sábado, 30 de março de 2019

Resistir pela arte aos cultuadores do ódio

Por Leonardo Lusitano, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

O governo Bolsonaro é uma pulp sensacionalista, impressa em material de segunda classe. Seus membros cultuam a estupidez e o senso comum, tentando tornar o reino das opiniões e a paixão pela ignorância algo visto como uma grande novidade criativa, a ser valorizada positivamente e até mesmo cultuada.

No culto da ignorância e da estupidez, o Ministério da Educação tem destaque. Um pouco antes do carnaval, o MEC endereçou uma carta às escolas, assinada pelo ministro Vélez. A mensagem deveria se lida no primeiro dia de aula a professores, alunos e demais funcionários da escola, com todos perfilados diante da bandeira do Brasil, juntamente da execução do Hino Nacional. O MEC ainda solicitou que o representante da escola filme trechos curtos da leitura da carta e da execução do hino e que, em seguida, envie o arquivo de vídeo, com os dados da escola.

Sabemos que cantar o Hino Nacional em escolas públicas e particulares de ensino fundamental é obrigatório, de acordo com a lei 12.031/2009. A lei foi sancionada pelo então presidente Lula e assinada pelo então ministro da educação, Fernando Haddad. Como se vê, associar progressistas a uma tentativa de negar nossa pátria é uma forma de contagiar pela ignorância.

Qual seria então o problema com a carta de Vélez? De acordo com o artigo 17 do ECA não é permitido gravar estudantes sem autorização prévia. Também é preciso lembrar que essa carta fere a autonomia de entes da federação e de gestores escolares. A secretaria de educação e esportes de Pernambuco, por exemplo, afirmou que não aplicaria o tal comunicado no Estado.

Como se fosse pouco, a carta diz que deveria ser ligo o slogan de campanha de Bolsonaro, o que, de acordo com o artigo 37 da Constituição Federal, infringia os princípios de impessoalidade e publicidade. A carta também feria o princípio de laicidade do Estado. Em escolas públicas, Deus não está acima de todos. Diante de possíveis sansões administrativas e civis, os cultuadores da ignorância recuaram novamente.

Chegou o carnaval. Nem nos festejos de momo os conservadores fora da lei deram trégua. O deputado estadual do Rio que quebrou uma placa feita para homenagear a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 durante seu mandato, se disse mangueirense. Afirmou que não cantaria o samba enredo da escola, que homenageou indígenas, negros e pobres – o que inclui Marielle. Seu motivo: disse ser democrata e legalista e que não via representação popular no tema, que seria fruto de uma ditadura cultural esquerdista. O deputado tenta dizer que uma democracia se restringe ao cumprimento de leis (se o nome de uma rua é legal, uma homenagem simbólica seria ilegal). Ocorre que democracias excedem leis. O que constitui uma democracia é o poder do povo, sua participação na vida política. A resposta do carnavalesco da verde e rosa, Leandro Vieira, foi irretocável: “Ditadura cultural é impor a supremacia das versões históricas onde índios, negros e pobres ocupam lugares subalternos e acabam não alcançando o protagonismo que nos daria o entendimento de fato do país que somos”. Para Vieira, o deputado não aprendeu o valor do índio e faltou à aula que lhe daria conhecimento da luta de homens e mulheres negras. “É por isso que exibe orgulhoso sua ignorância emoldurada feito um diploma na sala”.

Após esse baile, foi a vez do homem das casernas atacar. Tentando desqualificar a maior festa popular do Brasil e a voz das ruas que já diminui sua popularidade, o homem das casernas difamou o Carnaval postando um vídeo pornográfico que generalizava a festa como se todos os foliões fizessem práticas sadomasoquistas em público. Já que não há sadismo maior do que chamar o homem das casernas de mito, acabou ridicularizado mundialmente. Nem o deus mercado gostou. Não faltaram exemplos de solidariedade durante os festejos, mas o homem das casernas só vê medo e raiva. O que esperar de um ignorante que cultua o ódio? Como a Mangueira lembrou, nosso povo é bonito, alegre e resistente. Sabemos ser solidários. Temos referências de lutas por justiça. Figuras que inspiram e expiram ódio como o homem das casernas são oficiais, apaixonadas por poder, retratos sem sangue na parede; não são populares. Por isso são seres minúsculos. Nosso povo tem antepassados gigantes desde os tupinambás até Marielle. O ódio e a ignorância não podem nos tornar minúsculos. Em vez de difamar foliões, por que não apresentar propostas específicas contra a violência e o desemprego?

Se já não bastasse, um site de reacionários difamou uma jornalista, alegando que ela disse querer arruinar a família das casernas e o governo. O presidente replicou a denúncia e a profissional sofreu hostilidades. É a combinação perfeita entre a desonestidade de alguns e a paixão por crenças de outros, associada ao desprezo por fatos. Essa é a forma de operar na nova política. Depreciar fontes de pesquisa e conhecimentos para afetar as pessoas por suas crenças assustadas e raivosas. Na manhã seguinte, descobre-se que o pai da jornalista é um dos autores da reportagem informando a prisão de PMs acusados de matar a vereadora Marielle Franco.

Quem votou em Lula, Dilma e mesmo em FHC desejava reformas que obrigassem elites cruéis e cobiçosas a respeitar a dignidade do povo. Houve muitos avanços mas não foram suficientes para nos livrar de serpentes individualistas e fundamentalistas, chocadas na primeira crise econômica.

Cidadãos empobrecidos, raivosos, paranoicos, ignorantes, individualistas, consumistas e sem cidadania foram contaminados por todo tipo de ressentimento e agora servem de tropa de choque de banqueiros, fazendeiros e especuladores. Não temos um governo com um mínimo de espírito público. Temos fundamentalistas exploradores de crenças e amigos de milicianos atuando como gerentes, ou melhor; capatazes de bilionários. Como criar formas de pensar e sentir que reúnam os saberes, a alegria e a vontade de beleza do povo brasileiro e transformar essas sensibilidades em novas práticas que sejam éticas e solidárias?

Muitas vezes, em contextos históricos difíceis como este atual, artistas e jovens tiraram do virtual e trouxeram para o mundo atual novas possibilidades, novas durações temporais onde os corpos possam vibrar livres do ódio e criar.

Se esse é um tempo de crenças inabaláveis, acreditamos em artistas. Três dias antes do segundo turno das eleições, quando os cultuadores da ignorância e da violência estavam ansiosos e orgulhosos, Roger Waters tocou no Maracanã. Waters é um grande artista, sua grandeza está em não ser panfletário; consegue falar politicamente, criando efeitos. Defende a resistência contra abusos que impossibilitam a vida: inferiorização de mulheres, ditaduras, torturas, militarização, antissemitismo, racismo, crimes contra imigrantes, poluição de oceanos, toda ordem de fascismos.

Através de músicas como Welcome to the machine, Another brick in the wall, Money, Pigs, Us and then e Mother, são liberadas imagens de fábricas que produzem um mar de sangue – que se torna um mar de punhos erguidos, crianças pedindo resistência diante do autoritarismo, imagens de uma indústria sinistra brotando da terra ao som de sirenes e de helicópteros; imagens de porcos festejando sua riqueza com um brinde de champanhe e um cartaz onde se lê “porcos governam o mundo”. Tirando a máscara suína, metamorfoseado num humano, Roger diz “danem-se os porcos”. Surge um porco gigante que sugere: seja humano.

O efeito dessas combinações de sons e imagens vai criando um mundo onde ganância e vontade de poder não têm lugar. Foi incrível perceber isso afetando pessoas ressentidas que estavam presentes na plateia. Vi dentes cerrados urrando “Maduro”, “comunismo”, ofendendo a família de Marielle Franco, perguntando “porque ele foi falar de político logo agora”. Muitos abandonaram seus assentos antes do final. Não suportaram sentir que defendem atrocidades e que não é preciso ser de esquerda e nem um comunista radical para resistir à paixão pelo dinheiro, pelo poder, pela exploração desmedida da natureza e à destruição dos outros em benefício de um “nós”. Durante a execução de Money, era possível ler a seguinte frase: “Não existem vencedores. Se você ganha, nós perdemos”.

Enquanto em Laranja Mecânica de Stanley Kubrick um sociopata era exposto a cenas de violência, no concerto de Waters cultuadores da violência eram expostos à potência da arte de sensibilizar, de fazer hesitar em vez de ter certezas absolutas, de nos sentir ter um destino em comum com outros humanos – essa é a grande tragédia da vida. A arte é uma forma de criar que produz novos circuitos. Novas relações. Intensifica existências que às vezes não percebemos, que acompanham virtualmente o nosso tempo, mas que dependem de artistas para ganhar concretude. Dom Quixote já existia nos corações de muitos homens e mulheres. Precisou de Cervantes para ganhar corpo. Quem tem mais carne e sangue? Quem existe de uma forma mais intensa? Hamlet ou Ricardo Vélez e Sergio Moro juntos?

Que se torne cada vez mais insuportável para seres contaminados pela peste do ódio gostar de algo bonito, forte, ético. A peste que hoje circula afeta a capacidade de ter coerência, apodrece corpo, sentidos e espírito. Waters é conosco. A ideia de que somos “eles”, os outros, os inimigos, porque defendemos pautas humanitárias, não resiste a um show de rock. Por isso a arte é o modo mais forte de resistência. Uma resistência criadora.

Criar é resistir à opinião corrente e a todo tipo de violência e ignorância que faz do humano inimigo da vida. E o artista é quem libera uma vida potente, uma vida mais do que pessoal. Não é simplesmente a vida dele. Nesse sentido, criar seria resistir ao que homens fazem com sua individualidade, com seus sonhos mesquinhos por poder. Resistir a essa baixeza que aprisiona a vida. Como diz o poeta e músico Leonard Cohen: “Não pude deixar de ouvir essa discussão. Não pude deixar de ouvir esses gritos de dor. E sinto que, faça o que fizer, de novo voltarão. Mas penso que sou capaz de os curar. Sou louco, mas penso que sou capaz de os curar… com essa canção”.[1]

* Leonardo Lusitano é professor de história no município de Itaboraí, mestre em Letras pela UFRJ e doutorando em Filosofia pela Uerj.

Nota

[1] “I’ve been listening to all the dissension

I’ve been listening to all the pain

And I feel that no matter what I do for you

It’s gonna come back again

But I think that I can heal it

I’m I think that I can heal it

I’m a fool but I think that I can heal it

with this song.”

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