domingo, 14 de agosto de 2016

Nenhum direito a menos

Por Luiz Sérgio, na revista Teoria e Debate:

O Brasil vive um surto conservador gestado como contraposição aos avanços sociais e às conquistas progressistas alcançadas a partir da chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, com Lula, em 2003. A composição do Congresso Nacional, saída das urnas em 2014, reflete essa realidade. De acordo com levantamento realizado pela CUT-Brasília (Cartilha O Maior roubo de Direitos dos Trabalhadores), há em tramitação nas duas Casas Legislativas mais de sessenta projetos cujos objetivos, em linhas gerais, são retirar direitos dos trabalhadores, reverter conquistas sociais e eliminar as políticas afirmativas. Desde maio, com o avanço do golpe parlamentar e o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, essa representação conservadora ampliou seu espaço e ganhou musculatura para acelerar sua pauta nefasta. Hoje, a realidade é que o Palácio do Planalto passou a ser o quartel-general do retrocesso. Michel Temer, o presidente interino e golpista, é a encarnação do atraso.

Independentemente do desfecho do golpe-impeachment no Senado Federal, serão necessárias uma mobilização permanente e uma vigilância contínua para impedir que sejam aprovadas medidas, por exemplo, como a que escancara a terceirização, prejudicando todos os trabalhadores, inclusive os terceirizados; ou a famigerada “flexibilização da CLT”, eufemismo encontrado pelos meios de comunicação para se referir ao projeto que, na prática, permitirá a gradual – mas não necessariamente lenta – retirada de direitos trabalhistas conquistados ao longo de décadas de luta pela classe trabalhadora.

As ameaças são concretas, muito embora às vezes seja difícil acreditar no teor de algumas propostas. Como explicar para um estrangeiro, por exemplo, que em 2016 existem três projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com o objetivo de regulamentar a Emenda Constitucional 81/2014, alterando a definição de trabalho escravo? Pela proposta, por exemplo, a jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho são itens que deixam de ser levados em consideração na tipificação do trabalho análogo à escravidão. A quem pode interessar tal absurdo? Certamente não aos trabalhadores brasileiros.

A lista é grande e os alvos são sempre os mesmos: pobres, mulheres, negros, homossexuais, indígenas. Grupos que ao longo da última década ganharam voz, passaram a ser respeitados e ouvidos, tornaram-se protagonistas de suas lutas. Muito embora ainda haja um longo caminho pela frente, os avanços conquistados incomodaram muita gente. A classe dominante e grande parcela da nossa despolitizada classe média nunca viram com bons olhos a ideia de dividir espaço, seja com os mais pobres, seja com as chamadas minorias.

A expressão “dividir espaço” não está colocada apenas no sentido figurado. Sentar ao lado de um trabalhador numa viagem de avião causou desconforto a muita gente. Houve quem escrevesse artigos se queixando da mera possibilidade de encontrar com o porteiro do seu prédio num cruzeiro ou mesmo numa esquina de Paris. A maior presença de operários e suas famílias em locais como restaurantes e centros comerciais também incomodou muita gente.

Mas essa é apenas a parte mais caricata dessa lógica egoísta que domina o pensamento das mais abonadas esferas do povo brasileiro. No fundo, o que trouxe desconforto mesmo foi ver o Estado brasileiro se voltar em peso para garantir políticas de inclusão. Por isso a reação a programas como Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Farmácia Popular, Mais Médicos, ProUni, Luz para Todos, Ciência Sem Fronteiras, Fies, Pronatec, a ampliação e valorização da rede federal de universidades e escolas técnicas.

Além desses programas, houve uma ação concreta do governo federal sob os comandos de Lula e Dilma para corrigir distorções e diminuir o fosso que ainda separa os mais ricos dos mais pobres. A política de valorização do salário mínimo é a maior expressão desse novo caminho. Entre 2003 e 2015 o mínimo experimentou um aumento real (acima da inflação) de 76%. Segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o valor do salário mínimo pago aos trabalhadores era suficiente para comprar 2,22 cestas básicas em 2015, mais que o dobro de 1995 quando o salário comprava apenas 1,02.

É preciso lembrar que a decisão de instituir uma política de recuperação do valor do mínimo foi alvo de críticas à época de sua implantação. Analistas econômicos previram impactos negativos para as contas públicas. O que se observou, no entanto, foi um efeito positivo em praticamente todas as áreas, corroborando a frase do ex-presidente Lula quando disse que “o pobre não é o problema do Brasil, é a solução”. Milhões de brasileiros e brasileiras saíram da linha de pobreza e tornaram-se consumidores.

Todas essas conquistas estão em xeque. Há até quem defenda o fim do ensino superior público gratuito. Diante desse quadro, é óbvio que a fragmentação das forças progressistas só nos enfraquece. Para além da tão sonhada “união das esquerdas”, é preciso observar com atenção as novas formas de organização e ação, principalmente aquelas nascidas “em rede”. Há, sobretudo entre os mais jovens, uma enorme disposição para a luta. E não uma luta qualquer. O nível de consciência crítica e o rigor ideológico são admiráveis. Precisamos beber dessa fonte e rejuvenescer ideias e práticas. As organizações tradicionais, como partidos e sindicatos, precisam entender melhor esses movimentos e fortalecer os laços fundamentais que nos unem. Ignorar esse fenômeno ou vê-lo como mera linha auxiliar das arengas partidárias é um equívoco que pode custar muito caro.

Nosso projeto de país, em que pesem os erros cometidos no meio do caminho, está sob ataque cerrado com claro fundo ideológico. Não será suficiente que a mobilização e a vigilância aconteçam apenas nos corredores das comissões das Casas Legislativas ou nas galerias dos plenários. Não bastará que a bancada progressista trave o debate e esteja pronta para o embate no Parlamento. Será necessário mais que isso. Precisaremos ir às ruas para mostrar que não aceitaremos a imposição dessa agenda retrógrada. Nenhum direito a menos.

* Luiz Sérgio é deputado federal (PT-RJ).

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