Por Antônio Augusto de Queiroz, na revista Teoria e Debate:
Saber o que pensa, como está estruturado e o modus operandi de qualquer governo são condições fundamentais para se relacionar com ele, tanto de modo propositivo quanto de maneira reativa. Com o governo Bolsonaro não será diferente. Se a sociedade civil e os cidadãos não entenderem essas dimensões, as chances de êxito em eventuais disputas com o governo serão praticamente nulas.
Sobre o pensamento do governo Bolsonaro, parece não haver dúvida de que se trata de um governo:
• de direita, do ponto de vista político;
• liberal, do ponto de vista econômico;
• fiscalista, do ponto de vista da gestão;
• conservador quanto aos costumes, valores e comportamentos; e
• temerário em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente.
Quanto à estruturação em núcleos de poder, parece evidente que se trata de um governo que foi organizado para falar para três públicos segmentados: os eleitores fundamentalistas do capitão; os setores de “classe média” moralista-justiceira; e o mercado.
Ninguém, entretanto, fala para o povo, especialmente para aquela parcela da população que depende das políticas e dos serviços públicos, ou para os trabalhadores ou as minorias.
Quem melhor sistematizou os supostos núcleos estratégicos do governo Bolsonaro foi o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presidente do Instituto Luís Gama, Silvio Almeida. Em artigo sob o título “Sobre política, distração e destruição”, ele definiu três núcleos:
1) o ideológico-diversionista;
2) o policial-jurídico-militar; e
3) o econômico.
O primeiro – ideológico-diversionista –, do qual também participam o presidente e seu núcleo familiar, serviria, na lógica do artigo do professor, apenas para manter a moral da “tropa” ou dos bolsonaristas em alta, dando a eles representatividade e acomodação psicológica ao ideário conservador que sustentou a campanha eleitoral.
Seriam os agitadores que serviriam para “fidelizar” os seguidores do bolsonarismo e, segundo o professor, também para “desviar a atenção”, além de “causar indignação e tristeza” entre os “progressistas”, enquanto os núcleos 2 e, principalmente, o 3 colocam em prática suas agendas.
Esse grupo faz, em nome do presidente, o que nos EUA Donald Trump faz pessoalmente, como tática de persuasão, e que Scott Adams em Win Biggly: in a World Whee Facts Don’t Matter1 classifica como “dissonância cognitiva”: lança ideias ou declarações polêmicas, tenham ou não conexão com realidade, para atrair o interesse da mídia e tirar o foco dos problemas que realmente importam para o país, pautando a imprensa, os intelectuais e até mesmo a oposição. Quando o tema perde importância, outra polêmica é criada em seu lugar, e assim permanece em evidência, mesmo que as suas “propostas” não levem a lugar algum.
O núcleo policial-jurídico-militar é composto de profissionais altamente qualificados, que sabem operar o Direito e a máquina repressiva. Como alerta Silvio Almeida, não existe “arminha de dedo”. A arma é de verdade mesmo. O jogo é bruto. Vai de cadeia à destruição física e moral dos adversários.
Seu objetivo, na lógica do artigo do professor Silvio Almeida, é dar sustentação aos outros dois núcleos, de um lado, dando corpo às alucinações do núcleo ideológico – do qual faz parte o próprio presidente, que vê “inimigos da pátria”, ideologia de gênero e “comunistas” em tudo quanto é lugar – por meio de mudanças legais, de abertura de processos civil e penal, além de perseguição e repressão aos críticos mais exaltados, e, de outro, utilizando os instrumentos jurídicos, fiscalizatórios e intimidatórios do Estado para acuar e amedrontar os opositores mais aguerridos da agenda neoliberal.
O terceiro núcleo, o econômico, formado por neoliberais convictos, tem como objetivo colocar em prática, em sua plenitude, a agenda do mercado, a verdadeira “ponte para o futuro”, que Michel Temer não teve tempo nem legitimidade para executar totalmente. Essa agenda consiste em:
• desindexação geral da economia;
• desvinculação orçamentária;
• privatização selvagem;
• abertura da economia;
• desregulamentação do trabalho, com a “livre” negociação; e
• restrição para acesso a benefício previdenciário, inclusive com aumento da idade mínima, aumento do tempo de contribuição e redução do valor do benefício.
O núcleo econômico, além de preparado e pragmático, tem convicções profundas, beirando o fundamentalismo, tanto da necessidade de um ajuste fiscal pelo lado da despesa, com redução do papel do Estado na exploração da atividade econômica, na prestação de serviços e no fornecimento de bens e programas sociais, quanto da urgência da alienação do patrimônio público e da abertura da economia ao capital estrangeiro, sempre sob o pretexto de que o enxugamento do Estado é condição indispensável para atrair investimento e gerar emprego e renda.
Com esse modus operandi, o governo – caso as forças prejudicadas pelos excessos e pela ausência de calibragem do governo em suas políticas não ajam com unidade e inteligência estratégica – conseguiria atingir seu objetivo, atraindo os “progressistas” contrários à pauta cultural, que envolve comportamentos, costumes e valores, para o embate ou a disputa com o núcleo ideológico-diversionista, enquanto o núcleo econômico tocaria a agenda real de desmonte, com a consequente transferência para o mercado dos poderes e do orçamento do Estado, sob o fundamento de valorização da livre iniciativa, da competitividade e, principalmente, da lucratividade.
Como diz o ditado árabe, enquanto os cães ladram, a caravana passa. Assim, sem muita dificuldade, a “cortina de fumaça” do debate cultural sobre “costumes” e declarações polêmicas permite que os verdadeiros interesses da sociedade, aqueles que pesam na mesa e no bolso do trabalhador, do aposentado, da pensionista, dos desempregados, sejam sacrificados no altar do verdadeiro Deus do governo Bolsonaro: o mercado.
Esse diagnóstico requer mudança de método e de narrativa no enfrentamento da agenda de desmonte do Estado de bem-estar social, que comporta basicamente três iniciativas governamentais: a reforma da Previdência, a alienação do patrimônio público e a reforma administrativa, com redução do tamanho e do papel do Estado na prestação de serviços, no fornecimento de bens e na regulação da economia.
* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap.
Saber o que pensa, como está estruturado e o modus operandi de qualquer governo são condições fundamentais para se relacionar com ele, tanto de modo propositivo quanto de maneira reativa. Com o governo Bolsonaro não será diferente. Se a sociedade civil e os cidadãos não entenderem essas dimensões, as chances de êxito em eventuais disputas com o governo serão praticamente nulas.
Sobre o pensamento do governo Bolsonaro, parece não haver dúvida de que se trata de um governo:
• de direita, do ponto de vista político;
• liberal, do ponto de vista econômico;
• fiscalista, do ponto de vista da gestão;
• conservador quanto aos costumes, valores e comportamentos; e
• temerário em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente.
Quanto à estruturação em núcleos de poder, parece evidente que se trata de um governo que foi organizado para falar para três públicos segmentados: os eleitores fundamentalistas do capitão; os setores de “classe média” moralista-justiceira; e o mercado.
Ninguém, entretanto, fala para o povo, especialmente para aquela parcela da população que depende das políticas e dos serviços públicos, ou para os trabalhadores ou as minorias.
Quem melhor sistematizou os supostos núcleos estratégicos do governo Bolsonaro foi o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presidente do Instituto Luís Gama, Silvio Almeida. Em artigo sob o título “Sobre política, distração e destruição”, ele definiu três núcleos:
1) o ideológico-diversionista;
2) o policial-jurídico-militar; e
3) o econômico.
O primeiro – ideológico-diversionista –, do qual também participam o presidente e seu núcleo familiar, serviria, na lógica do artigo do professor, apenas para manter a moral da “tropa” ou dos bolsonaristas em alta, dando a eles representatividade e acomodação psicológica ao ideário conservador que sustentou a campanha eleitoral.
Seriam os agitadores que serviriam para “fidelizar” os seguidores do bolsonarismo e, segundo o professor, também para “desviar a atenção”, além de “causar indignação e tristeza” entre os “progressistas”, enquanto os núcleos 2 e, principalmente, o 3 colocam em prática suas agendas.
Esse grupo faz, em nome do presidente, o que nos EUA Donald Trump faz pessoalmente, como tática de persuasão, e que Scott Adams em Win Biggly: in a World Whee Facts Don’t Matter1 classifica como “dissonância cognitiva”: lança ideias ou declarações polêmicas, tenham ou não conexão com realidade, para atrair o interesse da mídia e tirar o foco dos problemas que realmente importam para o país, pautando a imprensa, os intelectuais e até mesmo a oposição. Quando o tema perde importância, outra polêmica é criada em seu lugar, e assim permanece em evidência, mesmo que as suas “propostas” não levem a lugar algum.
O núcleo policial-jurídico-militar é composto de profissionais altamente qualificados, que sabem operar o Direito e a máquina repressiva. Como alerta Silvio Almeida, não existe “arminha de dedo”. A arma é de verdade mesmo. O jogo é bruto. Vai de cadeia à destruição física e moral dos adversários.
Seu objetivo, na lógica do artigo do professor Silvio Almeida, é dar sustentação aos outros dois núcleos, de um lado, dando corpo às alucinações do núcleo ideológico – do qual faz parte o próprio presidente, que vê “inimigos da pátria”, ideologia de gênero e “comunistas” em tudo quanto é lugar – por meio de mudanças legais, de abertura de processos civil e penal, além de perseguição e repressão aos críticos mais exaltados, e, de outro, utilizando os instrumentos jurídicos, fiscalizatórios e intimidatórios do Estado para acuar e amedrontar os opositores mais aguerridos da agenda neoliberal.
O terceiro núcleo, o econômico, formado por neoliberais convictos, tem como objetivo colocar em prática, em sua plenitude, a agenda do mercado, a verdadeira “ponte para o futuro”, que Michel Temer não teve tempo nem legitimidade para executar totalmente. Essa agenda consiste em:
• desindexação geral da economia;
• desvinculação orçamentária;
• privatização selvagem;
• abertura da economia;
• desregulamentação do trabalho, com a “livre” negociação; e
• restrição para acesso a benefício previdenciário, inclusive com aumento da idade mínima, aumento do tempo de contribuição e redução do valor do benefício.
O núcleo econômico, além de preparado e pragmático, tem convicções profundas, beirando o fundamentalismo, tanto da necessidade de um ajuste fiscal pelo lado da despesa, com redução do papel do Estado na exploração da atividade econômica, na prestação de serviços e no fornecimento de bens e programas sociais, quanto da urgência da alienação do patrimônio público e da abertura da economia ao capital estrangeiro, sempre sob o pretexto de que o enxugamento do Estado é condição indispensável para atrair investimento e gerar emprego e renda.
Com esse modus operandi, o governo – caso as forças prejudicadas pelos excessos e pela ausência de calibragem do governo em suas políticas não ajam com unidade e inteligência estratégica – conseguiria atingir seu objetivo, atraindo os “progressistas” contrários à pauta cultural, que envolve comportamentos, costumes e valores, para o embate ou a disputa com o núcleo ideológico-diversionista, enquanto o núcleo econômico tocaria a agenda real de desmonte, com a consequente transferência para o mercado dos poderes e do orçamento do Estado, sob o fundamento de valorização da livre iniciativa, da competitividade e, principalmente, da lucratividade.
Como diz o ditado árabe, enquanto os cães ladram, a caravana passa. Assim, sem muita dificuldade, a “cortina de fumaça” do debate cultural sobre “costumes” e declarações polêmicas permite que os verdadeiros interesses da sociedade, aqueles que pesam na mesa e no bolso do trabalhador, do aposentado, da pensionista, dos desempregados, sejam sacrificados no altar do verdadeiro Deus do governo Bolsonaro: o mercado.
Esse diagnóstico requer mudança de método e de narrativa no enfrentamento da agenda de desmonte do Estado de bem-estar social, que comporta basicamente três iniciativas governamentais: a reforma da Previdência, a alienação do patrimônio público e a reforma administrativa, com redução do tamanho e do papel do Estado na prestação de serviços, no fornecimento de bens e na regulação da economia.
* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap.
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