetria”. A falsa simetria é quando, querendo tratar tudo com “igualdade”, nós fingimos que a desigualdade de poder não existe. Por exemplo, a ideia de que precisaríamos ter um “Dia Internacional do Homem” porque existe o 8 de Março, é uma falsa simetria (assim como a falácia de que deveríamos ter “dia da consciência branca” e outras barbaridades e bobagens que escutamos e lemos por aí). Especialmente quando se trata de opressões estruturais, as desigualdades não podem ser ignoradas. Uma pergunta clássica e boba para ilustrar esse conceito, de falsa simetria: você avaliaria, numa prova de português, da mesma maneira uma criança japonesa que acaba de chegar ao Brasil e uma criança que já nasceu falando e ouvindo português como língua materna? Então! Avaliá-las da mesma maneira seria estabelecer uma falsa simetria. Quem sabe um dia eu escrevo um textão só sobre isso. Mas não agora.
Pois então, dado o machismo estrutural, é uma falsa simetria equiparar um aplicativo como o Lulu com as avaliações e rankeamentos constantes feitos sobre mulheres dentro e fora de redes sociais e gadgets. Nós, mulheres, somos avaliadas pela maneira como nos comportamos (sobretudo sexualmente) o tempo todo. Inclusive em questões como nossas carreiras. Somos avaliadas pela nossa aparência, inclusive como forma de medirem nossa competência. Esses são dois dos muitos critérios pelos quais somos constantemente julgadas – e não só em relacionamentos, ficadas e afins.
Ao que tudo indica, o tal Lulu é um espaço em que mulheres podem, se assim desejarem, compartilhar umas com as outras suas impressões sobre ficadas e rolos com certos caras. Podem também comentar sobre amigos. O algoritmo do aplicativo atribui, ele mesmo, as notas com base em perguntas (veja aqui como funciona). Isso não é, nem de longe, mais machista ou tão problemático quanto o julgamento ferrenho, constante e ostensivo que se faz sobre as mulheres todas, todos os dias (e que inclusive faz com que muitas tirem a própria vida, sofram violências diversas, etc).
O principal problema do aplicativo, ninguém parece ter notado: ele atrela, à identidade de gênero “mulher” a atração sexual por “homens”. Sem nem entrar na questão sobre identidades que fogem a esse binarismo, não parece a vocês um tanto quanto heteronormativo? Não invisibiliza as lésbicas e bissexuais, essa categoria tão numerosa de mulheres que todos os dias fingimos não existirem? Outro ponto questionável do Lulu, indo ainda mais longe: não seria também um machismo pressupor, como as perguntas do aplicativo pressupõem, que as mulheres heterossexuais se interessam apenas por questões emocionais, relações e coisas do tipo, em vez de falar direta e claramente em compatibilidade e desempenho sexual? Me parece que sim.
De qualquer maneira, há clubes e clubes de luluzinhas, com ou sem a existência do aplicativo, que compartilhavam, compartilham e compartilharão impressões sobre rolos, trepadas, ficadas e flertes, de maneira mais ou menos sexualmente explícita. A diferença é que esses clubes simplesmente não têm o poder de impedir que os homens cheguem a posições de poder político, ganhem os melhores salários, concentrem poder econômico, sejam assediados nas ruas, troquem de roupa ao saírem de casa com receio do que possam dizer (ou do que possa acontecer, assumindo que a culpa de qualquer coisa seja mesmo sua). Avaliar e rankear os homens com quem ficamos não faz com que 15 deles sejam assassinados por dia, nem com que 5 homens sejam estuprados a cada hora.
Então, não. Não é a mesma coisa!
Certo dia, pula pra mim um anúncio no Facebook: “Avalie os garotos de sua cidade”, ou qualquer coisa do tipo. A identidade visual é toda trabalhada em roxo (cor-de-rosa não cola mais entre jovens e adolescentes, pelo jeito) e preto, com uma pegada moderninha. . O nome do aplicativo anunciado (vale um prêmio para a equipe de marketing) é “Lulu“.
“Lulu” evoca ela, aquela mesma, Luluzinha. Lembram dela? A personagem foi criada em 1935 por uma cartunista chamada Marjorie Buell, que continuou a comandar o Lulu-business mesmo depois de 1945, quando John Stanley assumiu roteiros e desenhos dos gibis individuais. Ao contrário do que possa parecer, contrariando a trajetória comum de tantas personagens femininas, Luluzinha não nasceu como coadjuvante de seu “oposto-semelhante” Bolinha. Lulu foi protagonista desde sempre.
“Luluzinha”, assim como o “Clube da Luluzinha” são sinônimos de grupos exclusivamente femininos, que em geral têm um tom forte de empoderamento numa sociedade machista. Não seria, então, uma contradição, que o aplicativo chamado Lulu reproduzisse justamente um comportamento tão criticado pelas feministas em grupos de homens – avaliar e rankear as mulheres segundo critérios autoritários do grupo? As mulheres no Lulu não estariam fazendo o mesmo que reclamam que os homens fazem com elas todos os dias? Me parece que não.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar, de novo, que o machismo e a opressão de gênero são estruturais em nossa sociedade (escrevi sobre isso aqui, de levinho). Isso significa que não dependem de ações individuais isoladas para existir. Somos todos socializados com uma maneira de pensar e ver o mundo que reproduz um esquema de dominação. Nenhum homem é isoladamente responsável pelo machismo estrutural, nem nenhuma mulher. Por isso é tão complicado combatê-lo.
Em segundo lugar, devemos ter em mente sempre, quando se trata de qualquer tipo de opressão, o conceito de “falsa simetria”. A falsa simetria é quando, querendo tratar tudo com “igualdade”, nós fingimos que a desigualdade de poder não existe. Por exemplo, a ideia de que precisaríamos ter um “Dia Internacional do Homem” porque existe o 8 de Março, é uma falsa simetria (assim como a falácia de que deveríamos ter “dia da consciência branca” e outras barbaridades e bobagens que escutamos e lemos por aí). Especialmente quando se trata de opressões estruturais, as desigualdades não podem ser ignoradas. Uma pergunta clássica e boba para ilustrar esse conceito, de falsa simetria: você avaliaria, numa prova de português, da mesma maneira uma criança japonesa que acaba de chegar ao Brasil e uma criança que já nasceu falando e ouvindo português como língua materna? Então! Avaliá-las da mesma maneira seria estabelecer uma falsa simetria. Quem sabe um dia eu escrevo um textão só sobre isso. Mas não agora.
Pois então, dado o machismo estrutural, é uma falsa simetria equiparar um aplicativo como o Lulu com as avaliações e rankeamentos constantes feitos sobre mulheres dentro e fora de redes sociais e gadgets. Nós, mulheres, somos avaliadas pela maneira como nos comportamos (sobretudo sexualmente) o tempo todo. Inclusive em questões como nossas carreiras. Somos avaliadas pela nossa aparência, inclusive como forma de medirem nossa competência. Esses são dois dos muitos critérios pelos quais somos constantemente julgadas – e não só em relacionamentos, ficadas e afins.
Ao que tudo indica, o tal Lulu é um espaço em que mulheres podem, se assim desejarem, compartilhar umas com as outras suas impressões sobre ficadas e rolos com certos caras. Podem também comentar sobre amigos. O algoritmo do aplicativo atribui, ele mesmo, as notas com base em perguntas (veja aqui como funciona). Isso não é, nem de longe, mais machista ou tão problemático quanto o julgamento ferrenho, constante e ostensivo que se faz sobre as mulheres todas, todos os dias (e que inclusive faz com que muitas tirem a própria vida, sofram violências diversas, etc).
O principal problema do aplicativo, ninguém parece ter notado: ele atrela, à identidade de gênero “mulher” a atração sexual por “homens”. Sem nem entrar na questão sobre identidades que fogem a esse binarismo, não parece a vocês um tanto quanto heteronormativo? Não invisibiliza as lésbicas e bissexuais, essa categoria tão numerosa de mulheres que todos os dias fingimos não existirem? Outro ponto questionável do Lulu, indo ainda mais longe: não seria também um machismo pressupor, como as perguntas do aplicativo pressupõem, que as mulheres heterossexuais se interessam apenas por questões emocionais, relações e coisas do tipo, em vez de falar direta e claramente em compatibilidade e desempenho sexual? Me parece que sim.
De qualquer maneira, há clubes e clubes de luluzinhas, com ou sem a existência do aplicativo, que compartilhavam, compartilham e compartilharão impressões sobre rolos, trepadas, ficadas e flertes, de maneira mais ou menos sexualmente explícita. A diferença é que esses clubes simplesmente não têm o poder de impedir que os homens cheguem a posições de poder político, ganhem os melhores salários, concentrem poder econômico, sejam assediados nas ruas, troquem de roupa ao saírem de casa com receio do que possam dizer (ou do que possa acontecer, assumindo que a culpa de qualquer coisa seja mesmo sua). Avaliar e rankear os homens com quem ficamos não faz com que 15 deles sejam assassinados por dia, nem com que 5 homens sejam estuprados a cada hora.
Então, não. Não é a mesma coisa!
1 comentários:
Não sou socióloga, por isso, respeito a opinião da autora do artigo.
Não resta dúvida de que vivemos em um mundo estruturalmente machista, como ela mencionou.
Pelo pouco que li sobre o "Lulu", tive a impressão de que não passa de um "combate" infantil, bobo; e que, ao invés de quebrar o monopólio dos machões, ele reforça um outro monopólio, o financeiro.
Posso estar falando besteira, mas acredito que por trás deste aplicativo, há um poder econômico.
Dentro das devidas proporções e cuidados, acho entediante ouvir alguns discursos, como: nenhum homem presta, toda mulher é
vadia, e por aí vai...
Elisa
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