domingo, 13 de janeiro de 2019

Brasil: o desenvolvimento interditado

Por João P. Romero, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

O reconhecimento da importância da atividade de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e da inovação para o desenvolvimento é um dos raros consensos em economia. Embora haja discordância a respeito dos fatores que determinam o nível de P&D em cada país, há evidências robustas a respeito do impacto positivo da intensidade de pesquisa (P&D em relação ao PIB) sobre o crescimento da produtividade. Além disso, há também amplas evidências a respeito do papel crucial da competitividade tecnológica na performance de cada país no comércio internacional. Dessa forma, o que se observa é que países desenvolvidos em geral têm maior intensidade de pesquisa que países subdesenvolvidos, apresentando também melhor desempenho comercial. Enquanto países como EUA, Alemanha e Japão investem em torno de 3% do PIB em P&D, Argentina, Índia e África do Sul, por outro lado, investem menos de 1%.



Para elevar a intensidade de pesquisa, contudo, é preciso construir um amplo arranjo institucional voltado para esse objetivo. Dentre os inúmeros fatores que colaboram para a pesquisa e a inovação, alguns merecem ser destacados. Em primeiro lugar, é preciso que haja investimento em educação superior para que o país possua pessoal qualificado para a realização de pesquisa. Em segundo lugar, é preciso manter o crescimento da demanda, uma vez que estudos indicam que a pesquisa responde positivamente ao crescimento da demanda. Afinal, quanto maior o tamanho do mercado, maiores os lucros a serem obtidos através de inovações. Em terceiro lugar, é preciso que exista um aparato de proteção dos direitos de propriedade do inovador, garantindo a ele os benefícios da inovação gerada. Em quarto lugar, é preciso que existam instituições voltadas ao financiamento da pesquisa, em função das particularidades dessa atividade (maior incerteza, risco, e prazo de maturação). Em quinto lugar, mas não menos importante, é preciso que existam empresas e empreendedores interessadas em realizar pesquisa e inovar.

Nesse sentido, é importante destacar que algumas indústrias são mais propensas a realizar pesquisa e a inovar do que outras. Desde 1997 a OCDE classifica diferentes indústrias segundo sua intensidade de pesquisa. Essa classificação, hoje amplamente utilizada, mostra que as indústrias com maior intensidade de pesquisa, classificadas como de alta tecnologia, são as indústrias aeroespacial, farmacêutica, química, eletrônica, de telecomunicações, de instrumentos científicos, de máquinas e de armamentos. Vale notar que tais indústrias se encontram na ponta das cadeias globais de valor, produzindo bens com elevado valor agregado. Dessa forma, para um país elevar sua intensidade de pesquisa, é crucial que incentive o desenvolvimento de indústrias com elevada intensidade de pesquisa. Afinal, é evidente que, em média, a quantidade de pesquisa realizada numa empresa que produz sapatos é muito inferior à quantidade de pesquisa realizada por uma empresa que produz aviões. Além disso, é importante destacar que diversos estudos indicam que as indústrias de maior intensidade de pesquisa são também as que apresentam maiores taxas de crescimento da demanda, o que estimula maiores taxas de crescimento da produção, da inovação e da produtividade (https://academic.oup.com/cje/article-abstract/41/2/391/2625401?redirectedFrom=fulltext).

A partir desses dados, observa-se também uma relação positiva entre a exportação de bens de alta tecnologia e o nível de renda atingido por cada país. Em países altamente desenvolvidos, a participação dos bens de alta tecnologia na pauta de exportações é em geral elevada. Nos Estados Unidos a exportação de bens de alta tecnologia representou 20% dos manufaturados exportados em 2016. Na Alemanha, a participação desses bens foi de 17%. Na Espanha, que tem um menor nível de desenvolvimento, essa participação foi de somente 7% em 2016.



A aquisição de competitividade em setores de alta tecnologia, contudo, é extremamente difícil. As indústrias de alta tecnologia não só requerem um elevado nível de conhecimento científico e P&D, mas em geral dependem de inúmeras ligações com outras indústrias de ponta. Além disso, a produção de bens de alta tecnologia muitas vezes requer elevada escala de produção, dificultando a entrada de novos competidores. Acima de tudo, esses custos de entrada tendem a se elevar com o tempo, à medida que a ciência e as técnicas de produção avançam. É exatamente em função dessas dificuldades que países subdesenvolvidos tem dificuldade de aumentar sua produção nesse setor, prejudicando assim seu processo de desenvolvimento produtivo.

Não bastassem todas as dificuldades mencionadas acima, com o avanço da produção chinesa nas indústrias de alta tecnologia a competição nesse setor se tornou ainda mais acirrada. A China mantém uma política industrial extremamente ativa e planejada, com estratégias de diversificação bem delineadas e planos de ação bem estruturados. Seus mais de 100 parques tecnológicos (ou cidades industriais) são divididos em setores e níveis. Empresas da área de biotecnologia, por exemplo, compartilham laboratórios e quando atingem determinado nível de produtividade são transferidas para parques de nível superior para usufruírem de transbordamentos de conhecimento das firmas de maior produtividade e assim sucessivamente. Como resultado de sua ampla política industrial e tecnológica, o país observou um impressionante crescimento das exportações de alta tecnologia nas últimas décadas. Em 1992 as exportações de alta tecnologia representavam somente 6,4% do total de manufaturados exportados pelo país. Essa participação atinge 30,8% em 2005, e cai para 25.2% em 2016. Esses dados demonstram que o elevado crescimento chinês tem sido associado a fortes mudanças na estrutura produtiva do país, o que tem viabilizado seu crescimento continuado.

Estratégias bem elaboradas e coordenadas de diversificação produtiva são cruciais para atingir e manter níveis elevados de renda per capita. Atentos a isso, diversos países tem reestruturado e ampliado suas políticas industriais. Como mostra Mariana Mazzucatto, professora da University College London, em seu livro O Estado Empreendedor, nos Estados Unidos uma parcela considerável dos gastos com P&D vem de recursos públicos, sobretudo relacionados a investimentos militares. Na União Europeia, por sua vez a necessidade de aprofundar as políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico do bloco levou à implementação de uma ampla estratégia de especialização inteligente (https://ec.europa.eu/regional_policy/en/information/publications/brochures/2018/the-role-of-smart-specialisation-in-the-eu-research-innovation-policy-landscape).

No Brasil, ao contrário dos exemplos citados acima, políticas voltadas para a elevação da competitividade tecnológica da produção nacional tem perdido espaço. Segundo dados do MCTI, o investimento em P&D, que subiu de 1 para 1,34% do PIB entre 2000 e 2015, caiu para 1,27% em 2016 (https://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/indicadores/detalhe/recursos_aplicados/indicadores_consolidados/2_1_3.html). Boa parte dessa queda se deve à redução dos recursos públicos alocados para pesquisa. Embora os dados de P&D de 2017 e 2018 ainda não estejam disponíveis, tudo indica que o valor investido tenha caído ainda mais, com recursos públicos sendo reduzidos a níveis alarmantes. O orçamento da CAPES, por exemplo, depois de atingir um pico de R$ 7,4 bilhões em 2015, retrocedeu para R$ 4 bilhões em 2018, cifra semelhante ao orçamento de 2012 (http://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/11042018-Orcamento-por-PPA-2004-2019.pdf).

Por outro lado, é preciso destacar que mesmo o crescimento do P&D observado entre 2000 e 2015 não foi capaz de alavancar as indústrias brasileiras de média e alta tecnologia. Ao contrário, nas últimas décadas verificou-se uma considerável redução da participação dos bens manufaturados no total das exportações, tendo o Brasil exportado maior proporção de bens primários e menor de bens de média e alta tecnologia, sobretudo em função do boom de commodities (https://diplomatique.org.br/meritos-e-desafios-de-uma-agenda-externa-multilateral/). Esse quadro enfatiza a importância de políticas amplas e coordenadas de fomento à indústria de ponta, e não somente da elevação do investimento em pesquisa.

O governo Bolsonaro tem sinalizado que seguirá caminho semelhante. Na educação superior, são raras as menções a estratégias e propostas para aumentar o financiamento da pesquisa. A equipe econômica de Bolsonaro, por sua vez, vê na liberalização da economia o instrumento fundamental para aumentar a produtividade da economia, desconsiderando o papel do planejamento e das política públicas no incentivo à indústria de alta tecnologia e à inovação. Além disso, demandas do agronegócio tem dominado diversas pautas do governo, com indústrias de maior teor tecnológico tendo recebido pouca ou nenhuma atenção.

Associado ao quadro de queda do gasto em pesquisa e de re-primarização, o caos institucional que se instalou no Brasil facilitou ainda a entrada de competidores internacionais em setores chave da indústria nacional, o que pode estreitar e dificultar ainda mais as possibilidades de desenvolvimento do país a médio e longo prazos. No setor de petróleo, por exemplo, a entrada de empresas estrangeiras na exploração do pré-sal ameaça a liderança tecnológica da Petrobras nessa área, e reduz os transbordamentos dessa produção sobre outros setores da economia brasileira. No setor aeronáutico, a venda da Embraer para a Boeing, se confirmada, pode possibilitar a transferência de boa parte das atividades de produção e de P&D da empresa e de seus fornecedores para os Estados Unidos.

Em suma, ao adotar uma estratégia de desenvolvimento completamente baseada no mercado, abrindo mão de políticas e investimentos públicos voltados para motivar a pesquisa, a inovação e a produção de bens de alta tecnologia, o Brasil tem caminhado em direção oposta às estratégias adotadas pela União Europeia, a China, os Estados Unidos, entre outros países. Com essa estratégia, o Brasil corre sério risco de ter sua taxa de crescimento média reduzida, e de ficar ainda mais para trás na corrida tecnológica que se encontra intimamente associada ao desenvolvimento econômico. O mais grave é que ficar para trás significa aumentar ainda mais o custo de alcançar os países líderes no futuro, abrindo também a possibilidade de agravamento do quadro social já debilitado do país.

* João P. Romero é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais e do Cedeplar.

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