quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

As armas e a utopia macabra de Bolsonaro

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Hoje de manhã, quando comecei a ler uma manchete sobre o decreto de liberação de armas de fogo, uma funcionária de escritório que andava a meu lado, num ônibus no centro de São Paulo, não aguentou e disse: "Isso não vai resolver nada. O que resolve é saúde. É disso que o povo precisa".

Dentro de um táxi, um motorista puxou o assunto por conta própria e me disse: "não gosto de revolver, não sei usar arma, não gosto de quem usa. Sei que é muito perigoso. Sou velho, tenho mais de 70 anos, minha vontade é mudar de país".

Colhidas ao acaso, essas opiniões ajudam a entender que o efeito principal do decreto de Jair Bolsonaro sobre armas de fogo será criar um ambiente de medo e terror.

Foi "apenas o primeiro passo", disse Bolsonaro. Seu destino é um Estado Policial.

O decreto é uma tragédia nem si. No país dos despachantes, laranjas e otas frias, Bolsonaro diz que o Estado irá confiar cegamente (o termo empregado é "presume-se a veracidade") na palavra de uma pessoa que deseja ter a posse de uma, duas, três ou até quatro armas de fogo.

Boa parte das garantias que irão proteger o bem mais precioso de uma sociedade - a vida humana - ficarão por conta de serviços terceirizados, inclusive domínio de uma arma. Equilíbrio psicológico será assegurado por atestados.

Mas é importante entender a direção da caminhada.

O pretexto é aumentar a segurança mas só vai aumentar a insegurança, expondo o cidadão comum, sua família, seus filhos. Na prática, Bolsonaro tornou mais fácil comprar um revólver e mesmo um fuzil do que tirar uma carta de motorista. Embora um automóvel possa até provocar mortes - involuntárias - o assassinato, no caso de armas de fogo, é um objetivo assumido, explícito e interiorizado.

"O direito da vida é cláusula constitucional e o Estado não eximir-se de sua garantia", afirma o professor Pedro Serrano, da PUC de S. Paulo.

Como tudo que está na raiz das decisões deste governo, o objetivo do decreto não é resolver um problema real - a segurança nas cidades - mas travar uma luta ideológica, afirmar um preconceito, num movimento mórbido que produziu as piores tragédias da história humana.

Enquanto Paulo Guedes cuida da vida material do topo da pirâmide - vem aí a reforma da Previdência - Bolsonaro cuida das ideias da massa.

Nesta divisão do trabalho, a ministra de Direitos Humanos com o azul e rosa dos meninos e meninas, o chanceler que falou no "Deus do Trump", Bolsonaro irá usar milhões de revólveres e fuzis que serão lançados na praça para fazer propaganda. Acredita que estará denunciando "o marxismo cultural" e "metralhando a petralhada".

Neste "primeiro passo", revólveres e fuzis servirão para consolidar um país com duas classes de seres humanos. As armas vão riscar a fronteira que separa as "pessoas de bem" dos demais brasileiros, uma cidadania que se acredita de primeira classe embora não seja necessariamente a mais rica - apenas se considera no direito moral de apertar o gatilho contra um semelhante que exibe comportamento estranho ou modos indesejáveis. Nos Estados Unidos, país-modelo dessa utopia macabra, para cada criminoso morto com arma de fogo 34 inocentes são assassinados.

O "segundo passo" está em preparativos na mesma cozinha jurídica que produziu o decreto de ontem. É a criação de uma garantia que Bolsonaro define como "segurança jurídica" para sua base real, militares e policiais -- a quem promete, além de uma aposentadoria amigável, a certeza de que jamais serão julgados por crimes violentos e mortes que possam ocorrer em serviço.

Estamos falando de uma glória de valor póstumo para as barbaridades cometidas nos porões do passado - sabemos como isso é importante para o presidente - e um perdão assegurado para as atrocidades do futuro, inevitáveis no plano de trabalho.

Neste momento, até aqueles que se julgam "pessoas de bem" irão descobrir que surgiu uma nova classe no país, em torno de um Estado policial, com poder de vida e morte sobre os demais -- e nada mais lhes restará a não ser prestar obediência.

Este é o ponto, a verdadeira "segurança" almejada de que fala Bolsonaro, num novo tipo de Estado. Alguma dúvida?

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