Charge publicada no jornal Página 12 |
A Argentina enfrenta mais uma crise econômica de grandes proporções e consequências desastrosas para os trabalhadores. Neste cenário ocorrem as eleições gerais no próximo domingo com a polarização entre o atual presidente de direita, Maurício Macri, e o candidato peronista, Alberto Fernandez, cuja candidatura se poderia qualificar como de centro-esquerda. Para entender os imensos problemas econômicos que esperam o próximo presidente, o ComunicaSul entrevistou em Buenos Aires o economista Julio Gambina, doutor em ciências sociais e professor nas Universidades Nacionais de Rosário e San Luis.
Qual a natureza da atual crise econômica Argentina? Quando ela começou e que fatores a sustentam?
A Argentina está em um processo combinado de elevada inflação (55% no último ano, de outubro de 2018 a setembro de 2019) e de recessão com uma queda do PIB para 2019 estimada em 3% ou mais. Os indicadores sociais são alarmantes, com pobreza de 35,4% em junho de 2019 e que pode chegar a 40% até o final deste ano. O desemprego supera os 10%. O endividamento alcança 100% do PIB, com uma forte hipoteca com o FMI e suas condicionantes para um forte ajuste fiscal e exigência de reformas estruturais reacionárias: reforma trabalhista e reforma da previdência.
A crise é econômica e política, com um governo de direita que não pode repetir um segundo mandato. Tudo indica que Macri será derrotado nas eleições de 27 de outubro. Com Macri se avançou em medidas reacionárias para concentrar a renda e a riqueza, mas a mobilização popular condensou uma rejeição eleitoral massiva nas primárias de 11 de agosto. O governo Macri, entre dezembro de 2015 e dezembro de 2019 é o gestor da dura realidade atual para a maioria do povo argentino, com um núcleo muito reduzido de beneficiários, entre os quais estão os grandes produtores e exportadores e os grandes especuladores.
A atual crise ainda tem reflexos da ação dos fundos abutres estadunidenses, aos quais Cristina resistiu, mas Macri se entregou num acordo muito prejudicial à economia argentina? Macri tinha opções ao acordo feito?
O endividamento cresceu durante o governo Macri. O primeiro elemento foi um acordo com os fundos abutres, que assumiu uma nova dívida de 16 bilhões de dólares no começo de sua gestão. Foi um tema favorecido por grande parte da oposição, entre eles do peronismo. Ainda existem credores que não fizeram acordo da dívida antiga e seguem demandando judicialmente contra a Argentina. A dívida é um tema antigo que transcende o atual governo da direita de Macri. Este governo assumiu uma dívida por 100 anos. O governo Macri só funcionou graças ao endividamento, com coroamento do crédito do FMI de 57 bilhões de dólares, dos quais a Argentina recebeu perto de 40 bilhões e o restante só será entregue ao novo governo. A hipoteca é gigantesca.
Em toda a crise sempre há ganhadores e perdedores. Quais os setores da economia que estão ganhando e quais os que estão perdendo?
Ganham os grandes produtores e exportadores do agronegócio, especialmente de soja; os grandes empresários exportadores dentre os quais a industria automobilística e aquelas voltadas ao mercado externo; as grande empresas privatizadas de serviços públicos, que dolarizaram suas tarifas; as mega mineradoras a céu aberto; as petroleras e seus investimentos em hidrocarbonetos não convencionais (Xisto) e os bancos, o mercado de capitais e os grandes especuladores responsáveis pela fuga de capitais. Os perdedores são os trabalhadores e trabalhadoras, ativos e aposentados, regulares e irregulares; pequenos e médios empresários associados ao mercado interno e o grosso da população de baixa renda.
No próximo domingo, 27, a Argentina elegerá um novo presidente numa eleição polarizada entre Macri e o candidato do peronismo rebatizado de kirschnerismo. Quais as principais diferenças entre as duas propostas sobre como sair da crise?
Macri continuará com sua política antipopular. O peronismo terá que modificar alguns rumos. Terá sobre si a hipoteca do FMI e apenas assinala que “renegociará. A esquerda exige uma investigação, auditoria e suspensão dos pagamentos da dívida. Isso não ocorrerá sem uma forte cobrança por parte da sociedade. O fator determinante será a mobilização e organização dos movimentos populares e de trabalhadores. O macrismo deve ficar com uns 35% de representação parlamentar e vários obstáculos no plano da economia que dificultará as ações do governo. A mobilização será mais determinante que a vontade do próprio futuro governo do peronismo.
Os movimentos sociais sempre tiveram capacidade de mobilização na Argentina. O que falta?
O problema não é a organização e a luta do movimento obreiro e popular, mas a ausência de uma síntese política que reúna projeto popular e estratégia de classe, antiimperialista e anticapitalista. Esse é o problema do movimento social e popular na Argentina.
Na sua opinião de economista, que medidas devem ser tomadas de imediato para sair da crise sem mais sacrifícios para o povo?
Investigação e auditoria da dívida, suspendendo-se os pagamentos enquanto se investiga; desdolarização da economia (tarifas, combustíveis, etc); nacionalização (socialização) do sistema financeiro e do comércio exterior e um novo projeto produtivo baseado na soberania. Isto exige a formação de um bloco popular anticapitalista e antiimperialista de ampla ação de massas, com consci6encia social para a emancipação e com capacidade para a ação política que resuma a tradição histórica de lutas com os novos contingentes, aliado às demandas do movimento de mulheres e diversidades, o ambientalismo e outras formas de resistência fortalecidas nos últimos anos.
É possível iniciar um movimento de reindustrialização ao mesmo tempo em que se enfrentam os problemas financeiros imediatos?
Os problemas são conjuntos: Produção e circulação, exatamente como se explica Karl Marx no Tomo I de O Capital.
Vencendo os peronistas na Argentina, haverá condições de diálogo sobre o Mercosul com o Brasil de Bolsonaro?
Dialogo haverá, já que o Brasil é o principal sócio comercial da Argentina e o capitalismo não se suicida. Acredito que, passadas as eleições, tanto o peronismo como Bolsonaro, baixarão as tensões discursivas e, para além dos conflitos tradicionais, haverá entendimento, especialmente comercial.
Na sua opinião o alinhamento automático de Bolsonaro com os EUA pode fazer ressurgir a ideia de ALCA?
Não é o que parece levando em conta as lutas dos povos da região, seja no Haiti ou no Equador. Mais ainda com a pressão que impõe a nova situação da Argentina. Um novo mandato de Evo Morales na Bolívia e da Frente ampla no Uruguai dificultarão os planos da política exterior dos EUA e das direitas contra Venezuela, Cuba. A luta continua pela emancipação da nossa América.
* Julio Gambina é Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Professor de Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de San Luis, Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas, FISYP, foi integrante da direção do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, CLACSO (2006-2012). Integra la Presidência da Sociedade Latinoamericana de Economia Política y Pensamiento Crítico, SEPLA desde 2016. É Diretor do Instituto de Estudos e Formação da CTA, IEF-CTA Autónoma, membro do Conselho Acadêmico da ATTAC-Argentina e dirige o Centro de Estudos e Formação da Federação Judicial Argentina-FJA.
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Qual a natureza da atual crise econômica Argentina? Quando ela começou e que fatores a sustentam?
A Argentina está em um processo combinado de elevada inflação (55% no último ano, de outubro de 2018 a setembro de 2019) e de recessão com uma queda do PIB para 2019 estimada em 3% ou mais. Os indicadores sociais são alarmantes, com pobreza de 35,4% em junho de 2019 e que pode chegar a 40% até o final deste ano. O desemprego supera os 10%. O endividamento alcança 100% do PIB, com uma forte hipoteca com o FMI e suas condicionantes para um forte ajuste fiscal e exigência de reformas estruturais reacionárias: reforma trabalhista e reforma da previdência.
A crise é econômica e política, com um governo de direita que não pode repetir um segundo mandato. Tudo indica que Macri será derrotado nas eleições de 27 de outubro. Com Macri se avançou em medidas reacionárias para concentrar a renda e a riqueza, mas a mobilização popular condensou uma rejeição eleitoral massiva nas primárias de 11 de agosto. O governo Macri, entre dezembro de 2015 e dezembro de 2019 é o gestor da dura realidade atual para a maioria do povo argentino, com um núcleo muito reduzido de beneficiários, entre os quais estão os grandes produtores e exportadores e os grandes especuladores.
A atual crise ainda tem reflexos da ação dos fundos abutres estadunidenses, aos quais Cristina resistiu, mas Macri se entregou num acordo muito prejudicial à economia argentina? Macri tinha opções ao acordo feito?
O endividamento cresceu durante o governo Macri. O primeiro elemento foi um acordo com os fundos abutres, que assumiu uma nova dívida de 16 bilhões de dólares no começo de sua gestão. Foi um tema favorecido por grande parte da oposição, entre eles do peronismo. Ainda existem credores que não fizeram acordo da dívida antiga e seguem demandando judicialmente contra a Argentina. A dívida é um tema antigo que transcende o atual governo da direita de Macri. Este governo assumiu uma dívida por 100 anos. O governo Macri só funcionou graças ao endividamento, com coroamento do crédito do FMI de 57 bilhões de dólares, dos quais a Argentina recebeu perto de 40 bilhões e o restante só será entregue ao novo governo. A hipoteca é gigantesca.
Em toda a crise sempre há ganhadores e perdedores. Quais os setores da economia que estão ganhando e quais os que estão perdendo?
Ganham os grandes produtores e exportadores do agronegócio, especialmente de soja; os grandes empresários exportadores dentre os quais a industria automobilística e aquelas voltadas ao mercado externo; as grande empresas privatizadas de serviços públicos, que dolarizaram suas tarifas; as mega mineradoras a céu aberto; as petroleras e seus investimentos em hidrocarbonetos não convencionais (Xisto) e os bancos, o mercado de capitais e os grandes especuladores responsáveis pela fuga de capitais. Os perdedores são os trabalhadores e trabalhadoras, ativos e aposentados, regulares e irregulares; pequenos e médios empresários associados ao mercado interno e o grosso da população de baixa renda.
No próximo domingo, 27, a Argentina elegerá um novo presidente numa eleição polarizada entre Macri e o candidato do peronismo rebatizado de kirschnerismo. Quais as principais diferenças entre as duas propostas sobre como sair da crise?
Macri continuará com sua política antipopular. O peronismo terá que modificar alguns rumos. Terá sobre si a hipoteca do FMI e apenas assinala que “renegociará. A esquerda exige uma investigação, auditoria e suspensão dos pagamentos da dívida. Isso não ocorrerá sem uma forte cobrança por parte da sociedade. O fator determinante será a mobilização e organização dos movimentos populares e de trabalhadores. O macrismo deve ficar com uns 35% de representação parlamentar e vários obstáculos no plano da economia que dificultará as ações do governo. A mobilização será mais determinante que a vontade do próprio futuro governo do peronismo.
Os movimentos sociais sempre tiveram capacidade de mobilização na Argentina. O que falta?
O problema não é a organização e a luta do movimento obreiro e popular, mas a ausência de uma síntese política que reúna projeto popular e estratégia de classe, antiimperialista e anticapitalista. Esse é o problema do movimento social e popular na Argentina.
Na sua opinião de economista, que medidas devem ser tomadas de imediato para sair da crise sem mais sacrifícios para o povo?
Investigação e auditoria da dívida, suspendendo-se os pagamentos enquanto se investiga; desdolarização da economia (tarifas, combustíveis, etc); nacionalização (socialização) do sistema financeiro e do comércio exterior e um novo projeto produtivo baseado na soberania. Isto exige a formação de um bloco popular anticapitalista e antiimperialista de ampla ação de massas, com consci6encia social para a emancipação e com capacidade para a ação política que resuma a tradição histórica de lutas com os novos contingentes, aliado às demandas do movimento de mulheres e diversidades, o ambientalismo e outras formas de resistência fortalecidas nos últimos anos.
É possível iniciar um movimento de reindustrialização ao mesmo tempo em que se enfrentam os problemas financeiros imediatos?
Os problemas são conjuntos: Produção e circulação, exatamente como se explica Karl Marx no Tomo I de O Capital.
Vencendo os peronistas na Argentina, haverá condições de diálogo sobre o Mercosul com o Brasil de Bolsonaro?
Dialogo haverá, já que o Brasil é o principal sócio comercial da Argentina e o capitalismo não se suicida. Acredito que, passadas as eleições, tanto o peronismo como Bolsonaro, baixarão as tensões discursivas e, para além dos conflitos tradicionais, haverá entendimento, especialmente comercial.
Na sua opinião o alinhamento automático de Bolsonaro com os EUA pode fazer ressurgir a ideia de ALCA?
Não é o que parece levando em conta as lutas dos povos da região, seja no Haiti ou no Equador. Mais ainda com a pressão que impõe a nova situação da Argentina. Um novo mandato de Evo Morales na Bolívia e da Frente ampla no Uruguai dificultarão os planos da política exterior dos EUA e das direitas contra Venezuela, Cuba. A luta continua pela emancipação da nossa América.
* Julio Gambina é Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Professor de Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Rosario e da Universidade Nacional de San Luis, Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas, FISYP, foi integrante da direção do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, CLACSO (2006-2012). Integra la Presidência da Sociedade Latinoamericana de Economia Política y Pensamiento Crítico, SEPLA desde 2016. É Diretor do Instituto de Estudos e Formação da CTA, IEF-CTA Autónoma, membro do Conselho Acadêmico da ATTAC-Argentina e dirige o Centro de Estudos e Formação da Federação Judicial Argentina-FJA.
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* O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está cobrindo as eleições na Bolívia, Argentina e Uruguai com o apoio das seguintes entidades: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; Hora do Povo; Diálogos do Sul; SaibaMais; 6 três comunicação; Jaya Dharma Audiovisual; Fundação Perseu; Abramo; Fundação Mauricio Grabois; CTB; CUT; Adurn-Sindicato; Contee; CNTE; Sinasefe-Natal; Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região; Sindsep e Sinpro MG. A reprodução é livre, desde que citado os apoios e a fonte.
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