segunda-feira, 27 de maio de 2019

Nada de novo no front

Por Roberto Amaral, em seu blog:

Não obstante os riscos que corre a ordem institucional democrática, o processo político brasileiro segue sua rota de extrema previsibilidade. Em face dos percalços e dos sustos – os solavancos de nosso cotidiano –, ninguém, nenhuma força política, pode alegar qualquer sorte de surpresa. O agravamento do desgaste do novo regime, à mercê, por enquanto, da crassa imperícia do capitão e seus ajudantes imediatos, é a crônica de fatos de há muito escritos pois esperados desde o primeiro dia do governo, sendo o capitão personagem do baixo clero há cerca três décadas. Todos os atores da trama (pessoas e instituições) são conhecidos em seus propósitos, objetivos e limitações. Não há nada de novo na cena.

Haverá surpresa diante do fracasso do capitão e sua coorte de astrólogos e místicos de variados matizes, aventureiros e milicianos? Alguma surpresa diante do esforço visando a destruir a educação, a pesquisa e a inovação tecnológica, células mater de qualquer projeto de desenvolvimento nacional? Ou, diante do projeto protofascista em curso, o assalto à razão — manifesto no ódio à filosofia e às chamadas ciências humanas de um modo geral –, não passa de mera circunstância?

Há, porém, um fato objetivo a considerar. O dito “mercado” — que precisa de um governo populista-autoritário para poder realizar seu projeto de reformas liberais ultraconservadoras (portanto antipopulares) –, já teme, e isto igualmente não pode constituir surpresa para ninguém, pela continuidade desse programa. E as forças armadas, fiéis escudeiras do novo regime, que é delas, delas e de suas adjacências e ampliações, polícia federal, polícias militares estaduais, polícias civis e todo o aparato repressor de um modo geral, também já receiam sua identificação com o rotundo descalabro do governo que as representa. e as ameaça com o julgamento da História.

Nau sem rumo, o governo coleciona fracassos em todas as frentes, da arena política – até hoje não conseguiu construir uma maioria parlamentar e coleciona seguidas derrotas nas duas casas do Congresso – à frente econômica, transformando a estagnação em recessão com o aumento do desemprego, a queda da produção industrial e dos serviços e a consequente queda da arrecadação dos impostos.

A desigualdade de renda que já é a maior em sete anos, atingiu seu maior patamar no primeiro trimestre deste 2019. Os mais ricos tiveram um incremento de 3,3% e os mais pobres uma queda de 20%!

Nos últimos sete anos a renda acumulada dos mais ricos aumentou 8,5 vezes e a dos mais pobres caiu 14%! (dados IBRE/FGV).

Esses números ilustram, em sua contundência, a díade esquerda/direita em face do projeto de país.

Os fracassos do bolsonarismo alimentam o desamor popular de que os baixos índices de aprovação do presidente são apenas um indicador, pois a calorosa desaprovação do governo já é gritada nas ruas, como se pode ler das manifestações populares que no último dia 15 ocuparam as ruas de cerca de 241 cidades brasileiras, reunindo algumas dezenas de milhares de jovens, professores e trabalhadores formando uma corrente que caminha para muito além dos limites da esquerda orgânica, que se candidata, finalmente, a exercer uma oposição programática e ativa.

Estar-se-ia efetivando nas ruas a frente ampla que os partidos ainda não conseguiram costurar no front político?

A crise de governança indica aquela hora – grave hora – em que, no prenúncio do naufrágio, as torres de comando jogam carga ao mar. De outra parte, ameaçado de isolamento letal, o bolsonarismo procura seu colete salva-vidas no acirramento das paixões, aprofundando as cisões. As pedras se movem no tabuleiro e os jogadores estão a postos.

Mas a carta-manifesto do capitão (que ele, indigente, sequer assina) é patética, pois já nasce velha; é o pastiche de filmenoir, classe B, rejeitado pela plateia em 1961 quando, na sua tentativa de golpe de Estado por dentro do Governo, Jânio Quadros apelou para a denúncia da ingovernabilidade. Dizia ele haver sido impossível governar com o Congresso, com a imprensa e com a ordem democrática e ao final se anunciava vencido pelas ‘forças ocultas’. Com a renúncia pro-forma esperava promover o levante popular que o levaria de volta ao Planalto coroado com poderes absolutos. O capitão, que, por enquanto, aspira apenas a sobreviver, diz ser impossível governar segundo as regras democráticas e se diz vencido pelas ‘corporações’ (que não ousa nomear) que teriam tomado o comando das instituições republicanas. Apela para a ação direta, que Collor também tentou e tentam, fracassando ou não, todos os candidatos a ditador depois de promoverem a desmoralização da politica, dos políticos e dos partidos: “Quero contar com a sociedade para juntos revertermos essa situação e colocarmos o país de volta ao trilho do futuro promissor”.

Espera que ‘a sociedade’ saia às ruas em sua defesa e já marca data para o enfrentamento popular, ou para mais uma ‘marcha’.

A questão central, porém, não está na continuidade do lamentável capitão no Palácio da Alvorada, ou na eventual sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro, alternativa que frequenta os escaninhos do poder – da Avenida Paulista ao Comando do Exército, e de Washington a Brasília. O Congresso, em busca de ativismo, aguarda a definição de seu papel – um ditado que frequentemente vem de fora, um bilhete ou uma ordem de serviço que chega espetada na ponta de uma baioneta, como ocorreu em 1955 (com as interdições de Café Filho e Carlos Luz), em 1961 (com a aprovação da emenda parlamentarista) e em 1964, com a inconstitucional declaração de vacância da Presidência, a posse da Ranieri Mazilli e a posterior eleição do marechal Castello Branco.

A questão fundamental para o país, e para tanto devem estar atentas as forças progressistas, não é se o titular nominal da presidência se chama Manuel ou Joaquim, mas qual a correlação de forças que representa e, finalmente, qual o programa de governo que lhe cumpre executar.

É claro que as figuras grotescas do capitão e seus áulicos e ministros –Vélez, o idiota, Weintraub, o mentecapto, o ridículo Ernesto e a constrangedora Damares (aquela que viu Cristo pendurado num galho de goiabeira) – incomodam, mas o que mais incomoda e assusta é o projeto de desconstrução nacional que pode prosseguir com esses pobres personagens ou com outros personagens, mais incompetentes ou menos incompetentes, se não tivermos forças para deter a tragédia. O que incomoda, assusta e ameaça é o projeto ultraliberal do “Posto Ipiranga” que encanta os rentistas, cegos para a destruição da indústria nacional; o que precisa ser detido – obra que cobra urgência – é o avançado projeto de destruição da educação e do ensino em geral e da universidade e da pesquisa e da tecnologia e da inovação, sem o que não podemos aspirar a ser nada mais, senão a uma cloaca em meio a um mundo que avança na acumulação do conhecimento, no progresso e no desenvolvimento.

Está em jogo a retomada do projeto de nação independente e soberana.

O que incomoda, e precisa ser rejeitado, é o servilismo aos interesses econômicos, políticos, e estratégico-bélicos do governo Trump, contra nossos interesses, de povo, nação e País.

Como nos definirmos diante de tudo isso quando o governante, preposto do novo regime (condomínio do qual fazem parte nossas forças armadas, o mercado nacional e seus cordéis internacionais e interesses que vão bater na Casa Branca e em Walt Street) parece insustentável?

A decifração dessa esfinge é o desafio que a esquerda brasileira tem pela frente, e certamente ela compreenderá a construção de uma frente realmente ampla, para além da própria esquerda, comprometida visceralmente com a institucionalidade e a ordem democrática, o desenvolvimento econômico-social, o combate à pobreza e a recuperação da dignidade nacional.

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