quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O pavor da taxação das grandes fortunas

Por Jair de Souza

Precisamos nos lembrar que no final do ano passado, ainda bem antes de que a pandemia do coronavírus aparecesse no cenário, a situação econômica do Brasil se mostrava catastrófica. O índice de crescimento do PIB era irrisório, a desvalorização de nossa moeda tinha atingido patamares impensados e o desemprego havia se estendido a milhões e milhões de pessoas.

As tão badaladas reformas milagrosas, pregadas através da rede Globo e de toda a grande mídia corporativa, que garantiriam a retomada do crescimento tão logo o PT fosse afastado do governo serviram, na verdade, para acentuar ainda mais a estagnação de nossa economia.

Se quase todos os analistas econômicos que apareciam comentando na rede Globo, na Band, na Record, no SBT, na Folha de S. Paulo, no Estadão, na Veja, etc., asseguravam que com a flexibilização (ou melhor, eliminação) das regras de proteção ao trabalho o empresariado se disporia a contratar mais gente para tocar seus negócios e, portanto, a economia iria crescer e o desemprego se reduziria significativamente, por que ocorreu justamente o oposto disto?

No mesmo sentido, gostaríamos de recordar que a redução dos gastos públicos em educação, saúde, previdência e em outras questões sociais era alardeada como uma medida indispensável para gerar melhores condições para que os investimentos privados tomassem força e alavancassem com muito vigor uma nova onda de crescimento econômico. Mas, como todos podemos agora constatar, o resultado não foi nada parecido com o que era apregoado.

Será que Bolsonaro e os responsáveis econômicos de seu governo não tinham ideia de que era isto mesmo o que iria ocorrer se tomassem as medidas de contenção de gastos públicos e de retirada de direitos sociais que tomaram? Bem, quanto a Bolsonaro, talvez possamos aceitar que não tenha havido premeditação, visto que ele mesmo se autodefine como um verdadeiro ignorante em questões de economia. Por isso, em nível pessoal, ele pode até ser desculpado. Mas, não assim aqueles que, embora tendo mais conhecimentos técnicos de como funciona a economia real, decidiram dar apoio a um energúmeno que jamais poderia ser seguido sem questionamentos.

Mas, será que o ministro Paulo Guedes também não sabia que o desastre se concretizaria com as medidas retracionistas que o governo estava promovendo? Aqui, precisamos dizer que, mesmo sendo intelectualmente um dos ministros da área econômica menos capacitados e qualificados que o Brasil já teve, é impossível que Paulo Guedes não soubesse que o resultado da implementação de sua política contencionista teria de ser inevitavelmente desastroso.

Até Bolsonaro, apesar de toda sua torpeza em relação a conhecimento de economia, se deu conta de que com a concessão do auxílio emergencial de R$ 600,00 houve um certo alívio na situação de paralisia e falta de perspectivas do Brasil, o que acabou por desarmar uma bomba que estava a ponto de explodir em razão das condições desesperadoras das massas necessitadas.

No entanto, embora seja bruto e ignorante quanto aos elementos básicos da economia, Bolsonaro não é burro e, assim, soube tirar muito proveito daquela medida que fora aprovada no Congresso por esforço dos representantes dos partidos de oposição, contrariamente aos desejos do próprio Bolsonaro e de seu governo. E, a partir dessa experiência, Bolsonaro tomou gostinho pela coisa e passou a querer emplacar a tal Renda Brasil, ou Renda Cidadão, ou, quem sabe, a Renda Bolsonaro.

Mas, aí aparecem os entraves colocados por Paulo Guedes e pelos analistas do “mercado”: Isto vai furar o teto de gastos, isto vai gerar uma situação de desequilíbrio, isto vai gerar uma perda de confiança, etc., etc. Ou, como costumam dizer, a menos que o governo apenas redirecione para o custeamento destes novos gastos os recursos destinados a cobrir outros serviços assistenciais já existentes, não se pode aceitar a criação de novos gastos que inviabilizem a boa administração da economia, blá-blá-blá.

Que Bolsonaro não saiba é compreensível, mas mesmo um economista de pouco cabedal teórico como Paulo Guedes tem a obrigação moral de saber o que a história nos apresenta em relação ao bom funcionamento da economia capitalista em situações em que gastos públicos de maiores proporções são necessários para cobrir a assistência social.

Será que Paulo Guedes nunca se pôs a pensar como foi que a Europa Ocidental pôde manter um elevado padrão de vida por muitas décadas no período que seguiu o fim da Segunda Guerra Mundial? Seguramente, Paulo Guedes deve ter lido em algum livro que foi nessas décadas que o padrão de vida dos trabalhadores europeus alcançou seu nível máximo. Foi a época dos estados de bem-estar social (welfare states, para falar na língua preferida – mesmo que não tão bem dominada – de Paulo Guedes).

Fizemos menção às boas condições de vida dos trabalhadores, mas, o que poderíamos dizer sobre os empresários, ou seja, sobre os capitalistas? Bem, acredito que Paulo Guedes sabe muitíssimo bem que foi também nesse período histórico que os capitalistas em seu conjunto mais se enriqueceram em toda a existência do capitalismo na Europa.

Para dizer as coisas de uma maneira mais fácil de entender, o que levou os capitalistas da Europa Ocidental a serem bem mais “compreensíveis” foi o temor que sentiam ao saber que ali ao ladinho deles (na Europa Oriental) estava instalado o socialismo e, se bobeassem, eles também poderiam perder a propriedade das empresas que garantiam seus rendimentos e sua boa vida. Foi assim que eles se deram conta de que precisavam manter seus trabalhadores satisfeitos para evitar a tentação do socialismo.

E vamos entender direitinho, para manter os trabalhadores europeus satisfeitos seria preciso meter a mão no bolso. E assim ficou decidido: os capitalistas foram obrigados a pagar muito mais impostos do que antes. Pagavam muito mais imposto de renda, não conseguiam driblar facilmente as leis que davam garantias aos trabalhadores, tinham de pagar pesados tributos na transferência de heranças, e por aí vai.

Porém, como parece que todos eles eram devotos de São Francisco, a máxima do “É dando que se recebe” funcionou à perfeição. E eles nunca ganharam tanto como nesse tempo glorioso. Pois é, tudo o que os capitalistas gastavam a mais com impostos servia para aquecer a economia e voltava com cresces para os próprios empresários na forma de lucro na venda de seus produtos. Na verdade, essa maneira de agir acabou gerando um fenômeno contrário ao que se temia no começo. Ou seja, quando os trabalhadores da Europa Oriental constataram que, mesmo sem serem os donos das empresas, seus colegas do lado ocidental estavam desfrutando de um padrão de vida mais elevado que o deles, a força de atração mudou de sentido.

Foi só o receio da chegada do socialismo desaparecer para os capitalistas ocidentais voltarem a suas práticas anteriores. Assim que a União Soviética se decompôs e os países da Europa Oriental voltaram à órbita do capitalismo, o empresariado ocidental deu início ao processo de desmonte de todo o arcabouço social que garantia uma vida mais digna para as maiorias trabalhadoras e mais rendimentos para o empresariado.

Por alguma razão, ao analisar o comportamento de Paulo Guedes e o dos representantes mais afinados com nossa elite econômica e compará-lo com o que aconteceu na Europa Ocidental, me vem à mente aquela fábula do escorpião e do sapo.

Os capitalistas e seus representantes sabem que para a própria sobrevivência do sistema que eles encarnam é importante elevar o nível de vida das massas trabalhadoras, mas o instinto que os impulsa a querer manter os trabalhadores em condições de escravidão se faz sentir. Só isto pode explicar a fúria com que eles reagem ante a simples menção da possibilidade de taxação das grandes fortunas.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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