Por Paulo Moreira Leite, no site Brasil-247:
Ontem, o candidato presidencial Luciano Huck podia ser visto em dois lugares ao mesmo tempo. Ao vivo, apareceu em Davos e fez comentários previsíveis sobre seu futuro político.
A noite, surgiu de repente num dos capítulos de Amor de Mãe, a novela das 9 da Globo, que vai ao ar após o Jornal Nacional.
Sem qualquer aviso, Huck representou a si próprio numa cena na casa da família da personagem vivida por Regina Casé, núcleo central de um drama de subúrbio do Rio de Janeiro, cenário das dificuldades que marcam o cotidiano da maioria dos brasileiros e brasileiras.
Depois de maravilhar os personagens presentes, com o encantamento que acompanha as celebridades, ao sentar-se num sofá da modesta sala de visitas, Huck pronunciou a frase mágica de seu caldeirão televisivo.
Estava ali para ajudar, disse, esclarecendo que pretendia auxiliar um dos personagens, Ryan (Thiago Martins), a se tornar um ídolo da música popular. Tudo sob o patrocínio de uma empresa de telefonia pois, afinal, nem Huck nem a Globo estão para brincadeira.
Num vídeo gravado e divulgado com a finalidade de reforçar a imagem de bom-moço, Huck explicou o que foi fazer na Suíça, naquele encontro onde políticos, executivos e sabujos do mundo inteiro prestam reverência no altar do neoliberalismo, sistema de poder e exploração econômica que tem contribuído para o avanço da pobreza mundial, a inviabilização de nações inteiras - e um ninho de 0,1 de bilionários que controlam 50% da riqueza mundial.
Com o cuidado de quem compreende a necessidade de afastar más impressões, no vídeo Huck fez questão de garantir que o Fórum de Davos não é "uma seita secreta para definir os rumos do mundo". Como se estivesse a caminho de um seminário da Teologia da Libertação dos anos 60, afirmou que em Davos ocorre um encontro "para tentar fazer o mundo um lugar mais igualitário, mais justo e para repensar um pouco os fundamentos do capitalismo".
Empregando um argumento típico de quem, por via das dúvidas, evita assumir qualquer responsabilidade, esclareceu: "Como estou numa fase da vida que quero aprender, onde fazer pergunta é mais legal do que saber resposta, eu estou aqui". (Estado de S. Paulo, 24/1/2020).
Fica mais fácil compreender as duas cenas de um mesmo personagem com auxílio de Guy Debord (1931-1994), um dos principais pensadores do maio-68 na França.
Raro intelectual capaz de se debruçar de modo crítico sobre a publicidade, o poder descomunal da mídia, a burocratização dos sistemas políticos e outros traços do capitalismo contemporâneo, Debord é autor de um livro importante, ainda que difícil em várias passagens, "A Sociedade do Espetáculo".
Na obra, Debord deixa claro que nas sociedades de nosso tempo o termo "espetáculo" está longe de designar aquilo que se vê no teatro, no cinema ou na TV, mas designa a embalagem ideológica que acompanha a vida cotidiana, procurando lhe dar sentido e coerência, condição para preservação de uma ordem de exploração e submissão.
Descrevendo um mundo cada vez mais alienante, refere-se ao esquecimento da História e ao abandono da memória como elemento típico de um tempo no qual o homem comum - em particular trabalhadores e trabalhadoras - foram despossuídos dos meios concretos de acompanhar e compreender cada passo da evolução humana, inclusive aquilo que se operava contra eles próprios e suas necessidades. Espetáculo, assim, é o "abandono da história" e a "falsa consciência do tempo".
Neste universo, tudo ocorre para transformar cidadãos em espectadores, à semelhança do que ocorreu na cena de "Amor de Mãe", quando os atores representaram personagens que ficaram deslumbrados na presença de Luciano Huck em carne e osso.
"Imobilizada no centro falsificado de seu mundo, a consciência espectadora já não conhece em sua própria vida uma passagem para a sua realização e sua morte", escreve Debord. Na mosca.
Numa visão de mundo onde a crítica se alimenta de um pessimismo profundo e duro, que talvez explique sua morte por suicídio, Guy Debord tinha o espaço reservado para alguma esperança.
"O mundo já possui o sonho de um tempo", escreveu, numa referência a imensa vontade de transformação social de tantas gerações, 1968 e mais adiante. "Para vivê-lo de fato, deve agora possuir consciência dele".
Para o Brasil de 2020, num universo tão distante da França dos anos 1960, pela história, pela geografia, pelo que você quiser, Guy Debord deixou uma observação útil para entender o candidato-espetáculo: "Ninguém acredita de fato no espetáculo".
Alguma dúvida?
Ontem, o candidato presidencial Luciano Huck podia ser visto em dois lugares ao mesmo tempo. Ao vivo, apareceu em Davos e fez comentários previsíveis sobre seu futuro político.
A noite, surgiu de repente num dos capítulos de Amor de Mãe, a novela das 9 da Globo, que vai ao ar após o Jornal Nacional.
Sem qualquer aviso, Huck representou a si próprio numa cena na casa da família da personagem vivida por Regina Casé, núcleo central de um drama de subúrbio do Rio de Janeiro, cenário das dificuldades que marcam o cotidiano da maioria dos brasileiros e brasileiras.
Depois de maravilhar os personagens presentes, com o encantamento que acompanha as celebridades, ao sentar-se num sofá da modesta sala de visitas, Huck pronunciou a frase mágica de seu caldeirão televisivo.
Estava ali para ajudar, disse, esclarecendo que pretendia auxiliar um dos personagens, Ryan (Thiago Martins), a se tornar um ídolo da música popular. Tudo sob o patrocínio de uma empresa de telefonia pois, afinal, nem Huck nem a Globo estão para brincadeira.
Num vídeo gravado e divulgado com a finalidade de reforçar a imagem de bom-moço, Huck explicou o que foi fazer na Suíça, naquele encontro onde políticos, executivos e sabujos do mundo inteiro prestam reverência no altar do neoliberalismo, sistema de poder e exploração econômica que tem contribuído para o avanço da pobreza mundial, a inviabilização de nações inteiras - e um ninho de 0,1 de bilionários que controlam 50% da riqueza mundial.
Com o cuidado de quem compreende a necessidade de afastar más impressões, no vídeo Huck fez questão de garantir que o Fórum de Davos não é "uma seita secreta para definir os rumos do mundo". Como se estivesse a caminho de um seminário da Teologia da Libertação dos anos 60, afirmou que em Davos ocorre um encontro "para tentar fazer o mundo um lugar mais igualitário, mais justo e para repensar um pouco os fundamentos do capitalismo".
Empregando um argumento típico de quem, por via das dúvidas, evita assumir qualquer responsabilidade, esclareceu: "Como estou numa fase da vida que quero aprender, onde fazer pergunta é mais legal do que saber resposta, eu estou aqui". (Estado de S. Paulo, 24/1/2020).
Fica mais fácil compreender as duas cenas de um mesmo personagem com auxílio de Guy Debord (1931-1994), um dos principais pensadores do maio-68 na França.
Raro intelectual capaz de se debruçar de modo crítico sobre a publicidade, o poder descomunal da mídia, a burocratização dos sistemas políticos e outros traços do capitalismo contemporâneo, Debord é autor de um livro importante, ainda que difícil em várias passagens, "A Sociedade do Espetáculo".
Na obra, Debord deixa claro que nas sociedades de nosso tempo o termo "espetáculo" está longe de designar aquilo que se vê no teatro, no cinema ou na TV, mas designa a embalagem ideológica que acompanha a vida cotidiana, procurando lhe dar sentido e coerência, condição para preservação de uma ordem de exploração e submissão.
Descrevendo um mundo cada vez mais alienante, refere-se ao esquecimento da História e ao abandono da memória como elemento típico de um tempo no qual o homem comum - em particular trabalhadores e trabalhadoras - foram despossuídos dos meios concretos de acompanhar e compreender cada passo da evolução humana, inclusive aquilo que se operava contra eles próprios e suas necessidades. Espetáculo, assim, é o "abandono da história" e a "falsa consciência do tempo".
Neste universo, tudo ocorre para transformar cidadãos em espectadores, à semelhança do que ocorreu na cena de "Amor de Mãe", quando os atores representaram personagens que ficaram deslumbrados na presença de Luciano Huck em carne e osso.
"Imobilizada no centro falsificado de seu mundo, a consciência espectadora já não conhece em sua própria vida uma passagem para a sua realização e sua morte", escreve Debord. Na mosca.
Numa visão de mundo onde a crítica se alimenta de um pessimismo profundo e duro, que talvez explique sua morte por suicídio, Guy Debord tinha o espaço reservado para alguma esperança.
"O mundo já possui o sonho de um tempo", escreveu, numa referência a imensa vontade de transformação social de tantas gerações, 1968 e mais adiante. "Para vivê-lo de fato, deve agora possuir consciência dele".
Para o Brasil de 2020, num universo tão distante da França dos anos 1960, pela história, pela geografia, pelo que você quiser, Guy Debord deixou uma observação útil para entender o candidato-espetáculo: "Ninguém acredita de fato no espetáculo".
Alguma dúvida?
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