quarta-feira, 12 de março de 2014

A realidade da crise venezuelana

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Por Max Altman, na revista Teoria e Debate:

Passado um mês dos protestos insuflados e comandados por Leopoldo López e María Corina Machado, do partido de extrema direita Voluntad Popular, sob o lema “La Salida”, ou seja, a deposição do governo Maduro, como se apresenta o cenário venezuelano, não aquele estampado nos meios de comunicação internacionais, e sim o que mostra a realidade?

As ações se tornaram mais violentas e menos expressivas, resumindo-se praticamente à formação de guarimbas – obstáculos de entulhos, galhos de árvore, pneus etc. que impedem a livre circulação de pessoas e veículos – e estão localizadas em municípios de classe média alta, governados por prefeitos da oposição, em Caracas e em estados como Miranda, Táchira, Mérida, Carabobo, entre poucos outros. Não se registrou nenhum protesto com essa ou outra característica em bairros populares de Caracas ou em setores populares de municípios importantes país afora.

Circunscritas a setores radicais da classe alta, que se valem de reiterados atos de vandalismo contra pessoas e bens, as ações não conseguiram, sequer minimamente, alcançar setores populares, associações de trabalhadores da cidade e do campo, organizações sociais. Há duas semanas uma manifestação de operários petroleiros da PDVSA, que foram levar o contrato coletivo de trabalho ao Palácio Miraflores para o presidente Maduro também assinar, reuniu dezenas de milhares de trabalhadores, além de cerca de 30 mil populares.

Os setores radicais fascistas abandonaram a consigna “La Salida”, que visava derrubar o governo Maduro, e a eles resta acusar o governo de responsável pelas mortes, prisões e torturas. Capriles, embora ainda se movimente no sentido de preservar sua liderança na oposição, dissente abertamente de Leopoldo López e Corina Machado, mas acaba de ser vaiado por manifestantes em ato público convocado pela oposição. Deputados dos partidos que compõem a Mesa da Unidade se desligaram da coalizão, criticando-a por não comparecer à Conferência Nacional de Paz convocada por Maduro. A moção dos Estados Unidos de intervenção na Venezuela, apoiada pelo Canadá e apresentada pela mão peluda do Panamá ao pleno da OEA, sofreu histórica derrota por 29 a 3.

A unidade cívico-militar se mantém coesa e firme. Não se tem notícia de qualquer fissura nas forças armadas. O desfile militar de 5 de março em homenagem a Hugo Chávez no primeiro ano de sua morte, diante de dezenas de milhares de assistentes, foi marcado pelas palavras de seu comandante de fidelidade à Constituição, à Revolução Bolivariana, ao socialismo e ao legado de Chávez. De resto, o comandante estratégico operacional da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB), general Vladimir Padrino, em comunicado oficial datado de 6 de março, ratificou que a instituição militar do país não se prestará para a barbárie, nem para golpes de Estado, nem para violentar a vontade popular. E que a FANB obedece a princípios e valores, respeitosa dos direitos humanos, e age nos estritos termos da Constituição da República Bolivariana da Venezuela.

Nesse mesmo comunicado repudiou as acusações de “repressiva” e “violenta” que lhe foram feitas por “setores da direita nacional e grupos vandálicos que semeiam o terror em alguns municípios” e insistiu: “Exijo respeito aos nossos soldados, empenhados em devolver ao povo sua tranquilidade, nosso mais apreciado tesouro como nação”. Por fim, observou: “A campanha mediática empreendida contra a FANB é uma batalha entre o bem e o mal, entre a verdade e a mentira, e os soldados bolivarianos vamos, junto a Deus, abrindo caminho de liberdade, independência e progresso para construir a pátria de Bolívar e Chávez. As ações violentas que cerceiam os direitos fundamentais da sociedade buscam que se rompa o fio constitucional e buscam desesperadamente um ponto de inflexão na FANB”. Em vão.

As ações de vandalismo e assassinatos ocorridos nas últimas semanas são de responsabilidade de pequenos grupos de oposição que, desrespeitando a vontade popular expressada nas urnas, apostam na violência para criar um ambiente de descontentamento na sociedade. Essa minoria, porém, terminou por deixar a totalidade da oposição numa posição muito grave por revelar o caráter violento da direita. O governo da Venezuela tem todo o direito de defender sua soberania e independência contra as ações perpetradas por grupos vandálicos que impedem os cidadãos de gozar de suas liberdades.

São assombrosas a desinformação, a distorção e as mentiras da grande imprensa em todo o mundo, que se presta a apresentar o ódio, o vandalismo e a morte como oposição a um governo e atribui os 21 óbitos ocorridos até o presente à repressão de militares e policiais. Quatro dessas mortes são de responsabilidade do Serviço Bolivariano de Inteligência, cujos agentes desrespeitaram ordens superiores, foram identificados e estão presos. Entre as demais vítimas, três motociclistas foram degolados por arame farpado estendido poste a poste pelos guarimberos quando transitavam em seus veículos; dois motoristas foram arremessados de carros que se chocaram com a guarimba; uma pessoa despencou de um mezanino; um trabalhador, irmão de um deputado do PSUV, foi fuzilado quando limpava uma guarimba; duas pessoas foram fuziladas por franco-atiradores postados no alto de edifícios; e por aí vai. Tudo isso ocorreu em bairros de classe média alta simpáticos à oposição. Como pode a mídia, fazendo eco ou não à oposição, atribuir essas mortes às forças do governo, quando o Ministério Público está examinando um a um os casos. Os poderes públicos agem em relação aos atos de violência na conformidade com a Constituição e as leis, exatamente como ocorre em outros países democráticos.

Além de a mídia internacional publicar fotos de repressão policial ocorrida em outros países como se tivesse sido na Venezuela, relato sucintamente até que ponto a mídia venezuelana, porta-voz da direita, se comporta.

A televisão acabava de transmitir outra notícia estarrecedora: havia sido assassinado com um tiro nas costas um sargento da Guarda Nacional que estava levantando os escombros da guarimba e liberando a via para que a comunidade pudesse ter vida normal. Isso ocorreu em Los Ruices, município de Chacao, no estado de Miranda, governado por Henrique Capriles. O primeiro que lançou uma versão falsa foi um jornalista do diário El Universal, Deivis Ramírez. Segundo ele, havia um grupo de motociclistas chavistas e a Guarda Nacional chegou e, supostamente, matou o mototaxista. Em seguida, outro mototaxista matou o guarda. Há de se ter uma mente bem perversa e suja para lançar tal versão, quando se comprova com testemunhas oculares, vídeos e fotos que tanto o mototaxista como o sargento foram mortos por tiros que partiram de um dos edifícios. E foi publicado com destaque em El Universal, na edição de 7 de março.

Um dos episódios marcantes dessas semanas foi a expulsão, por ingerência, de três diplomatas norte-americanos. O histórico de violação pelos Estados Unidos da soberania de países ao redor do mundo é notória e documentada. Baseia-se na doutrina datada de 1845 do Destino Manifesto, uma filosofia que expressa a crença de que o povo dos Estados Unidos foi eleito por Deus para comandar o mundo, sendo o expansionismo geopolítico norte-americano apenas uma expressão da vontade divina.

Para derrocar governos que não aderem a suas políticas imperialistas, os Estados Unidos executam, em vários países, um padrão que consiste em desmoralizar o adversário, distanciando-o da população; sugerir que o governo não pode governar de maneira eficaz; dividir a população; negar legitimidade ao governo; e, valendo-se dos meios de comunicação, da propaganda, de boicotes e sabotagens, gerar um levante que derrube o presidente em questão. Como os golpes de Estado com intervenção militar estão fora de moda, a Casa Branca, o Departamento de Estado e a CIA abraçaram a doutrina do “golpe brando”, exposta no ensaio intitulado Da Ditadura à Democracia, de autoria de Gene Sharp, da Instituição Albert Einstein, que descreve 198 métodos para derrocar governos mediante “golpes suaves” e expõe a estratégia dos cinco passos para sua execução.

A primeira etapa é promover ações não violentas para gerar um clima de mal-estar na sociedade, destacando-se entre elas, ainda que caluniosas, denúncias de corrupção, promoção de intrigas ou divulgação de falsos rumores. A segunda consiste em desenvolver intensas campanhas de “defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos, acompanhadas de acusações de tirania e totalitarismo contra o governo no poder. A terceira centra-se na luta ativa por reivindicações políticas e sociais e na manipulação do coletivo para que empreenda manifestações e protestos violentos, ameaçando as instituições. A quarta etapa passa por executar operações de guerra psicológica e desestabilização do governo, criando um clima de “ingovernabilidade”. A quinta e última tem por objetivo forçar a renúncia do presidente, mediante revoltas de rua, para controlar as instituições, enquanto se mantém a pressão na rua. Paralelamente, prepara-se o terreno para uma intervenção militar, enquanto se desenvolve uma batalha interna (ou uma guerra civil) prolongada para conseguir o isolamento internacional do país.

Em novembro de 2013, o presidente Maduro, consciente do que se tramava, afirmou que setores da oposição, com financiamento dos Estados Unidos e respaldo da elite empresarial e dos meios de comunicação, com apoio logístico da CIA, planejavam um golpe brando, estratégia que se implementou ativamente na Venezuela.

Recordemos um pouco da história recente. Em outubro de 2012, Chávez, já bastante doente, não podendo percorrer o país na campanha, ganha de Capriles, que visitou estado por estado, por 11 pontos percentuais de diferença. Em 8 de dezembro, Chávez anuncia Maduro como o candidato da Revolução caso algo lhe ocorresse. Chega à fase terminal de sua doença deixando Maduro como presidente interino. A oposição, vislumbrando a morte de Chávez e a possibilidade de empalmar o poder numa primeira eleição sem sua presença, desata uma impiedosa campanha na base do “Maduro não é Chávez”. Maduro ganha as eleições de abril de 2013 por estreita margem. Capriles não reconhece o resultado, alega fraude e passa a considerá-lo um presidente ilegítimo.

A campanha de desqualificação de Maduro e de seus ministros, sempre apoiada pela grande mídia local e internacional, prossegue meses afora. Somam-se então uma guerra psicológica e uma intensa sabotagem econômica, com alta inescrupulosa de preços, desabastecimento, açambarcamento, visando ao caos e à desestabilização do governo. As eleições municipais marcadas para 8 de dezembro passam a ser consideradas pela oposição como um plebiscito.

Capriles percorre o país proclamando que se Maduro perder as eleições será o fim de seu governo. Contudo, Maduro ganha as eleições por margem de votos globais superior a 10%, com a conquista de 76% das prefeituras. Setores radicais da oposição se mostram inconformados. Se pela via constitucional não conseguem derrubar o presidente, que seja pela via insurrecional. Em 23 de janeiro, Leopoldo López e María Corina Machado chamam seus seguidores às ruas. Sob o lema “La Salida” pretendem derrocar o governo e, segundo um plano adrede e cuidadosamente preparado, soltam suas hordas fascistas.

Há uma campanha permanente para apresentar a Venezuela como um país no caos, governado por um tirano em plena ditadura, quando na verdade todas as liberdades estão garantidas e em pleno exercício. O que, sim, existe é um processo de reafirmação da nova independência, da construção de novos modelos econômicos e culturais, uma nova mentalidade que está se impondo. Chávez, ao longo de catorze anos, formou e educou uma forte consciência coletiva, política e ideológica. Mesmo diante de imensas dificuldades, o povo venezuelano é capaz de entender a situação, os interesses em jogo, e se mantém fiel no apoio à Revolução Bolivariana. Trata-se de uma revolução sui generis de caráter socialista. Seu êxito, segundo Washington, as oligarquias locais e internacionais e a direita em geral, consistiria num “mau exemplo” para as demais nações da região. E essa é a essência e o ponto fulcral de toda a problemática a deixar nítidas as posições dos lados em disputa.

Nicolás Maduro tem se mostrado um líder à altura dos acontecimentos. Firme, corajoso e também hábil. Vai à televisão, aos jornais, à Telesur, convoca atos públicos e no exercício da liberdade de expressão expõe com clareza e veemência seus pontos de vista sobre os mais variados temas. Não tarda nem vacila em fazê-lo toda vez que recebe injustas agressões ou que um acontecimento importante o obrigue a se manifestar. Mas também sabe o momento de conclamar à paz e à tranquilidade, atrair adversários, estabelecer diálogos e de conquistar o apoio da quase totalidade dos países da região em favor de sua luta.

Tudo leva a crer que uma vez mais, nesse tumultuado caminho percorrido pela Revolução Bolivariana nos últimos quinze anos, ela sai vitoriosa. Resta enfrentar e resolver problemas reais que angustiam a população e servem de caldo de cultura à reação: inflação, desabastecimento, segurança pública. E romper com a “maldição do petróleo”, levando o país a abandonar o tradicional rentismo, construir uma base industrial e garantir a segurança alimentar da população. Isso poderá exigir duras medidas no campo econômico e, por conseguinte, necessitará de um amplo leque de apoio, para além das forças chavistas.

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