segunda-feira, 10 de junho de 2019

Moro, Dallagnol e o “imperialismo jurídico”

Por Marcelo Zero

As revelações do Intercept demonstram o que todos já sabiam, mas não tinham como provar cabalmente: a condenação de Lula é uma gigantesca farsa jurídica.

Em qualquer país minimamente civilizado, o processo contra Lula, bem como boa parte da Lava Jato, já teriam sido anulados há muito, face aos gritantes atropelos da presunção da inocência e do devido processo legal.

De fato, a Lava Jato implantou verdadeiro vale tudo contra o PT e Lula, o que incluiu conduções coercitivas ilegais, tortura psicológica de testemunhas, indução de delações direcionadas, vazamentos ilegais de escutas telefônicas, uso equivocado da inferência bayesiana e um oceano de convicções políticas num deserto de provas.

Até mesmo o escritório dos advogados de Lula foi grampeado pelos justiceiros convictos. Nos EUA, país que inspira nossos justiceiros, o grampeamento de um escritório de advocacia é crime gravíssimo, que anula automaticamente qualquer processo e leva à cadeia seus autores.

Mas, com o apoio da imprensa e dos verdadeiros donos do poder, os nossos justiceiros convictos tornaram-se heróis. Heróis da causa do antipetismo e de um protofascismo galopante, que acabou triunfando em eleições manipuladas pelas fake news e pela fake justice.

Assim, o jogo combinado entre o juiz e os procuradores serviu a um grande propósito político, além das meras ambições pessoais.

Contudo, isso é apenas uma pequena parte da história.

A Lava Jato distorcida e politicamente motivada não foi criada e conduzida por Moro ou Dallagnol.

Ela foi criada e instruída pelo Departamento de Estado dos EUA (DOJ). Isso é público e notório.

Com efeito, a influência dos EUA nas procuradorias brasileiras é objeto de várias mensagens diplomáticas norte-americanas, vazadas pelo Wikileaks e amplamente divulgadas em outras reportagens. Essas mensagens mostram como a Lava Jato foi criada basicamente pelo DOJ e por ele conduzida conforme seus próprios métodos.

É fato que os EUA se utilizam de suas próprias leis e do seu sistema jurídico para impor seus interesses no mundo.

Note-se, a esse respeito, que a Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte-americana que busca coibir que companhias façam pagamentos a funcionários de governos em troca de vantagens a seus negócios, tem nítido caráter extraterritorial.

De fato, para o Departamento de Justiça norte-americano (DOJ), os atos de corrupção investigados podem ter ocorrido em qualquer país, desde que a empresa mantenha vínculos, ainda que mínimos, com os EUA. Assim, enquadram-se nessa lei empresas que tenham ações em bolsas americanas, investimentos ou mesmo contas bancárias nos EUA.

Na visão do governo norte-americano, essa lei (bem como outras) teria lhe propiciado uma espécie de jurisdição internacional para investigar casos de corrupção em todo o mundo. Como dificilmente uma empresa internacionalizada não tem interesses nos EUA, isso submete todas as empresas de alguma relevância ao crivo jurídico e político da lei norte-americana.

Dessa maneira, o combate aparentemente neutro à corrupção em nível internacional pode ser facilmente desvirtuado para beneficiar apenas interesses geopolíticos e geoeconômicos específicos.

Em seu recente livro “The American Trap” (A Armadilha Americana), Frederic Pierucci, ex-executivo da companhia francesa Alstom, denuncia que os EUA usam suas leis e seu sistema de cooperação jurídica internacional como “arma econômica” para eliminar concorrentes de empresas norte-americanas.

Haveria, assim, uma espécie de “imperialismo jurídico”, que contribui decisivamente para reforçar os interesses econômicos e políticos dos EUA em todo o mundo.

Pierucci foi preso pelo FBI em Nova Iorque, com base na citada lei dos EUA, sob a alegação de que havia participado de um pagamento de propina na Indonésia. Independentemente da consistência ou não da acusação, o absurdo salta aos olhos: um executivo de uma empresa francesa, que teria cometido um suposto crime na Indonésia, é preso pelos EUA, em território norte-americano, com base numa lei norte-americana.

O fato concreto é que essa pressão do DOJ dos EUA sobre a Alstom resultou na aquisição de boa parte dessa empresa pela General Electric dos EUA, que estava de olho na firma francesa há muito tempo. Coincidência?

O mesmo acontece agora com a chinesa Huawei, que os EUA querem destruir. O DOJ acionou o governo canadense para prender sua CEO, Meng Wanzhou, em Vancouver, sob a alegação de ter violado sanções econômicas dos EUA ao Irã. Coincidência?

Outro fato concreto é que a operação de Moro e Dallagnol contribuiu para destruir a cadeia de petróleo e gás, ensejou a venda, a preços aviltados, das reservas do pré-sal, solapou a nossa competitiva construção civil pesada e comprometeu projetos estratégicos na área da defesa, como o relativo à construção de submarinos nucleares. Conforme estudo da consultoria GO Associados, a Lava Jato teria ocasionado uma diminuição do PIB da ordem de 2,5%, apenas em 2015, contribuindo para desempregar centenas de milhares de brasileiras e brasileiros. Coincidência?

Duvido.

Objetivamente, a Lava Jato distorcida acabou beneficiando os interesses geoeconômicos e geopolíticos dos EUA no Brasil e em toda nossa região. Já os interesses objetivos que foram fortemente prejudicados foram os brasileiros.

A perseguição a Lula e ao PT foi apenas um meio para se alcançar fins maiores. E Moro e Dallagnol foram apenas peões num jogo de poder mundial, do qual ou eles não têm consciência ou ao qual serviram de forma proposital, o que seria muito pior. Prefiro não acreditar nessa hipótese.

E há também coisas que ainda não sabemos. Por exemplo, o que levou a Embraer a aceitar tão prontamente ser comprada pela Boeing? Foram apenas considerações de negócios ou o DOJ, de alguma forma, “influenciou” a venda? Salientamos que a Embraer foi acusada pelo DOJ de ter praticado propina em compras de aeronaves na República Dominicana e na Índia. Coincidência? Talvez não.

Num país soberano, isso tudo seria investigado a sério e os eventuais culpados exemplarmente punidos.

No Brasil de Bolsonaro, no país de submissão total aos EUA e no qual Moro e Dallagnol são tratados como heróis, isso dificilmente ocorrerá.

Nesse triste país, já praticamente transformado numa colônia, o “imperialismo jurídico” do DOJ fincou raízes profundas em nosso judiciário.

É provável que uma investigação sobre ao assunto, se vier, se restrinja às participações pessoais de Moro e Dallagnol, o que poderia até beneficiar Bolsonaro, que aparentemente quer livrar-se de Moro. Uma operação de “contenção de danos” para preservar o Executivo e o Judiciário já está em andamento.

Se assim ocorrer, sequer a superfície do problema será arranhada.

Moro, Dallagnol e até o próprio Bolsonaro são mero peões. Suas eventuais ilegalidades são apenas instrumentos para a grande ilegalidade de se destruir a democracia, a soberania e a economia do país.

Lula já tinha avisado que a questão central é a da soberania.

Precisa desenhar?

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