segunda-feira, 11 de julho de 2016

A formatura que virou ato do "Fora Temer"

Por Conceição Lemes, no blog Viomundo:

Mossoró é a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte.

Desde 2005, abriga a Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), criada no primeiro governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Nas últimas três semanas seus estudantes protagonizaram dois momentos históricos.

O primeiro, em 22 de junho, na solenidade de colação de grau de vários cursos.

Os estudantes transformaram a maior formatura da história da universidade em ato pelo Fora Temer.

À estudante de Agronomia Maria Clara Dias coube a homenagem aos pais. Em discurso emocionante, ela reconheceu as conquistas sociais obtidas nos governos Lula e Dilma.

“Não iremos aceitar, em hipótese alguma, algum retrocesso desse governo golpista, só estamos aqui hoje graças a uma grande expansão universitária”, afirmou Maria Clara, imediatamente apoiada pela maioria dos colegas que gritava. “Fora Temer!”

Os dois vídeos [aqui], gravados de celular por ângulos diferentes, estão com baixa qualidade. O primeiro tem corte brusco no fim. O segundo contém a íntegra do discurso. Valem como registro histórico.

O segundo momento foi nesse sábado, 10 de julho. Na festa dos formandos de Direito, um novo “Fora Temer!”.

É a segunda turma de Direito a se formar lá.

Daniel Valença, professor deles no curso de Direito e na extensão popular da Ufersa, comemora:

“Para nós, essa formatura tem significado especial. É o resultado do esforço de uma geração - não só aqui, mas no País - por um curso de Direito voltado para os problemas concretos das pessoas, para a diversidade e a construção de uma sociedade mais humana”.

Explica-se. No curso de Direito, as atividades vão além da sala de aula.

Em 2010, nasceu lá o Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (Gedic), integrado por cinco professores e estudantes – a maioria de Direito, mas há de Agronomia, como Maria Clara Dias.

O grupo desenvolve pesquisas sobre direito à terra, diversidade e gênero, dívida pública e direitos sociais, constitucionalismo e processos políticos latino-americanos, etnia e negritude.

Também ações de educação popular e assessoria jurídica para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Associação de Catadores de Material Reciclável (Acrevi), grupo de mulheres e sindicatos rurais.

O grande diferencial desses alunos, segundo Valença, é que eles são da própria região, portanto se debruçarão sobre problemas que conhecem e vivenciam, como a questão da terra e a convivência com a seca no semiárido.

O próprio Gedic, por sua vez, é outro grande diferencial.

Nós conversamos com Pedro Brendo, formando de Direito, sobre essa experiência inovadora. Ele está na foto abaixo. É o primeiro da esquerda para a direita. Seguem-se Thariny Lira (de óculos) e a irmã Thaíssa, Ronaldo Maia e Najara Thayany. Com exceção de Thaíssa Lira, todos participantes do Gedic.


Como foi participar do Gedic?

O Gedic é um grupo de estudos em Direito crítico. A sua proposta é conhecer o Direito a partir da realidade social, não como algo distante e feito apenas em casas legislativas, mas enquanto resultado das disputas de classes.

Compreender essa “equação” permite entender como o Direito funciona dentro da sociedade enquanto instrumento constituído para a manutenção das coisas como estão, portanto legitimação das desigualdades decorrentes.

Já a compreensão do Direito enquanto disputa de classes permite-nos constatar que, diante das contradições que surgem numa sociedade capitalista, é possível garantir direitos de grupos minoritários.

Assim, o Gedic, com o passar dos anos, adquiriu caráter de pesquisa e extensão, permitindo-nos a experiência do contato com grupos minoritários e sua luta por reconhecimento de direitos.

Em que medida, contribuiu para a sua formação?

Contribuiu - e ainda contribui - para uma formação humana e crítica minha e das demais pessoas que atuarão na resolução de conflitos sociais.

Acredito que isso seja um importante diferencial diante da realidade das faculdades de Direito do Brasil, em sua grande maioria particulares e comprometidas basicamente com as relações comerciais com seus estudantes.

E na Ufersa o que mais te chama atenção?

Ver que nela existem dois projetos em uma disputa muito nítida.

De um lado, o projeto de universidade popular, que reconhece as desigualdades sociais e até atua para ajudar a superá-los. Nele, cabem várias pautas cada vez mais colocadas à sociedade por seus sujeitos.

São pessoas LGBTs dizendo que a universidade precisa romper o silêncio que garante a existência do discurso de ódio contra elas.

São mulheres se organizando e lutando contra o machismo e o patriarcado, que permeiam as relações de construção do conhecimento, da ciência e do fazer pedagógico.

São os negros denunciando o racismo estrutural, responsável por manter um espaço de poder hegemonicamente branco e por invisibilizar as pessoas que entram na universidade por políticas de inclusão.

E, aliada, a todas essas pautas, o recorte econômico de classe, que não deixa de ser pautado por esses sujeitos políticos.

Do outro lado, o projeto de universidade conservadora, fundamentado na meritocracia branca e burguesa. Nele, cabem todos aqueles que lutam para manter vivas as opressões estruturais. São sujeitos abertamente machistas, misóginos, racistas e que odeiam pessoas LGBTs, muitos tendo o Bolsonaro como sua referência política.

Atualmente, qual desses projetos tem hegemonia?

Hoje, nenhum dos dois. Mas temos trabalhado muito para avançar no aprofundamento das transformações empreendidas na última década. Essa é uma tarefa incansável do movimento estudantil de esquerda e popular.

Como é fazer parte de um projeto progressista, popular, de universidade, estando numa cidade reduto do DEM, dominada por uma elite ultraconservadora em todos os sentidos?

Como eu te disse, nós temos dois projetos muito nítidos disputando espaço na Ufersa. Essa realidade é resultado do meio em que vivemos.

Numa cidade como Mossoró, ainda muito dominada por uma política coronelista e conservadora, o resultado dificilmente seria diverso. E essa realidade impõe constantemente tarefas difíceis, isso porque a reação a qualquer pauta progressista ou democrática é rápida e feroz.

Uma breve visita ao grupo da Ufersa no Facebook possibilita ter a exata noção do quanto é conservadora parte da comunidade acadêmica. E o mais curioso: não possuem pudor algum em serem racistas, machistas, misóginos e reproduzirem ódio às pessoas LGBTs. É tudo muito escancarado. Isso não nos desestimula, mas consome quantidade considerável de energia.

Um detalhe que não pode passar despercebido foi a presença de um vereador do PSDB este ano no dia da eleição para direção do DCE. Felizmente, eles perderam.

E o “Fora Temer” na colação de grau e na festa da formatura?

(Risos) O “Fora Temer” agrega diversos setores dentro da sociedade, independentemente do apoio ao mandato da presidenta Dilma. E numa universidade pública, tem simbologia muito importante, pois é a tradução da defesa do ensino público.

Na colação de grau, nós nos comunicamos com as famílias dos 400 formandos que estavam ali. No momento de homenagem aos pais e mães foi como se disséssemos: “A educação pública e a democracia serão defendidos em todos os espaços, não reconhecemos governo golpista!”

Na colação de grau, durante o discurso da Maria Clara houve vaias. Você se surpreendeu?

Houve vaias, sim, de seleta parte de estudantes, mais precisamente de algumas engenharias. O conservadorismo ainda é muito presente nesse seguimento da comunidade acadêmica. Eles ficaram muito incomodados com os aplausos e o coro à fala da Maria e vaiaram.

Não me surpreendi, não. Foi apenas reação de quem está se sentindo incomodado por ver os privilégios serem rompidos. E que bom que se trata disso. O sentimento de estar cumprindo nossa tarefa é cada vez maior. Fizemos, fazemos e faremos muita história nessa universidade. Não descansaremos até que ela seja bem negra e colorida, feminista, popular e com caráter classista.

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