domingo, 10 de janeiro de 2021

Neoliberalismo e psicopolítica

Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:
 

Em seu livro A Doutrina do Choque, a escritora Naomi Klein narra a história do psiquiatra canadense Ewen Cameron que administrava choques elétricos para erradicar o mal do cérebro humano e produzir novas personalidades. A ideia era colocar os pacientes em estado caótico para serem “apagados” e “regravados” como cidadãos-modelo e anticomunistas. O cérebro seria reformatado e reescrito.

Os pacientes ficavam um mês numa verdadeira câmara de tortura, eram tratados com fortes choques elétricos para apagar a memória e recebiam drogas que alteravam a consciência. As “pesquisas” de Cameron foram financiadas pela CIA e ocorreram durante a Guerra Fria.

Naomi Klein associa essa técnica à doutrina do famoso economista Milton Friedman, pai do modelo neoliberal. Na terrível tragédia de 2005 em Nova Orleans, o furacão Katrina arrancou edifícios de suas fundações e provocou uma enorme inundação em que muitas pessoas morreram afogadas em suas próprias casas. Friedman propôs aproveitar o caos para reformar radicalmente o sistema educacional no sentido neoliberal de privatização. O capitalismo do desastre usa o choque para aumentar a desigualdade e enriquecer a elite. Friedman propunha um estado social de choque para a reprogramação neoliberal da sociedade.

Essa técnica faz parte da lógica biopolítica que busca disciplinar os corpos para sujeitá-los às demandas da economia industrial. Ocorre que hoje o capitalismo industrial transformou-se em capitalismo financeiro com modos de produção imateriais e pós industriais. O trabalhador, muitas vezes, vira “empreendedor”, explora a si mesmo, é ao mesmo tempo carrasco e vítima. E o cidadão se dissolve no consumidor.

Em seu ensaio Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder, o professor Byung-Chul Han mostra que, com o predomínio da economia financeira e a substituição da sociedade disciplinar (Foucault) pela sociedade de controle (Deleuze), a biopolítica foi substituída pela psicopolítica. Em vez de desgravar e disciplinar os corpos para regravar, o sistema econômico registra anseios e necessidades e, com a ajuda de algoritmos e prognósticos, antecipa e estimula as ações, atuando proativamente. A psicopolítica neoliberal busca induzir em vez de oprimir.

Já em 1990, em seu ensaio Post-Scriptum Sobre a Sociedade de Controle, o filósofo Gilles Deleuze vislumbrou, antes da internet, o advento da era digital que substituiria a assinatura individual. O indivíduo agora seria definido pela senha numérica que o transforma em dados mensuráveis e quantificáveis. Constatou que o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do chamado Terceiro Mundo. Vende serviços e compra ações. Está focado na venda e no mercado. A empresa substituiu a fábrica. As massas tornaram-se amostras, banco de dados, mercados. O marketing tornou-se instrumento de controle social.

Tudo isso me fez lembrar o neoliberalismo grosseiro que vigora no Brasil. A famosa frase de Bolsonaro – “Vim Para Destruir, Não Para Construir” – é inspirada diretamente nos escritos de Olavo de Carvalho que muito provavelmente foi influenciado pela Doutrina do Choque do psiquiatra Cameron, além da óbvia influência de Friedman. Bolsonaro tentou, mas não conseguiu emplacar inteiramente seu projeto original – armas para todos, guerra civil, caos, fechamento do Congresso e do STF, ditadura para restabelecer a ordem.

As duas distopias consideradas mais populares do século XX foram Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. O “Grande Irmão” (Big Brother) de Orwell, com sua opressão vigiada, se aproxima mais da biopolítica da sociedade de vigilância típica do capitalismo industrial, e o “Mundo Novo” de Huxley, com seu bem estar artificial e psicotrópico poderoso, fica mais próximo da psicopolítica da sociedade de controle vigente no capitalismo financeiro neoliberal.

Orwell temia um regime totalitário que abolisse os livros. Huxley dizia que isso não seria necessário, porque as pessoas não iam mais querer ler livros. Para Orwell, seremos arruinados pelo que tememos. Para Huxley, seremos arruinados pelo que desejamos. A servidão satisfeita prevista por Huxley tem mecanismos diferentes da Servidão Voluntária conceituada por Étienne De La Boétie no século XVI, mas a lembrança é inevitável.

No Brasil de hoje, vigora uma mistura da antiga biopolítica da sociedade disciplinar com a nova psicopolítica da sociedade de controle. Nesta última, não há o Big Brother que arranca informações contra nossa vontade. Em vez disso, nós nos revelamos por iniciativa própria. Se as catedrais do século XX foram os Museus, feitos de pedra e mostrando o passado, as catedrais do século XXI são digitais, mostrando informações, sejam verdadeiras ou falsas. É a internet com todos os seus templos: facebook, twitter, instagram, whatsapp, google etc.

Em vez do Big Brother de George Orwell, temos um Pan-óptico digital descentralizado onde se misturam o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário. É um Pan-óptico mais eficiente do que o original proposto por Jeremy Bentham em 1785, considerado por Foucault a metáfora perfeita para a sociedade de vigilância do século XIX em torno da família, escola, quartel, fábrica, hospital, prisão. Segundo Zygmunt Bauman, em Vigilância Líquida, o que temos hoje é um “Ban-óptico” que identifica e exclui como indesejadas ao sistema as pessoas de baixa renda, consideradas lixo.

A opinião baseada em fake news enfrenta com firmeza e às vezes sobrepuja a análise fundada na realidade. A psicopolítica do neoliberalismo se apoia cada vez mais na opinião e na emoção em detrimento da análise e da razão. É uma técnica que mantém o sistema dominante através da programação e controle psicológico. Este é um dos pontos cegos da sociedade de conhecimento, além da quantificação da realidade que afasta o espírito do conhecimento, pois os big data são desprovidos de conceito ou espírito.

A psicopolítica do neoliberalismo ajuda a explicar a tragédia que vivemos hoje no Brasil, onde um presidente corrupto e autoritário nega a pandemia, sabota a vacina, gasta centenas de milhões para produzir a panaceia da cloroquina, despreza os mortos pela Covid, agride parceiros comerciais, destrói a educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente, direitos humanos, política externa soberana, e consegue manter sua popularidade entre 30 e 40%.

Esperamos que o princípio da realidade prevaleça em 2021 com o anunciado agravamento da pandemia e o aumento de óbitos até a vacinação em massa, com a crise econômica, com o aumento já ocorrido nos preços dos alimentos, combustíveis, eletricidade etc. O marketing populista e fascistóide do presidente, dirigido exclusivamente à emoção, vai se chocar com a dura realidade que o país enfrentará este ano. A opinião subjetiva, baseada em fake news, será obrigada a enfrentar os fatos da realidade. Contra eles, o marketing da psicopolítica neoliberal será certamente acionado pela base de apoio do Governo, principalmente o mercado, os militares e os evangélicos.

Tendo em vista os inúmeros crimes cometidos por Bolsonaro, desde a política genocida da pandemia às tentativas de destruição da democracia, cabe às instituições do país processarem o Presidente pelos seus crimes e suas constantes ameaças de golpe como, por exemplo, a que fez recentemente após a ruptura institucional promovida por Trump com a invasão do Congresso americano. O perigo aqui é ainda maior, pois Bolsonaro conta com apoio da maioria das Polícias Militares e dos escalões subalternos do Exército.

E, sobretudo, cabe à esquerda ir além da oposição parlamentar e mobilizar a sociedade numa campanha nacional exigindo Fora Bolsonaro. A eleição presidencial de 2022 será decidida neste confronto em 2021.

1 comentários:

Dilma Coelho. disse...

Muito boa matéria. Obrigada.