sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Novos e velhos sonhos de mãos dadas

Por Emiliano José

Escrever a quente, sempre arriscado. Não fazê-lo, pior ainda. Assim, dou duas ou três palavras sobre as eleições recentes. “A morte e a morte de Quincas Berro D´Água” – recorro sempre à deliciosa, maravilhosa novela de Jorge Amado para referir-me à sempre anunciada morte do PT. Assalta-me a lembrança, também, de “A crônica de uma morte anunciada”, de Gabriel García Marquez. Desde sempre, a mídia corporativa, a direita e a extrema-direita anunciam a cada eleição o fim do PT. E ele, não obstante todos os golpes recebidos, ainda pensando as feridas, mostra a cara, sua força, a disposição para seguir em frente. Desmente tudo, e ressurge.

Não vou estender-me em números, já extensamente divulgados. Importante, e isso antes dos resultados, o fato de o partido ter desmentido largamente a tão difundida noção de ser autorreferente, de não fortalecer aliados. Essa crítica curiosamente aparece em alguns setores da própria esquerda, como se verdadeira. Cito como exemplos os casos emblemáticos de Porto Alegre e de Belém como flagrantes desmentidos – nossas alianças com o PCdoB e com o PSOL. O que não se pode pedir, e às vezes há aliados querendo isso, é uma atitude suicida do partido, uma desconsideração de sua dinâmica interna e de sua própria necessidade, como qualquer organização partidária, de sobreviver e continuar crescendo.

Houve evidente enfraquecimento da extrema-direita e crescimento da direita. Pode-se comemorar a derrota do bolsonarismo, mas não a ponto de provocar ilusões quanto ao crescimento das forças consideradas de centro – prefiro insistir estejam situadas no campo da direita. Rigorosamente, são elas a sustentar Bolsonaro, incapazes de bancar quaisquer medidas destinadas a defenestrá-lo do poder e absolutamente perfiladas diante da agenda econômica neoliberal do presidente. Houve momento em que se acreditou na hipótese de uma frente ampla, rapidamente descartada pela não adesão das forças chamadas de centro.

No momento, sem o desprezo da adesão de quaisquer forças, é jogar toda força da esquerda nas campanhas do segundo turno. É uma rara oportunidade de na luta exercitar a unidade, guardar as diferenças, e fortalecer os pontos comuns, atitude fundamental para quaisquer alianças. Não é fácil. Sempre há os de nariz torcido, os que imaginam o mundo perfeito, a linha reta, imersos em suas convicções, como se o mundo se rendesse a eles, incapazes de compreender a riqueza da vida política, a unidade na diversidade. A história se incumbe de mostrar o quanto as alianças são indispensáveis, e elas só acontecem entre diferentes, mesmo à esquerda.

Que maravilha ver surgirem novas lideranças à esquerda. Manuela, Marília, Boulos – cito apenas os três. Manuela, convivi na Câmara Federal. Não fosse sua perspicácia política, lembro sua sensibilidade poética, eu e ela apaixonados por Mário Benedetti, o extraordinário poeta e romancista uruguaio. Marília, vejo de longe sua combatividade, insistência, capacidade de luta, na trilha do grande Miguel Arraes. Quem sai aos seus não degenera. Boulos, uma estrela a brilhar com intensidade, vindo das lutas populares, capaz de ser solidário com os mais pobres, lado a lado com Lula no momento do mais cruel sofrimento do maior líder da história do País.

Talvez esteja ali em São Paulo os germens de uma frente de esquerda, progressista e democrática. O PT soube fazer a disputa no primeiro turno, mantendo um enorme respeito pela candidatura de Boulos, e imediatamente após a vitória dele, declarar o seu apoio, incluindo-se aí sem quaisquer subterfúgios o próprio candidato Jilmar Tatto, Haddad e Lula. Feliz em ver no mesmo palanque PSOL, PCdoB, Rede, PDT e PT.

Que tenhamos juízo. A estrada é longa, os adversários não são fracos. Com amplitude, capacidade de diálogo, sensibilidade para ouvir o povo, podemos vencer agora e nos prepararmos para a batalha de 2022, a ser construída no dia-a-dia da política. E para isso precisamos todos nos despir de mesquinharias. Ter sempre em mente o principal, desprezar o secundário. O País à beira do precipício reclama isso.

Peço licença aos mais jovens para saudar uma velha combatente. Creio, não sei se estou certo, mas arrisco dizer: boa parte da vitória de Boulos deve-se a essa extraordinária figura chamada Erundina. Como me orgulho de ser seu amigo. Na Câmara Federal, combati o bom combate em defesa da democratização dos meios de comunicação, sob a liderança dela. Sempre tratado por ela com imenso carinho e respeito. Sou tocado pela emoção quando a vejo falar de utopias, desmontar preconceitos contra os mais velhos, quase a dizer respeite ao menos os meus cabelos brancos e a minha mente vigorosa, cheia de poesia, cores, alegria, quase a dizer há gente nova bem mais conservadora que eu, e há.

E peço licença, também, para saudar a grandeza de Lula. Faz tempo seu carinho com Boulos. Sabe o quanto é imprescindível o surgimento de novas lideranças, não importa de qual partido. Importa sejam do campo do pensamento e prática da esquerda. Boulos é dessas novidades raras. Sendo inquestionavelmente de esquerda, nunca se deixou aprisionar na pequenez, não se tornou refém de sectarismos, sempre valorizou a democracia, respeita as lideranças mais velhas e simultaneamente renova concepções. Lula intuiu tudo isso, e ressalta o papel de Boulos, um nome de amplas possibilidades na vida política do País. O outono da existência, retomo expressão de Waldir Pires, é o momento do aprendizado, aquele em que a liderança continua a atuar com todas as suas forças mas ao mesmo tempo busca olhar para as novas gerações, aquelas a seguir e desenvolver os sonhos acumulados pela história. Lula age assim.

Alea jacta est. É hora de atravessar o Rubicão. Jogar todas as energias nesse segundo turno. Há muitas e fascinantes batalhas a serem travadas. Um olho no padre, outro na missa. Um olho no aqui e agora, outro logo ali, 2022. Um ligado ao outro. Todos os partidos de esquerda e progressistas são chamados a esse segundo turno. Será ele a nos dar musculatura para as batalhas cotidianas a seguir e para derrotar o bolsonarismo.

A luta continua.

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