quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Cabral e a lavagem de luxo das joalherias

Por Altamiro Borges

A prisão do ex-governador Sérgio Cabral, acusado de receber milhões em propina das empresas que realizaram várias obras no Rio de Janeiro, trouxe à tona um esquema luxuoso e ardiloso de lavagem de dinheiro ilícito. Ele envolve as principais joalheiras do país, que fazem o sonho de consumo dos ricaços nativos. A mídia privada, que abocanha muito dinheiro com os anúncios publicitários destas marcas, evita tratar do assunto – por razões meramente mercenárias e venais. Mas o tema pode voltar à baila nos próximos meses com os novos desdobramentos da midiática Operação Lava-Jato.


No final de dezembro, a Folha publicou uma notinha que deve ter apavorado as reluzentes joalheiras e seus sombrios clientes. "Depois das empreiteiras, há outro ramo de negócios aflito com o avanço da Lava Jato: as joalherias. Empresas do setor intensificaram buscas por advogados nas últimas semanas. A aparição de marcas conhecidas como H. Stern e Antonio Bernardo na investigação contra Sérgio Cabral deixaram outras lojas badaladas em alerta. Afinal, políticos à moda antiga adoram dar joias de presente – além de ser uma forma de lavar dinheiro, diz a Lava Jato".

Logo após a prisão do ex-governador carioca, o mesmo jornal publicou uma matéria mais detalhada sobre o sinistro esquema. Vale conferir a reportagem, assinada pelo jornalista Mario Cesar Carvalho:

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No mundo superlativo da Lava Jato, em que propinas e desvios são recordes, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) ocupa uma posição especial: ele é acusado de ter recebido a maior suborno entre os políticos (R$ 220 milhões). Com o aprofundamento das investigações, ele é candidato a um novo título: o de ter-se beneficiado do maior esquema de lavagem de dinheiro com joias, com compras que somam R$ 6,6 milhões, segundo os procuradores da Lava Jato no Rio.

Lavagem é o crime pelo qual o dinheiro sujo volta ao mercado com aparência lícita. Cabral usava o suborno que recebia de empreiteiras para comprar joias, segundo denúncia aceita pela Justiça e funcionárias de joalherias.

O esquema de Cabral colocou no submundo da lavagem duas das mais reputadas joalherias: a H. Stern, a maior rede do país e a que tem mais penetração internacional, com 280 lojas em 30 países, e Antonio Bernardo. Foi graças à H. Stern que a pedras brasileiras passaram a ter valor no exterior a partir de 1969, quando a empresa passou a emitir certificados garantido o valor das gemas.

A peça mais cara comprada por Cabral é justamente um conjunto com a mais cara das pedras brasileiras, a turmalina paraíba ou turmalina azul. Um conjunto de brincos, colar e anel custou R$ 1 milhão em 2012. Foi o presente de aniversário de Cabral para sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo. Ele está preso desde 17 de novembro e já virou réu. Ela detida na última terça (6), sob suspeita de ter ocultado joias compradas com propina.

FALHA

Os especialistas em lavagem levaram um susto ao ver o nome das duas joalherias envolvidas no caso de Cabral por causa da regulamentação do setor. Toda venda acima de R$ 10 mil tem de ser comunicada ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão do Ministério da Fazenda que atua no combate à lavagem.

Setores que podem ser usados para lavar dinheiro, como imobiliárias e galerias de arte, são obrigadas a comunicar operações suspeitas. As compras de Cabral eram para lá de suspeitas: foram pagas com dinheiro vivo, sem nota fiscal.

No caso do ex-governador, havia uma segunda razão para o comunicado compulsório: ele é o que a legislação chama de "pessoa politicamente exposta", sobre os quais paira sempre a suspeita de recebimento de suborno. Nenhum dos procedimentos foi seguido.

A H. Stern era considerada por especialistas em lavagem como uma empresa exemplar. "É difícil imaginar que foi uma falha administrativa das joalherias. Elas conhecem muito bem as normas e, aparentemente, optaram por não cumpri-las", afirma Antonio Gustavo Rodrigues, presidente do Coaf. "Fica um sentimento de frustração".

Segundo ele, não houve falha do Coaf porque o órgão depende de informação das empresas para atuar.

A professora de direito Heloísa Stellita, que dá aulas na Fundação Getúlio Vargas e organizou seminários sobre lavagem para joalherias, afirma que o problema não é de lei: "Os nossos procedimentos legais já são de alto nível".

O órgão que combate lavagem trabalha com um número reduzido de funcionários, 55. Seu papel do órgão não é de fiscalização.

O SUBMUNDO

Joia é usada para lavar dinheiro por conta de algumas se suas qualidades intrínsecas: é pequena, agrega um alto valor e é fácil de ser transportada ou escondida.

Parece uma maravilha para lavar dinheiro, mas há um fator negativo que faz com que esse crime seja raro: há uma grande perda de valor quando uma joia saia da loja, segundo o advogado Gustavo Badaró, autor de um livro sobre lavagem em parceria com Pierpaolo Bottini e consultor de joalheiras.

"O valor de criação do design, do marketing, do aluguel de joalherias em locais caros, tudo isso é jogado no lixo quando se lava dinheiro com joia", afirma Badaró.

Isso ocorre porque, em geral, as peças são revendidas pelo valor do ouro e pedras.

"Lavar dinheiro em joalheria famosa é uma forma pouco eficiente de lavagem: daria para comprar um número maior de pedras em joalherias menores, que não gastam tanto em criação e marketing", ilustra Badaró.

Uma associação do setor estima que 70% do valor é perdido na lavagem.

É por causa do alto valor que se perde na lavagem que a lavagem por meio de joias é mais comum entre traficantes de drogas e terroristas.

O caso mais célebre ocorreu com o cartel de Medellín, nos anos 90 do século passado, quando uma joalheria de Los Angeles lavou US$ 1,1 bilhão de traficantes de cocaína.

O IBGM (Instituto de Gemas e Metais Preciosos), que reúne as empresas do setor, reconhece que "aparentemente" as joalherias cometeram ilícitos graves. Na esfera penal, o crime de lavagem é punido com pena de prisão de três a dez anos. Já no campo administrativo, o Coaf pode aplicar multas de até R$ 20 milhões.

O diretor-executivo do instituto, Ézio Moraes, diz que a entidade quer usar o exemplo de Cabral para mostrar às joalherias o risco que elas correm ao tentar escapar da lei. "Não tenho dúvidas que as autoridades vão querer fazer da H. Stern um caso exemplar e aplicar todas as sanções possíveis. O que aconteceu no Rio é péssimo porque joga uma suspeita sobre todas as joalheiras. Mas vamos fazer do limão uma limonada".

A ideia, segundo ele, é usar o caso como catequese.

OUTRO LADO

A joalheria Antonio Bernardo, responsável por vendas de R$ 5,1 milhões a Sérgio Cabral e sua mulher, diz estar colaborando com as autoridades e afirma que forneceu todos os documentos e informações pedidas.

Apesar de ter recebido os valores em dinheiro sem nota fiscal, a assessoria diz que a joalheria não usa caixa dois. Em carta aos clientes, pediu desculpas e diz ter recolhido os impostos sonegados.

A H. Stern afirmou por meio de sua assessoria que não comentaria o caso "devido a uma política interna de confidencialidade".

A Folha não conseguiu contato com a defesa do ex-governador do Rio e sua mulher, que têm negam envolvimento em irregularidades.

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