segunda-feira, 26 de março de 2018

Será o começo do fim do Facebook?

Por Renata Mielli, no site Mídia Ninja:

O título é mais uma provocação do que um prognóstico. Seria precipitado afirmar que o Facebook está com os dias contados. Mas é fundamental entender os motivos e o que representa essa que talvez seja a primeira grande crise da plataforma que, em 2017, ocupou o 4º lugar no ranking das empresas de internet mais valiosas do mundo, atrás apenas da Apple, Alphabetic (Google) e Microsoft. Em dezembro de 2017, a rede social de Zuckerberg alcançou a marca dos U$ 520 bilhões de dólares, mantendo-se à frente de outra gigante, a Amazon, segundo dados da Forbes.

O Facebook tem sido alvo de multas milionárias (bilionárias até), de críticas motivadas pelo descontentamento de usuários que se veem lesados pelo uso indevido dos seus dados, pela maneira como os algoritmos da plataforma cria bolhas, a falsa ilusão de alcance, contra a política de patrocínios e a propagação de notícias falsas.

O escândalo sobre o vazamento de dados pessoais de cerca de 50 milhões de usuários para uso indevido por uma empresa de estratégia política, a Cambridge Analytica, é a mais profunda que Mark Zuckerberg já enfrentou.

O CEO e fundador do Facebook saiu da sua “bolha de proteção e conforto” para assumir a missão de tentar limpar a imagem da sua plataforma. Deu entrevistas a jornais e redes de televisão – o que não é uma prática de Zuckerberg – e já apresentou medidas de controle e segurança, com o intuito de reduzir danos, em particular na bolsa de valores, onde as ações da companhia já tiveram uma queda de mais de 12%, acumulando uma perda de mais de 50 bilhões de dólares apenas essa semana.

As propostas de Zuckerberg, no entanto, são superficiais e pouco eficazes para impedir novos vazamentos. No caso dos aplicativos, eles anunciaram que irão fazer uma auditoria nos apps que usam o Face para identificar os que fazem “mau uso dos dados” e bani-los da plataforma. Se uma pessoa não fizer uso de um app por mais de 3 meses, o aplicativo deixará de ter acesso aos seus dados. Zuckerberg também anunciou que vai ensinar as pessoas a gerenciar seus apps, e informar quando os dados de alguém tiver sido usado de forma indevida.
Enfrentar os problemas na raiz
Essas medidas – que já deveriam ser uma política da empresa desde sempre – atacam apenas a superfície do problema. A raiz é justamente a possibilidade de a plataforma e seus aplicativos terem acesso irrestrito aos dados pessoais, de navegação e a todas as atividades do usuário na sua plataforma e, inclusive, fora dela. A origem do problema está na arquitetura dos algoritmos do Facebook, que são desenvolvidos para rastrear nosso comportamento digital e armazenar nossos dados. Ou seja, o Facebook foi construído desde o início com esse propósito, o seu modelo de negócios está baseado na coleta e comercialização das informações que nós, usuários, fornecemos gratuitamente para ele.

Esse modelo de negócios é ainda mais perigoso, porque é operado por um monopólio que congrega e interliga outras redes à sua rede. Um dos compromissos firmados pelo Facebook na ocasião da aquisição do Whatsapp e Instagram foi justamente o de manter as três redes independentes. Pouco mais de um ano depois da compra das duas plataformas, o Facebook fez a integração das três, ampliando ainda mais a coleta de informações e dados que permitem traçar perfis praticamente individuais dos usuários, uma verdadeira mina de ouro tanto para o mercado de comércio e serviços, como para o “mercado da política” que tem empresas como a Cambridge Analytica.

Zuckerberg também declarou que talvez seja o caso de haver algum tipo de regulação da sua plataforma. Admitiu publicamente que o Facebook assumiu um papel importante na construção de opinião e direcionamento de temas, além de reconhecer que sua plataforma tem um forte poder político para direcionar políticas e até governos.

Por mais que seja uma plataforma privada, o Facebook adquiriu – gostemos ou não – uma papel público relevante e perigoso demais para ser mantido sem qualquer tipo de regulação.

Por isso, para além das medidas anunciadas – totalmente paliativas – é preciso criar regras de transparência sobre as atividades e funcionamento da plataforma; exigir que o desenvolvimento dos algoritmos se dê a partir do conceito de privace by design (que desde a concepção são construídos para garantir parâmetros de privacidade); definir regras de desconcentração, impondo que o compromisso da separação entre Facebook, Instagram e Whatsapp seja cumprido; impedir que o Facebook adquira novas redes, medida importante para frear a ação monopolista da companhia na internet; definir políticas de proteção de dados pessoais e modelos mais rígidos e transparentes para que o usuário tenha conhecimento das regras e possa decidir sobre como devem ou não ser utilizadas suas informações. Padrões internacionais mínimos deveriam ser definidos sobre esse tema, mas a plataforma deveria ser obrigada a obedecer as legislações nacionais de proteção de dados pessoais.

É cedo para dizer qual será o desdobramento dessa crise do Facebook. Se este será um momento de reconfiguração da plataforma que já passou por mudanças significativas desde a sua criação (apesar de nenhuma delas motivada por uma crise de credibilidade); ou se esse abalo vai levar a um êxodo da rede, que poderá perder relevância até ser superada por outra novidade, como aconteceu com o Orkut.

Aliás, essa é uma característica da Internet: a velocidade com a qual as novidades surgem e desaparecem na rede mundial de computadores é muito grande. Isso faz com que seus gigantes econômicos tenham uma vida mais curta que os gigantes da economia tradicional. AOL, Altavista, Napster, Orkut são alguns dos exemplos que mostram como é possível ser grande tão rapidamente, mas, num piscar de olhos, deixar de existir.

O próprio surgimento de uma bolsa de valores específica (Nasdaq) para negociar ações de empresas de tecnologia se constituiu num grande fenômeno que cresceu e explodiu. Toda grande bolha cresce até o limite de sua elasticidade, depois estoura.
Uma breve linha do tempo do Facebook
Os picos de expansão econômica do Facebook coincidem com mudanças significativas da plataforma e do seu modelo de negócios (introdução de anúncios, posts patrocinados, impulsionamento de páginas, parcerias com outras empresas e plataformas, criação de funcionalidades para competir com os concorrentes – como os vídeos ao vivo – e outras inovações ao longo dos últimos 14 anos).

Quando percebeu o alcance de sua rede – que nasceu para conectar os estudantes da Universidade de Harvard – e o potencial bilionário de seu negócio, Zuckerberg começou ampliar suas metas e aspirar, porque não, transformar o Facebook na própria internet.

Quando os caminhos de Zuckerberg começaram a trilhar neste sentido, ele começou a enfrentar seus primeiros obstáculos. Não adianta conquistar o mundo e matá-lo ao mesmo tempo.

O Facebook passou a ser uma ferramenta de interação mais ou menos dois anos depois de ser lançado.

Em 2006, a plataforma criou sua primeira versão de feed de notícias. Até aí, apenas páginas pessoais eram possíveis de serem criadas e a rede era, digamos, estritamente social – uma maneira de contar ao outro o que o que você estava fazendo, com quem e onde, e o que pensava ou sentia sobre determinado assunto.

Em 2008, surgiu a primeira funcionalidade para que o usuário pudesse adicionar links e fotos ao seu status. Foi aí que as pessoas começaram a trocar links de páginas de notícias, de venda de produtos, de empresas, dos mais variados temas. Zuckerberg percebeu que seria muito interessante introduzir as empresas na sua plataforma, permitir que além das pessoas físicas, pessoas jurídicas (.com e .gov) pudessem produzir conteúdo – e valor econômico – para o Facebook.

É nesta etapa que o Facebook passa a desenhar o seu modelo de negócios como o conhecemos hoje – gerar cada vez mais tráfego na sua plataforma, aumentar mecanismos de interação (comentários, compartilhamentos e likes) e a partir disso monetizar as interações com base em frequência e relevância.

Também é aqui que o modelo passa a se basear de forma mais dependente da coleta, tratamento e comercialização de dados pessoais.

Em 2009 surgem as páginas, com funcionalidades distintas dos perfis pessoais. Nessa altura, muitas empresas e governos já mantinham perfis individuais. O Facebook fez uma campanha para que houvesse uma migração para as páginas. Nas páginas, funcionalidades de acompanhamento estatístico do alcance das postagens foram introduzidas, preparando o caminho para o que já estava planejado como próximo passo: os patrocínios e impulsionamentos.
Bolhas, ilusões e bolsa de valores
Ninguém, nem mesmo o Rei Roberto Carlos, pode ter realmente 1 milhão de amigos. Nem mil. O Facebook criou essa ilusão, de que ao se conectar com alguém na sua plataforma você está fazendo um “amigo”. E junto com isso, o Facebook vendeu inicialmente para seus usuários outra falsa ideia: a de que os seus milhares de amigos podem acompanhar a sua atualização de status. Talvez lá no início fosse assim. Mas com toda certeza a partir de 2009, 2010, já não era mais.

Então, é mais ou menos neste momento que o papel dos algoritmos passou a se tornar mais relevante e a mudar o perfil da rede social.

Já havia um algoritmo que “selecionava” o que cada usuário via no seu feed. Mas a entrada dos usuários .gov e .org ampliaram essa “seleção”.

No ano de 2012 o Facebook passou realmente por uma grande transformação. Não na sua interface e funcionalidade, mas na sua composição. De um empreendimento individual, tornou-se uma empresa capitalista de mercado aberto. Em 18 de maio, Zuckerberg vendeu o primeiro lote de ações da sua empresa na Bolsa de Valores de Tecnologia de Nova York, a Nasdaq. Naquele momento, a empresa estava avaliada em U$ 104 bilhões.

Ao abrir seu capital, o Facebook passou a ter a obrigação de reverter lucro aos acionistas que investiram na empresa. O ideal “misantropo” de Zuckerberg de conectar as pessoas deu lugar à frase máxima do capitalismo norte-americano “Show me the money”.
Lucro e Poder
Essa mudança se traduz no botão “Promote” ou “Promover”. Já havia uma insatisfação das páginas que percebiam pelas estatísticas o baixo alcance de suas publicações para os seus “fãs” ou seguidores. Nesta época, uma média de 12% das pessoas que curtiram uma página visualizavam seus posts. O Facebook então resolveu fazer com que as páginas pagassem para ter mais alcance. Quer ser visto ou lido? Então pague por isso.

Assim, o Facebook aprofundou o modelo econômico baseado nos likes: quanto mais tempo, mais interação e frequência de postagens você tiver, mais valor você vai gerar para si e para o Facebook.

Ao adotar este caminho econômico, o Facebook direcionou os conteúdos pela afinidade dos seus usuários – afinal, aparecem para mim conteúdos relacionados com o meu hábito – de quem eu mais compartilho, interajo etc. Começaram a se aprofundar as bolhas. O que havia de diversidade no Facebook, a possibilidade de estar em contato com conteúdos diferentes, de se confrontar com outros pontos de vista, foi reduzido praticamente a zero.

Outras mudanças foram sendo incorporadas – a ideia aqui não é fazer um histórico detalhado da evolução do Facebook, mas mostrar como sua trajetória foi sendo conduzida para criar armadilhas no sentido de aprisionar cada vez mais as pessoas dentro da plataforma. A ideia era de que a internet que se lasque, você tem que postar no Facebook, compartilhar no Facebook, comentar no Facebook, publicar o link da notícia no Facebook e, porque não, ler na íntegra os conteúdos de outros sites dentro do Facebook.

Surgem os Instant Articles, parcerias com empresas de mídia para não mais postarem links, mas hospedarem seus conteúdos para serem lidos diretamente na timeline do Facebook.

De novo, menos internet mais Facebook.
Saltamos para o ano de 2014. É mais ou menos neste momento que o CEO do Facebook anunciou a criação de um projeto para conectar os desconectados através de um acesso móvel oferecido pela empresa chamado Internet.org, que de tão bombardeado mudou rapidamente de nome e passou a chamar Free Basics. Através de um aparelho celular, a pessoa baixa o aplicativo do Free Basics e instala uma versão do Facebook que dá acesso à algumas funcionalidades da plataforma. A pessoa não estará conectada à rede mundial de computadores, não poderá transmitir dados como vídeos, fotos de alta resolução, transferir arquivos, ou usar programas de voz por IP [como o Skype], mas poderá navegar no Facebook.

Todas essas iniciativas coincidem com a discussão envolvendo a neutralidade de rede e o modelo de negócios de acesso à internet baseado na expansão da conexão por dispositivos móveis. Nesse momento, o Facebook e empresas de telecomunicações firmaram uma parceria que permitia pessoas que contratassem um pacote de dados para acesso à internet pelo celular “ganhassem” o acesso grátis ao Facebook. Ou seja, para navegar na plataforma do Zuckerberg não haveria descontos do pacote de dados. Essa oferta é chamada de zero-rating.

Esses e outros instrumento perversos do Facebook foram criados para manter as pessoas quase que “exclusivamente na sua plataforma” e limitar o acesso à internet. Quando o usuário via uma notícia interessante na sua timeline e clicava para acessa-la, uma janela abria instantaneamente para perguntar: Você tem certeza que quer continuar? A partir deste momento a navegação será descontada do seu pacotes de dados.

Nem precisa pensar duas vezes: num cenário de preços elevadíssimos dos pacotes de dados, pelo menos no Brasil, o usuário não vai clicar para ler a notícia, vai guardar os dados para um momento mais importante. E assim a pessoa vai ficando no Facebook, adquirindo pacotes cada vez menores e usando apenas aquilo que vem de graça – Facebook, Instagram e Whatsapp, estes dois últimos comprados pelo Zuckerberg em 2012 e 2014 respectivamente. Ou seja, é como se o usuário ficasse preso em casa, num cárcere privado, sem a possibilidade de percorrer as largas avenidas e milhares de ruas que compõem a world wide web.
Encruzilhada
Apesar de ainda manter um crescimento, aos poucos o Facebook vai perdendo sua relevância. As pessoas começam a tomar consciência dos limites, da manipulação, das bolhas e do poder que o Facebook tem de interferir nos hábitos, em suas vidas e na própria soberania e democracia dos países.

Ao aprofundar esse modelo que originou as grandes bolhas de auto-referenciamento de opiniões já estratificadas, a plataforma gerou um ambiente refratário ao debate e até impulsionador de intolerância e preconceitos. Passaram a ser mais constantes os discursos de ódio no Facebook, como campanhas de difamação. A economia dos cliques, impulsionada pela plataforma, gerou um caça níqueis que permitiu o surgimento de páginas de conteúdos sensacionalistas e notícias falsas, que rapidamente foram instrumentalizados com objetivos políticos.

Os setores progressistas, de outro lado, já há muito tempo denunciam os mecanismos de coleta e uso de dados pessoais dos usuários do Facebook, o intercâmbio com agências de inteligência, o cerceamento à liberdade de expressão por retirada de conteúdos de seus usuários, a definição discricionária da plataforma sobre o que é ou não conteúdo terrorista, ou impróprio, enfim, uma série de “decisões” da empresa que impactam negativamente na circulação dos conteúdos na timeline.

O que vai acontecer a partir daqui é difícil dizer. Mas parece certo que o Facebook está diante de uma encruzilhada.

Ceder à pressão para que a sua plataforma possa ser alvo de uma regulação externa, que ao mesmo tempo imponha uma série de obrigações à empresr de decisão sobre sua presença na rede; ou se vai manter a postura de adotar medidas paliativas e garantir a permanência do modelo atual.

Qualquer dos dois caminhos, vai exigir, também, medidas para impedir uma retirada em massa da plataforma, que segundo informações divulgadas pelo próprio Zuckerbeg, já sofreu uma redução de 50 milhões de horas a menos de utilização diária desde o início desse ano.

Talvez, como outros gigantes da internet, o Facebook já tenha vivido seu auge e esteja entrando no seu declínio.

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