domingo, 23 de fevereiro de 2020

Brasil caminha para o colapso

Por Fernando Silva, no site Correio da Cidadania:

As re­centes pro­vo­ca­ções mi­só­ginas de Bol­so­naro e seu clã-fa­mi­liar mi­li­ciano contra a re­pórter Patrícia Campos Melo, da Folha de S. Paulo; os in­dí­cios cada vez mais evi­dentes do en­vol­vi­mento dos bol­so­naros com as mi­lí­cias formam os mais novos traços de uma inequí­voca con­tra­dição po­lí­tica e ins­ti­tu­ci­onal: a exis­tência de um pre­si­dente da Re­pú­blica fas­cista, chefe de uma facção, que faz questão de ocupar seu tempo em busca de so­lu­ções au­to­ri­tá­rias para o país. Di­ante disso, por que é to­le­rado um go­verno tão de­vas­tador de di­reitos e com um peso de fa­ná­ticos e pro­vo­ca­dores extremistas no seu in­te­rior sem pa­ra­lelo na his­tória re­cente do país, pelo menos desde o final da ditadura mi­litar? 

A pri­meira questão é a com­po­sição do go­verno. O Brasil está sob um go­verno de mi­li­ci­anos, fundamen­ta­listas, ul­tra­li­be­rais e pu­ni­ti­vistas. Essa com­po­sição não se re­sume à facção de ex­trema-direita ou ao setor fun­da­men­ta­lista re­li­gioso. Estão ali o mer­cado fi­nan­ceiro, re­pre­sen­tado por Paulo Guedes, e o setor pu­ni­ti­vista e ul­tra­cri­mi­na­li­zador do Poder Ju­di­ciário, com Sérgio Moro. Ambos se com­ple­mentam nestes tempos de au­to­ri­ta­rismo po­lí­tico, ju­rí­dico e econô­mico, tão ne­ces­sá­rios entre si para impor a des­truição dos di­reitos e coibir qual­quer sinal de re­volta.

A se­gunda questão está na uni­dade entre o go­verno e o cha­mado "Cen­trão" que go­verna o Con­gresso Na­ci­onal (e também o país em parte) em torno da agenda ul­tra­li­beral. Como sa­bemos o "cen­trão" não é centro, é a di­reita tra­di­ci­onal que em tempos de cres­ci­mento da ex­trema-di­reita ocupa um es­paço po­lí­tico dis­tinto, mas trata-se da velha uni­dade de toda di­reita e da ampla mai­oria da classe do­mi­nante em torno da agenda ne­o­li­beral, numa etapa na qual a ordem é varrer toda e qual­quer pro­teção so­cial. Nem mesmo o Bolsa Fa­mília está livre do ar­rocho im­pla­cável. Uma com­po­sição e uma uni­dade impie­dosa, es­pe­ci­al­mente sobre os mais po­bres.

Ce­ná­rios: "par­la­men­ta­rismo de co­a­lizão"? Im­pe­a­ch­ment?

Mas o fato é que 2020 se de­sen­volve sob um agra­va­mento das con­tra­di­ções entre o bol­so­na­rismo gover­nante e "Cen­trão" e do pró­prio pre­si­dente com a grande mídia. Mesmo um dos seus mi­nis­tros mais blin­dados e que­ridos pelo grande ca­pital, Paulo Guedes, não con­se­guiu es­capar do vírus da incon­ti­nência verbal dos pro­vo­ca­dores de plantão e di­rigiu sua fúria de classe contra as em­pre­gadas do­més­ticas. Como as ex­pec­ta­tivas econô­micas não são ní­tidas, pois um novo cres­ci­mento me­díocre na casa de 1% para este ano pode minar de vez a base de sus­ten­tação do go­verno, até esse su­per­mi­nistro es­teve e está ame­a­çado de queda.

Estas con­tra­di­ções vi­raram crise po­lí­tica di­ante das in­cer­tezas sobre o país. Es­tamos em um novo momento de ins­ta­bi­li­dade pro­vo­cada pelo pró­prio pre­si­dente e pelas di­versas ma­ni­fes­ta­ções de extremismo que crescem no país, como os re­centes dis­paros contra o se­nador Cid Gomes, oriundos da ala bol­so­na­rista da PM do Ceará du­rante pro­testos rei­vin­di­ca­tó­rios de po­li­ciais e bom­beiros.

Resta saber quais serão os li­mites, pois tudo in­di­cava que os po­deres da Re­pú­blica, mídia e ca­pital ad­mi­nis­tra­riam os dis­pa­rates do bol­so­na­rismo para evitar uma ins­ta­bi­li­dade que atra­pa­lhasse as expec­ta­tivas de uma re­to­mada econô­mica. Com uma al­te­ração na forma de go­ver­na­bi­li­dade para gerir os ex­tre­mistas e fa­ná­ticos, que seria um tipo de "par­la­men­ta­rismo de co­a­lizão" com o eixo das decisões gi­rando cada vez mais para o Con­gresso Na­ci­onal, sob aval das Forças Ar­madas, mídia, mer­cado e se­tores do pró­prio go­verno como Sergio Moro (que tem seus pró­prios in­te­resses elei­to­rais e já es­ta­be­lece algum nível de dis­puta com o pró­prio pre­si­dente).

Este ce­nário de ad­mi­nis­tração da crise pa­rece ser o mais pro­vável, o que não seria uma mu­dança qual­quer e não ali­vi­aria a ins­ta­bi­li­dade e nem a re­tó­rica be­li­cista, ra­cista, mi­só­gina do bol­so­na­rismo. Por isso, até o ce­nário de uma ma­nobra na di­reção do im­pe­a­ch­ment pode apa­recer, es­pe­ci­al­mente se a per­cepção for de que o co­lapso, já so­cial e am­bi­ental no país, for mesmo para o ter­reno da eco­nomia e dos in­te­resses dos “in­ves­ti­dores”.

Os re­centes edi­to­riais da Folha de S. Paulo e O Globo, capas de re­vistas se­ma­nais como a úl­tima da IstoÉ, mos­tram uma ele­vação de tom iné­dita na re­lação com o go­verno.

De outro lado, o go­verno está longe de estar com sua base de apoio der­re­tida. Tem força e conta com apoio ainda es­tável que beira os 40%. E a pre­o­cu­pante "mi­li­ci­a­ni­zação" da po­lí­tica e das po­lí­cias, sempre de­fen­didas pelo clã Bol­so­naro, não pode nos levar a des­cartar que a busca de saídas autoritárias tenha algum peso ins­ti­tu­ci­onal e ra­zoável base de massas. Por­tanto, ins­ta­bi­li­dade e crise ins­ti­tu­ci­onal no "andar de cima", seja qual for a so­lução, pa­recem ser as pa­la­vras chave para 2020.

Em busca de vi­tó­rias e da re­or­ga­ni­zação da es­pe­rança

O nosso drama nesta con­jun­tura de­fen­siva, re­a­ci­o­nária, ainda afeta e muito a ca­pa­ci­dade de protagonismo de um mo­vi­mento de massas de opo­sição ao go­verno e sua agenda, fator que ainda inexiste no Brasil. Sem este fator de pro­ta­go­nismo nas ruas da opo­sição tudo pode se aco­modar e o con­do­mínio no poder pode se­guir apro­vando as novas PECs do mer­cado no Con­gresso. Pois lembremos: nisto re­side uma uni­dade mesmo entre os se­tores da mídia que hoje estão vo­ci­fe­rando contra Bol­so­naro.

Por­tanto, um forte pro­cesso de mo­bi­li­zação nas ruas para deter o go­verno e sua agenda de dis­pa­rates au­to­ri­tá­rios e ne­o­li­be­ra­lismo é o fator que po­deria de­se­qui­li­brar o jogo. Já é um bom co­meço a retomada de si­nais de re­sis­tência, através de lutas e ini­ci­a­tivas se­to­ri­zadas, da re­sis­tência in­dí­gena à im­por­tan­tís­sima greve dos pe­tro­leiros, que ob­teve uma vi­tória par­cial, sig­ni­fi­ca­tiva di­ante da sanha pri­va­tista e des­trui­dora da agenda li­beral.

Os des­files e blocos pré­vios ao car­naval já vêm de­mons­trando bas­tante senso crí­tico e te­remos em breve o 8 de março e o 14 de março, o Dia In­ter­na­ci­onal de Luta das Mu­lheres e a lem­brança dos dois anos do as­sas­si­nato de Ma­ri­elle e An­derson. Datas que po­derão ex­pressar, di­ante das úl­timas provoca­ções do go­verno, uma re­e­dição mo­ra­li­za­dora do EleNão!

Pre­ci­samos ter a pa­ci­ência, mas o sen­tido de ur­gência para po­ten­ci­a­lizar vi­tó­rias par­ciais e manifestações em um cres­cente mo­vi­mento de opo­sição nas ruas. Será nesses pro­cessos con­cretos de lutas so­ciais que avan­ça­remos numa nova re­com­po­sição da es­querda, que não re­pita os erros do passado.

A urgência é porque sob o signo da direita e do bol­so­na­rismo, o Brasil, cada vez mais fra­tu­rado e desi­gual, ca­minha para o abismo e ca­berá a uma es­querda re­no­vada, ativa e so­ci­al­mente in­se­rida reorga­nizar a es­pe­rança.

* Fer­nando Silva é jor­na­lista e membro do Di­re­tório Na­ci­onal do PSOL.

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