quinta-feira, 29 de maio de 2014

Mudar para vencer, vencer para mudar

Por Wladimir Pomar, na revista Teoria e Debate:

Situação política previsível. A disputa eleitoral começou com a oposição ao PT e ao governo Dilma, a velha e a nova, pretendendo provar, com mistificações e generalidades, que o governo está falido e o Brasil necessita de “mudança”. “Mudança” se tornou o seu bordão. Por outro lado, um número considerável de petistas parece não entender que, para vencer esta disputa eleitoral, o partido está obrigado a brandir ainda com maior força justamente a bandeira das mudanças.

O PT não deve se amarrar às mudanças que realizou nem à continuidade do que vem fazendo. Tem de discutir, convencer, difundir, mobilizar, batalhar pelas novas mudanças que o Brasil necessita para se tornar um país desenvolvido no sentido econômico, social, ambiental, cultural, científico e político. O mudancismo é a principal arma da campanha Dilma. Só apresentando as novas mudanças o partido pode forçar os adversários a desnudar o retrocesso e o conservadorismo que escondem sob o bordão de “mudança”.

A oposição acusa o PT e Dilma de descontrole inflacionário. E propala que reduzirá a inflação para menos de 4% ao ano. Diante disso, alguns se contentam em lembrar que, em 2002, o PSDB entregou o país com uma inflação de 14%. Ou a explicar que os preços dos alimentos e bens de consumo subiram porque os pobres, beneficiados pelas políticas de crescimento, elevação dos salários e transferências de renda, passaram a comprar mais e a pressionar a oferta. Isso é verdade, mas não mostra o que o partido e Dilma pretendem fazer para resolver a situação.

Afinal, nos últimos doze anos a produção pouco acompanhou o aumento da demanda. Os economistas tucanos e assemelhados chamam esse descompasso entre oferta e demanda de “inflação de demanda”. Para eles, a única forma de combatê-la consiste em reduzir a demanda. Mas tentam esconder que “redução de demanda” significa frear o crescimento econômico, promover o desemprego, arrochar os salários e diminuir os investimentos públicos. Ou seja, baixar a inflação à custa do sofrimento dos excluídos, dos trabalhadores e da classe média. O que, aliás, fizeram nos oito anos em que estiveram no governo de FHC.

É possível, porém, baixar a inflação através de mais investimentos públicos e privados e maior produção, principalmente de alimentos e de bens de consumo corrente. Maior oferta pode atender ao crescimento da demanda e fazer com que os preços caiam. Por isso, oportuna e corretamente, em seu pronunciamento no 1º de Maio Dilma afirmou que baixará a inflação mantendo crescimento, empregos, salários e investimentos em saúde, educação, saneamento, moradias e mobilidade urbana.

Para tanto, precisará mudar o desequilíbrio dos investimentos agrícolas. Aqueles destinados a assistência técnica, plantio, tratos do cultivo, colheita, industrialização e comercialização dos produtores familiares, responsáveis por mais de 80% dos alimentos do país, terão de subir exponencialmente. Também é vital aumentar o número de produtores – isto é, realizar uma reforma agrária que aproveite as terras da União e as usadas como reserva de valor para assentar rapidamente os sem-terra existentes no país.

Essas mudanças, estritamente democrático-capitalistas, vão se chocar com o agronegócio, porque o impedirão de expandir suas áreas à custa das florestas e das terras produtoras de alimentos para o mercado doméstico. E a reação do grande capital agrário só pode ser vencida com ação firme do governo e mobilização social, principalmente dos trabalhadores e da classe média urbana e rural.

Mudanças idênticas precisam elevar a produção dos bens industriais. As pequenas e médias empresas do setor precisam elevar sua produtividade para competir com as corporações nacionais e estrangeiras que dominam a economia, e impõem ao mercado preços de monopólio. O monopólio cria um paradoxo: a maior procura por bens industriais ocorre simultaneamente à desindustrialização. E para transformar tal desindustrialização em reindustrialização será necessário fortalecer o papel de antigas e novas empresas estatais, modificar radicalmente os procedimentos dos investimentos externos e adotar medidas mais duras contra os monopólios, oligopólios e cartéis.

As estatais têm de atuar na criação e no fortalecimento de pequenas e médias empresas industriais nacionais para completar as lacunas das cadeias produtivas, combinado com ações que impeçam investimentos externos de curto prazo e, ao mesmo tempo, incentivem condicionalmente os investimentos externos diretos em infraestrutura e na produção industrial. Tais investimentos devem aportar altas e novas tecnologias à indústria nacional e se dirigirem a setores estratégicos, o que exige planejamento estatal mais específico.

Além disso, a legislação e a atuação contra os monopólios, oligopólios e cartéis precisam ser atualizadas e intensificadas. Sem isso, o país continuará sofrendo forte entrave a seu desenvolvimento científico e tecnológico e ao aumento da concorrência, teorizada mas não praticada pelo capitalismo brasileiro. Portanto, para reindustrializar-se o Brasil precisa aumentar a participação do Estado e de seus instrumentos econômicos para orientar os capitais nativos e externos de acordo com os interesses nacionais e reduzir o caos do mercado.

Mudanças sérias são demandadas também na saúde e na educação. A grande mídia difunde cotidianamente o “caos” nesses setores. Não diz que tal “caos” resulta da alta rentabilidade da iniciativa privada em ambas as áreas por serem financiadas, em grande parte, por recursos públicos. Em sentido contrário, a saúde e a educação públicas foram reduzidas a uma dimensão impossível de atender à imensa maioria da população, que não tem condições de pagar por esses serviços.

O “caos” atualmente presente só pode ser superado se o Estado mudar por completo sua forma de enfrentar o problema. Isto é, se parar de financiar o setor privado e voltar a investir pesadamente no público, a exemplo da experiência do Mais Médicos. Portanto, não basta dizer que esse caos foi herdado. É preciso tomar medidas efetivas para fazer o setor público reassumir seu papel e começar desde logo tal implementação, inclusive dando um basta à crescente desnacionalização desses setores.

O PT e o governo Dilma também são acusados de haver se tornado uma petralha. Isto é, um bando de corruptos que assalta o erário. Com isso, criou-se uma situação bizarra. Os governos Lula e Dilma colocaram a Polícia Federal para investigar crimes de colarinho branco, inclusive de corrupção, envolvendo corruptores e corruptos. E, em nenhum momento, orientaram a PF para tirar da linha de tiro das investigações membros do PT e de partidos aliados.

Diante da descoberta de petistas arrolados em negócios escusos, alguns militantes pensam defender o partido com uma explicação simplista: uma família não pode ser condenada por causa de parentes que se desvirtuaram. Isso até pode ser verdade. Do ponto de vista da disputa política, porém, esse argumento tem pouca eficácia. Ele deixa de lado o fato de o PT, apesar das concessões e conciliações que tenha feito ou venha a fazer, ser visto pela burguesia e seus representantes como um acidente ou incidente de percurso, que deve ser eliminado.

Para a burguesia e parte considerável da pequena-burguesia, o PT é o inimigo estratégico a ser destruído. Quem melhor expressou essa visão foi Marina Silva, exigindo extirpar o tumor do “chavismo petista” da vida brasileira. Em termos práticos, o partido, assim como qualquer governo que dirija, está colocado frente a um dilema. De um lado, se tornar “igual aos demais”, mudando sua natureza. Isto é, como fizeram os social-democratas europeus, rebaixando seu horizonte ao democratismo liberal e ao social desenvolvimentismo e abandonando qualquer pretensão de superar o capitalismo.

De outro lado, conservar sua natureza socialista, mesmo mitigada. Nesse caso, terá de suportar as desditas de ser “diferente de todos os demais”, o que manterá o partido da mídia e os demais inimigos do PT, mesmo em aliança momentânea com ele, tentando aproveitar-se de qualquer deslize, por menor que seja. Não apenas para enfraquecê-lo, mas principalmente para destruí-lo. Nesse contexto, as descobertas de corrupção, ao invés de creditadas à ação moralizante do governo dirigido pelo PT, serão sempre debitadas à ação da chamada petralha.

A recente ação do Supremo Tribunal do país, agindo como tribunal de exceção, sem nenhum pudor em atropelar a lei, apenas comprovou a utilização dos aparatos de poder nas mãos de representantes da burguesia para tentar alcançar o objetivo estratégico de desmontagem do PT. Nada muito diferente da ação atualmente voltada contra a Petrobras, a pretexto de “salvá-la”.

Isto é, um “salvamento” esquisito, tentado no momento em que a estatal está prestes a superar seus índices históricos de produção e dar uma contribuição decisiva para resolver os problemas na saúde e na educação. E no momento em que as regras lhe proporcionam mais condições para apoiar a reindustrialização do país, pois permitem à Petrobras ser operadora das áreas do pré-sal e exigem maior conteúdo nacional nos equipamentos. Ou seja, a velha e a nova oposição querem embaraçar a Petrobras justamente no momento em ela mais avançou e desagradou as petroleiras, em especial norte-americanas, que ficaram fora da exploração de Libra por apostar no fracasso do leilão.

Portanto, a velha e a nova oposição pretendem aproveitar a operação da Polícia Federal para inverter seu sentido. Em vez de trazer à luz as ações corruptoras de empreiteiras, e corruptas de um ex-diretor meliante, pretendem que se descubram as hipotéticas ações do PT e de Dilma para “destruir” a estatal. De criminosos que pelejaram por privatizar todas as estatais, pretendem se passar por seus defensores.

Diante dessa ofensiva, que tem no partido da mídia seu principal megafone, não basta ao PT falar do festival nebuloso de privatizações do demotucanato. Não basta denunciar que os adversários querem revogar o marco regulatório de compartilhamento na exploração do pré-sal e a política de conteúdo nacional. Nem basta pôr a nu os malfeitos de corruptores e corruptos de casos que correm na Justiça há anos, como os do senador Azeredo e do PSDB de Minas e dos trens do PSDB paulista.

Tudo isso deve ser feito. Mas, para passar à ofensiva, o PT precisa ir além. Tem de mudar os procedimentos em relação aos próprios membros. Precisa demonstrar à opinião pública que está decidido a ser incisivo com os seus. Por um lado, defender militantes quando há a certeza de que são vítimas de acusações infundadas, como é o caso de Guilherme Estrella, ex-diretor de exploração e produção da Petrobras. Por outro, suspender e investigar dirigentes e militantes envolvidos em ações duvidosas, inclusive de omissão. E, finalmente, condenar e expelir aqueles cuja transgressão dos princípios éticos do partido seja comprovada, como parece ser o caso recente de André Vargas.

A falta de firmeza nesses procedimentos parece haver criado um clima de desconfiança nos próprios petistas. Com exceção dos abnegados, a militância não tem mais a garra de vestir a camiseta vermelha do PT e sair à rua com ela. E, para grande parte da opinião pública, o partido já se tornou igual aos demais. Mesmo porque ele e o governo respondem mal às acusações sobre sua responsabilidade no aumento da violência urbana e do caos nos transportes e no saneamento básico. Incrivelmente, até deixaram que se disseminasse a ideia de que as obras da Copa e da Olimpíada foram apenas investimentos caros, sem benefício algum à população.

Os dirigentes e militantes petistas pouco fizeram também para enfrentar as resistências e levar avante a proposta de Assembleia Constituinte para a reforma política. Parecem ignorar que as mudanças não realizadas em doze anos de governo se devem ao fato de a atual ordem institucional ser uma barreira a elas. E parecem não ter aprendido que a conciliação sempre funcionou como freio ao avanço do país e como pretexto para manter a hegemonia das classes patrimonialmente dominantes.

Além disso, a militância petista parece ausente das lutas de classe que se avolumam e põem à mostra o retorno do peleguismo sindical. A ausência do PT nessas lutas deixa que algumas delas se misturem a atos de vandalismo e se choquem com os interesses de grandes massas da população. E permite a ação operativa da direita no sentido de concretizar a previsão do general Paulo Chagas: “Grandes tumultos, demonstrações de força, quebra-quebras, greves ilegais e tudo o mais que compõe o repertório destrutivo da esquerda radical”, caso as pesquisas indiquem uma possível derrota de Dilma na reeleição. A direita reacionária parece pretender repetir o Chile de 1974.

É verdade que ainda não existe uma correlação de forças políticas que permita subverter totalmente aquela hegemonia e que o uso da polícia para evitar os quebra-quebras promove o inverso. Mas isso não justifica a defensiva do PT nem a falta de esforço para uma mobilização social mais intensa e organizada. Mesmo porque, para impedir provocações e ter sucesso na pressão pelas mudanças estruturais no sistema político, o único antídoto conhecido é a luta organizada de milhões. Só essa luta e sua organização podem impor as mudanças que coíbam a participação do poder econômico nas eleições, modifiquem a distorcida representação proporcional no Parlamento e aumentem a participação popular no controle social do governo, do Legislativo e do Judiciário.

Por outro lado, só levantando com firmeza a bandeira das novas mudanças será possível mobilizar milhões, como no final dos anos 1970 e nos anos 1980. A continuar a ausência e o defensivismo do PT, este corre o risco de sucumbir à atual ofensiva da direita na disputa presidencial e nos rumos da sociedade brasileira. Só lhe resta, portanto, mudar, retomando seu caráter mudancista. A única continuidade que deve defender é a das mudanças. Sabendo desde logo que, se vencer, só pode seguir adiante lutando para introduzir as mudanças que o povo brasileiro necessita e reclama.

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