segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Uma análise crítica da obra de Jessé Souza

Jessé Souza
Por Jair de Souza

O sociólogo Jessé Souza vem publicando livros há muitos anos. No entanto, tenho de reconhecer que meu primeiro contato com seus trabalhos se deu há não muito tempo. Foi tão somente após ter visto um vídeo de uma de suas conferências sobre seu livro recém-publicado A Elite do Atraso que tomei a decisão de lê-lo.

A verdade é que a qualidade dos argumentos apresentados, a clareza de suas ideias e a coerência que percebi nas mesmas me impulsionaram a ir em busca de outras obras do autor. Queria conhecer muito mais e, com isto, recuperar um pouco do tempo perdido devido ao contato tardio.

Dediquei-me, então, a ler vários outros trabalhos de sua autoria, assim como as coletâneas por ele coordenadas. Dentre eles, posso citar: A ralé brasileira; A tolice da inteligência brasileira; A invisibilidade da desigualdade brasileira; Os batalhadores brasileiros; A radiografia do golpe; Subcidadania brasileira; A classe média no espelho.

Além disto, pus-me a assistir a todos os vídeos com sua participação que pude encontrar na internet.

Em resumo, neste breve espaço de tempo, creio haver acumulado um conhecimento razoável acerca de sua obra e de seu pensamento.

Posso dizer que minha maneira de entender a realidade brasileira foi fortemente afetada a partir daquilo que li, vi e ouvi de Jessé Souza. Suas ácidas críticas aos intelectuais que, até pouco tempo atrás, ainda eram tomados como vacas sagradas para a interpretação de nossa realidade me pareceram muito acertadas.

Ter investido contra falácias até então tidas como verdades absolutas e ter desnudado as falsidades e o jogo de interesses que estavam por trás das mesmas não foi feito de pouca monta.

Jessé Souza transforma em escombros as teorias sobre nossa herança portuguesa do propalado “jeitinho brasileiro”, de nossa malandragem, nossa vocação inata para o favorecimento dos amigos em detrimento dos interesses gerais maiores, nossa tendência para a prática da corrupção (sempre em relação ao Estado, jamais em relação ao virtuoso mercado) e de tantas outras baboseiras que, de tanto serem marteladas, acabaram por se tornar verdades “inquestionáveis” entre nossa intelectualidade. Até que alguém tivesse coragem suficiente para questioná-las, é claro.

Nossa ciência social de agora e a do futuro devem estar muito gratas a Jessé Souza por revelar que a essência do que vem moldando e direcionando nosso comportamento social até a atualidade vai ser encontrada na herança maldita deixada pela escravidão, que foi a instituição preponderante no Brasil desde que os portugueses aqui aportaram. E a escravidão, como se sabe, não existia em Portugal, a não ser em poucos e esporádicos casos.

Os argumentos empregados para mostrar que até mesmo nossa esquerda intelectual sempre girou em torno das teses elaboradas pelos pensadores a serviço das elites econômicas me foram bastante convincentes. Conceitos que andavam tão enraizados em nossa mente, como os de patrimonialismo e populismo, foram demolidos de modo muito convincente.

Suas contundentes argumentações contra o reducionismo economicista da sociedade aplicado por estudiosos de várias posições políticas, inclusive vários que se apresentam como marxistas, também me pareceram muito válidas.

Considerei infundada a crítica feita pelo professor Paulo Ghiraldelli** de que Jessé Souza seria, na verdade, um mero panfletário e não um estudioso pautado por normas científicas rigorosas. Foi, de fato, uma surpresa ver uma condenação deste tipo vindo de alguém que se considera marxista. Ao deparar-me com esta ressalva levantada por Ghiraldelli, imediatamente, lembrei-me daquela célebre frase de Karl Marx: “(até agora) Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas, o que importa é modificá-lo”. Convenhamos, nenhuma obra de nenhum outro autor brasileiro está tendo na atualidade um papel mais relevante para a mobilização rumo a uma transformação de nossa realidade vira-latas do que a de Jessé Souza.

No entanto, apesar de toda esta valiosa contribuição para a compreensão da realidade brasileira e para servir como ferramenta útil de transformação da mesma, entendo que Jessé Souza também apresenta falhas em suas análises.

Em quase todos seus livros, Jessé Souza deixa patente que o sentimento de pertencimento a uma determinada classe social não está diretamente relacionado à posição que as pessoas ocupam no sistema econômico. A economia, por si só, não é o que determina o comportamento das pessoas em sua totalidade. E isto me parece bastante acertado.

Porém, em relação a esta última questão, creio que Jessé Souza deixa de reconhecer, ou pelo menos eu não consegui deduzir isto a partir das leituras que fiz, que, em última instância, o fator econômico é o que exerce o peso mais decisivo no comportamento dos grupos sociais em seu conjunto.

Por exemplo, nas eleições passadas, constatamos que muitos pobres deixaram absolutamente de reivindicar medidas que claramente serviriam para elevar o padrão de sua vida e o de seus familiares (tais como, melhores salários, melhor atendimento médico público, escolas de melhor qualidade para seus filhos, etc.) para se concentrar em questões morais (tipo, kitgay), que nada, ou muito pouco, os ajudariam a sair da situação de penúria em que se encontram.

Analogamente, também pudemos observar como muita gente de classe média saiu furiosa às ruas bradando contra a corrupção e, sob esta alegação, demonstrando sua disposição a aceitar a destruição da Petrobrás, a entrega dos recursos do pré-sal, a eliminação de nossas grandes empresas de engenharia e, em suma, o arraso da base econômica do país, o que, ao final das contas, resultaria em profunda deterioração de suas próprias condições concretas de vida.

Retomando o que está exposto nos dois parágrafos anteriores, podemos dizer que tanto os pobres como as pessoas de classe média aí citados agiram motivados por fatores morais e não econômicos. Quanto a isto, não resta dúvidas.

Mas, o que Jessé Souza não mostra (ou, eu pelo menos assim entendi) é que os fatores que em última instância impulsam estas pessoas a deixar de lado seus interesses econômicos reais são, sim, motivações de cunho econômico. Só que não vindas diretamente delas, mas de parte daqueles que têm o poder para manipulá-las e desviá-las das questões econômicas que seriam de seu benefício direto. O objetivo real desses grupos detentores de poder de manipulação não é outro que preservar e ampliar os privilégios econômicos de que gozam.

O pobre que é instigado a gritar, berrar e se revoltar contra um tal kitgay, é levado a agir assim para que os interesses econômicos de banqueiros, latifundiários e de grandes capitalistas em geral não sejam questionados. O mesmo se pode dizer da classe média babaquizada que aceita destruir a base econômica da nação e, com isto, sofrer em carne própria as graves consequências de desemprego que disto advirão. Elas são manipuladas neste sentido para que os interesses econômicos dos países imperialistas, de suas empresas e os de seus sócios locais possam prevalecer.

Se as questões de moralidade não existem, ou não estão em pauta, as elites econômicas não vacilam em criá-las, ou trazê-las à tona, para que possam servir como instrumentos de defesa daquilo que realmente lhes interessa. Se não houvesse essa intervenção manipuladora por parte das elites econômicas, muito provavelmente, a disposição e as energias dos pobres e as de gente de classe média seriam dirigidas à luta para a obtenção de ganhos de caráter econômico para benefício próprio, o que acabaria por afetar os interesses concretos dos grupos privilegiados.

Em outras palavras, embora seja correto dizer que os grupos sociais não se movimentam exclusivamente com base nas questões econômicas, não se pode negar que a motivação originária e determinante, aquela que diz respeito aos grupos que detêm de fato o poder numa sociedade, está, em última instância, fortemente alicerçada em questões econômicas. Isto quer dizer que permanece válida a essência da teoria marxista que coloca a economia como o fator decisivo na evolução da sociedade humana, sendo ela a principal responsável pela permanente luta de classes que nos caracteriza.

Quando estudamos casos onde aparece a exploração do preconceito da homofobia, podemos notar com mais nitidez a relatividade do preconceito em si e a sua vinculação, em última instância, a questões econômicas. Tomemos, para ilustrar, dois casos de políticos que já foram alvos de fortes ataques homofóbicos no Brasil: Fernando Gabeira e Aguinaldo Timoteo.

Ao voltar do exílio e se candidatar a governador do RJ pelo PT, Fernando Gabeira ainda era visto pelas elites como um inimigo de esquerda a ser combatido. Nesse combate, a arma preferida de seus detratores era sua homossexualidade. Mas, ao bandear-se para as forças de apoio ao grande capital, os preconceitos sexuais externados contra ele por essa mesma elite e pelos falsos cristãos que a apoiam desapareceram quase por completo. E não foi porque os grupos dos endinheirados tivessem evoluído algo em relação a níveis de tolerância com a diversidade sexual. O que importava era que Fernando Gabeira passara a ser um deles e, portanto, não tinha porque ser atacado com tais preconceitos.

Algo semelhante ocorreu com o cantor Aguinaldo Timoteo quando este decidiu entrar na vida política ativa como parte do grupo de apoio a Leonel Brizola. Porém, como no caso citado com anterioridade, ao romper com Brizola e aderir às posições políticas de Paulo Maluf, líder da extrema direita brasileira de sua época, Aguinaldo Timoteo passou a ser companheiro de partido e de chapa de direitistas radicais, como o coronel Erasmo Dias, que tinha comandado as forças repressivas da ditadura militar em São Paulo. Em vista disto, passou a ser poupado de todos aqueles ataques destrutivos que havia sofrido antes em razão de suas preferências sexuais. Ou seja, mais uma vez, a hipocrisia fez valer o seu peso. E o predomínio desta hipocrisia não pode deixar de refletir também a prevalência dos interesses econômicos das elites do dinheiro.

Portanto, a importante contribuição de Jessé Souza em sua crítica às interpretações econômicas mecanicistas precisa ser matizada para deixar patente que a economia tem inegavelmente o peso determinante no girar da história.

Como entendo que sem um sólido conhecimento das estruturas sociais é impossível agir conscientemente para a transformação da sociedade no rumo de nossos desejos, o estudo dos trabalhos de Jessé Souza passa a ser uma necessidade para todos os que querem se engajar nesta tarefa. Se decidirmos atuar a esmo, no máximo, estaremos agindo de modo semelhante àqueles que são levados pelo chamado “impulso de manada”, podendo chegar, muitas vezes, a resultados nada condizentes com os sonhos que nutríamos. Digo isto para que fique bem claro que as críticas que faço não têm a menor intenção de reduzir o grande prestígio e mérito que Jessé Souza alcançou com toda justiça.

*  Jair de Souza é economista formado pela UFRJ e mestre em linguística também pela UFRJ.
Nota

* Ver em https ://www.youtube.com/watch?v=hILe2ahXVPM

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