É espantosa a disseminação na sociedade de discursos perversos que procuram minimizar ou ignorar as atrocidades praticadas durante a ditadura civil-militar. Nunca é demais repetir: foi por obra do autoritarismo e da selvageria de agentes do Estado brasileiro contra opositores políticos que no período entre 1964-1985 se registrou na história do país um saldo de aproximadamente 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados e algo em torno de 400 mortos e desaparecidos.
O Brasil não lida bem com sua memória histórica e a tragédia representada por esses números não tem sido, ainda nos dias de hoje, motivo de preocupação para muitos agentes do Estado.
“Em razão da ditadura no Brasil, uma parte dos criminalistas rejeita qualquer sombra de redução dos direitos de defesa”, teria afirmado o procurador Deltan Dallagnol, numa palestra proferida recentemente na Casa do Saber, em São Paulo.
A frase teria sido dita no contexto em que o membro do Ministério Público Federal e coordenador da Operação Lava Jato apresentava para a plateia suas preocupações com a impunidade do Estado brasileiro e com a existência de uma excessiva proteção legal aos réus em procedimentos criminais.
A frase revela miséria intelectual e desprezo pela história do país e pelo direito. Para Dallagnol, a ditadura foi ruim porque incutiu em alguns a “inconsequente” convicção da defesa de direitos. Assim, algumas das chagas provocadas pelo golpe militar de 1964, como a tortura, o banimento, a violência, a prisão ilegal e a censura, em nada o sensibilizam. Ignora que parte da base legal que fundamentou o golpe de 1964 ainda está em vigor, apesar da incompatibilidade com Constituição da República de 1988.
A queixa de Deltan Dallagnol é, em síntese, a própria justificativa dada pelos verdugos para operar o golpe contra o governo legítimo de João Goulart. Foi justamente o medo provocado pelo avanço dos direitos de cidadania almejado por uma plataforma progressista de governo que fez com que o Brasil vivesse o terror de uma ditadura.
Neste ponto, a interseção ideológica entre o pensamento de Dallagnol e o dos artífices do regime militar é sintomática e preocupante.
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Conforme dados divulgados pelo Ministério da Justiça no início do ano, a população carcerária no Brasil atinge atualmente a exorbitante cifra de 600 mil presos. Esse número coloca o país no quarto lugar no ranking mundial de encarceramento e deveria ser suficiente para desconstruir o argumento falacioso de império da impunidade e sobre a necessidade de relativizar ainda mais os direitos fundamentais dos acusados. O sistema penal tem sido muito eficiente contra seu público preferencial, constituído de jovens negros e pobres.
No entanto, ainda que se possa observar que atualmente a seletividade aponta sua mira para uma parcela da classe política, historicamente ela também é direcionada aos integrantes dos movimentos sociais.
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra, observa-se que no contexto das lutas rurais protagonizadas por trabalhadores, lideranças de movimentos sociais e sindicais e defensores de direitos humanos, entre os anos de 1995 e 2014, foram catalogados 3.964 casos de pessoas presas em todo o país.
Especialmente no que diz respeito ao Movimento Sem Terra, suas tradicionais formas de protesto sempre desencadearam reações repressivas do Estado, com o desenvolvimento da atividade punitiva que exacerba os limites legais impostos por regimes democráticos.
De modo geral, imediatamente após a realização das ocupações de terra os órgãos da justiça e da polícia são acionados, instaurando-se investigações e processos criminais, via de regra com expedição de decretos de prisão provisória carentes de fundamentação. A legislação penal é vasculhada em busca de tipos penais que possam ser interpretados de modo extensivo, formulando-se acusações do cometimento especialmente de crimes de esbulho possessório, furto, dano, associação criminosa, crimes constantes da Lei de Segurança Nacional, dentre outros, ocasiões em que a demonstração da presença de indícios de autoria e materialidade delitiva não é objeto de preocupação das autoridades.
No passado recente, porém, algumas decisões proferidas pelos tribunais do país expressaram entendimento sobre a legitimidade da luta pela reforma agrária e sobre o fato de integrantes de movimento social não poderem ser confundidos com integrantes de quadrilha.
Nesse sentido, são emblemáticas as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:
– HC. Constitucional. Habeas Corpus. Liminar. Fiança. Reforma Agrária. […]. Movimento Popular visando implantar a reforma agrária, não caracteriza crime contra o patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando implantar programa constante na Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado Democrático de Direito. [1]
– Constitucional. Processual. Penal. Prisão em Flagrante. Líderes do MST. Liberdade provisória. A prisão processual, medida que implica sacrifício à liberdade individual, deve ser concebida com cautela em face do princípio constitucional da presunção de inocência, somente cabível quando presente razões objetivas, indicativas de atos concretos, susceptíveis de causar prejuízo à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal (CPP, artigo 315; CF, artigo 93, IX) – A manutenção de líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST sob custódia processual, sob a acusação de formação de quadrilha, desobediência e esbulho possessório afronta o preceito inscrito no artigo 5º, LXVI, da Constituição – Habeas Corpus concedido.[2]
Embora os movimentos sociais, notadamente os do campo, tenham obtido êxitos nos tribunais superiores ao questionar a criminalização da luta social, isso não foi suficiente para evitar que muitos juízes e promotores continuassem a tratar a questão social como caso de polícia.
Recentemente, o Ministério Público do Estado de Goiás denunciou quatro trabalhadores rurais sem terra como integrantes de organização criminosa e contra eles foi expedido decreto de prisão preventiva. Patrick Mariano e Beatriz Vargas denunciaram a ilegalidade e equívoco de tal interpretação.
O cenário dos protestos realizados no meio urbano não difere do quadro de repressão e criminalização verificado no meio rural. Avolumam-se casos de atuação violenta da polícia contra manifestantes, notícias de agentes estatais infiltrados nas mobilizações, prisões e instauração de processos criminais, cujo objetivo é o de amedrontar, desmobilizar e neutralizar a dissidência política e a apresentação de reivindicações pelo cumprimento das promessas constitucionais.
A questão central se foca na dualidade entre a tentativa de mudanças e a manutenção das gritantes injustiças sociais. Em meio a essa tensão, o direito penal serve como poderoso instrumento de contenção das demandas populares. A defesa ou a busca pelos direitos, no autoritarismo, é vista como questão de polícia, mas há quem não se sinta constrangido em defender esse pensamento em pleno regime democrático.
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Passados 28 anos da promulgação da Constituição de 1988, diante de um quadro de esfacelamento de pilares de sustentação da democracia, as palavras do procurador soam perturbadoras. Representam a síntese de um movimento coordenado que visa impor ainda mais retrocessos ao sistema penal, com reflexos nas lutas protagonizadas por movimentos sociais.
A criminalização da política e o rosário de ilegalidades praticadas na Operação Lava Jato é, talvez, um dos maiores retrocessos no direito penal brasileiro desde a ditadura civil-militar e suas consequências durarão por muito tempo.
A prisão temporária de um ex-ministro da Fazenda, intelectual reconhecido, enquanto acompanhava sua companheira que padece de câncer em um hospital é algo que choca, aturde e nos fornece a exata dimensão do estado policial que vivemos.
Como bem disse a advogada Camila Gomes ao abordar a ilegalidade da divulgação dos áudios da presidente da república, “uma investigação policial e um processo judicial que não respeita os direitos de uma presidente da República, vai respeitar o de quem? Do povo do Cabula? Da Izidora, em Minas Gerais? Da Rocinha, do campo?”.
Na atualidade, com o aumento do estado penal e com uma forte tendência de relativização ou esvaziamento do conteúdo dos princípios constitucionais destinados a impor freios ao poder punitivo, não se pode nutrir muitas esperanças a respeito do posicionamento que os tribunais adotarão nos casos de criminalização em tramitação e nos novos casos que, pela trajetória do país, continuarão a surgir sempre que trabalhadores e trabalhadoras realizarem suas tradicionais formas de protesto.
Foi muito feliz o jornalista Juca Kfouri ao analisar o momento atual no Brasil e resgatar Brecht: ‘Ou a gente grita, ou virão nos buscar, porque não há ninguém que grite por nós’.
* Giane Ambrósio Álvares é advogada, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares. Escreve na Coluna ContraCorrentes, aos sábados, junto a Patrick Mariano, Rubens Casara, Marcelo Semer e Marcio Sotelo Felippe.
Notas:
Notas:
[1] Superior Tribunal de Justiça. HC nº5.574/SP. 6ª Turma. Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 08.04.1997.
[2] Superior Tribunal de Justiça. HC nº9.896/PR. 6ª Turma. Rel. Min. Vicente Leal, j.21-10-1999.
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