Por Murilo Cleto, no site Carta Maior:
Neste momento, não há quem não esteja intrigado com a desfaçatez de Eduardo Cunha ao driblar a Constituição pra conseguir aprovar a emenda que reduz a idade penal no Brasil de 18 para 16 anos. Quer dizer, há: mas somente aqueles que são radicalmente favoráveis a ela. Por outro lado, OAB e a parte derrotada do Congresso já anunciaram que vão recorrer ao Supremo para denunciar a reapresentação do texto, com apenas algumas pequenas alterações, menos de 24 horas após o primeiro resultado, que não havia atingido o número necessário de votos para sua aprovação.
A manobra é vedada pela carta magna, justamente porque, se possível, permitiria a sondagem antecipada de votos dissonantes no plenário - já que eles são públicos - e eventuais práticas coercitivas de convencimento para a virada pouco tempo depois.
Neste momento, são muitas as perguntas: como isso foi possível? Ninguém pode barrá-lo? O que explica o tamanho da aceitação de uma gambiarra com a maior referência legal do país?
Em Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, Christian Dunker oferece uma importante ferramenta pra desvendar esse embaraço. De acordo com o psicanalista, o modo de vida que proliferou no Brasil a partir dos anos 70 contribuiu significativamente para a dilatação do contrato social que nos rege, diante do reconhecimento de uma falência generalizada do espaço público.
É no interior dos muros dos condomínios que a vida que não funcionou lá fora pode dar certo. Verdade seja dita, este é um dos ingredientes da ascensão do neoliberalismo no Ocidente a partir de então, quando todos os aspectos da vida passaram a ser incorporados pelo mercado, inclusive a segurança e a felicidade. "Porque aqui é domingo todos os dias", seduz um dos anúncios de lotes à venda.
Entre "iguais", a sensação de segurança aumenta exponencialmente. Por "iguais", entenda-se: aqueles que podem pagar pelo conforto de uma vida paralela a comum, aquela perigosa do lado de lá do muro. Mas, segundo Dunker, o sonho do domingo repetido virou pesadelo. E é Freud quem explica: entre semelhantes, as pequenas diferenças se avolumam, produzindo o que ele chamou de "narcisismo das pequenas diferenças". Daí a sensação de que o contrato social precisa ser constantemente refeito, atendendo pequenos e insignificantes conflitos, potencializados, no entanto, pela igualdade de condição entre os diferentes.
É o que ajuda a explicar o crescente fenômeno dos justiçamentos, que aumentaram brutalmente nos últimos anos junto com a ideia de que o número de leis no país é insuficiente e só contribui para a insegurança. Com a proposta de redução da maioridade penal não é diferente: não resolve, em nenhum país resolveu, mas a medida funciona como uma espécie de morfina pro sofrimento daqueles que se contaminaram com a paranoia de que a delinquência juvenil é o retrato da impunidade no país.
Nas redes sociais, assim como houve no próprio Congresso durante a sessão que aprovou a emenda, Cunha é ovacionado como um líder corajoso que desafiou o PT e a bancada dos Direitos Humanos. Ainda que legalmente errado, está moralmente certo diante do imaginário popular e, neste caso, a Constituição é vista somente como uma barreira, um impasse, uma burocracia. Cunha reproduz aquilo que Christian Dunker aponta como uma tendência no Brasil entre muros: é preciso alguém que ande à margem da lei pra que a lei seja restabelecida. Está longe de ser aleatória a presença do personagem de Batman nos últimos protestos por intervenção militar no país.
Aconteceu há pouco com Joaquim Barbosa e se repete com Cunha a materialização de um sentimento que está nas ruas e que precisa ser compreendido pra que o estado de direito não se dissolva de vez. Mais do que a idade penal, o que está em jogo é a democracia e tudo o que de mais importante ela garante, inclusive o direito de comemorar a sua derrocada.
Neste momento, não há quem não esteja intrigado com a desfaçatez de Eduardo Cunha ao driblar a Constituição pra conseguir aprovar a emenda que reduz a idade penal no Brasil de 18 para 16 anos. Quer dizer, há: mas somente aqueles que são radicalmente favoráveis a ela. Por outro lado, OAB e a parte derrotada do Congresso já anunciaram que vão recorrer ao Supremo para denunciar a reapresentação do texto, com apenas algumas pequenas alterações, menos de 24 horas após o primeiro resultado, que não havia atingido o número necessário de votos para sua aprovação.
A manobra é vedada pela carta magna, justamente porque, se possível, permitiria a sondagem antecipada de votos dissonantes no plenário - já que eles são públicos - e eventuais práticas coercitivas de convencimento para a virada pouco tempo depois.
Neste momento, são muitas as perguntas: como isso foi possível? Ninguém pode barrá-lo? O que explica o tamanho da aceitação de uma gambiarra com a maior referência legal do país?
Em Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, Christian Dunker oferece uma importante ferramenta pra desvendar esse embaraço. De acordo com o psicanalista, o modo de vida que proliferou no Brasil a partir dos anos 70 contribuiu significativamente para a dilatação do contrato social que nos rege, diante do reconhecimento de uma falência generalizada do espaço público.
É no interior dos muros dos condomínios que a vida que não funcionou lá fora pode dar certo. Verdade seja dita, este é um dos ingredientes da ascensão do neoliberalismo no Ocidente a partir de então, quando todos os aspectos da vida passaram a ser incorporados pelo mercado, inclusive a segurança e a felicidade. "Porque aqui é domingo todos os dias", seduz um dos anúncios de lotes à venda.
Entre "iguais", a sensação de segurança aumenta exponencialmente. Por "iguais", entenda-se: aqueles que podem pagar pelo conforto de uma vida paralela a comum, aquela perigosa do lado de lá do muro. Mas, segundo Dunker, o sonho do domingo repetido virou pesadelo. E é Freud quem explica: entre semelhantes, as pequenas diferenças se avolumam, produzindo o que ele chamou de "narcisismo das pequenas diferenças". Daí a sensação de que o contrato social precisa ser constantemente refeito, atendendo pequenos e insignificantes conflitos, potencializados, no entanto, pela igualdade de condição entre os diferentes.
É o que ajuda a explicar o crescente fenômeno dos justiçamentos, que aumentaram brutalmente nos últimos anos junto com a ideia de que o número de leis no país é insuficiente e só contribui para a insegurança. Com a proposta de redução da maioridade penal não é diferente: não resolve, em nenhum país resolveu, mas a medida funciona como uma espécie de morfina pro sofrimento daqueles que se contaminaram com a paranoia de que a delinquência juvenil é o retrato da impunidade no país.
Nas redes sociais, assim como houve no próprio Congresso durante a sessão que aprovou a emenda, Cunha é ovacionado como um líder corajoso que desafiou o PT e a bancada dos Direitos Humanos. Ainda que legalmente errado, está moralmente certo diante do imaginário popular e, neste caso, a Constituição é vista somente como uma barreira, um impasse, uma burocracia. Cunha reproduz aquilo que Christian Dunker aponta como uma tendência no Brasil entre muros: é preciso alguém que ande à margem da lei pra que a lei seja restabelecida. Está longe de ser aleatória a presença do personagem de Batman nos últimos protestos por intervenção militar no país.
Aconteceu há pouco com Joaquim Barbosa e se repete com Cunha a materialização de um sentimento que está nas ruas e que precisa ser compreendido pra que o estado de direito não se dissolva de vez. Mais do que a idade penal, o que está em jogo é a democracia e tudo o que de mais importante ela garante, inclusive o direito de comemorar a sua derrocada.
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