quarta-feira, 14 de abril de 2021

De volta ao infame Mapa da Fome

Por André Luiz Passos Santos, no site Brasil Debate:


Pesquisa recentemente divulgada, realizada por um grupo multidisciplinar de pesquisadores brasileiros do núcleo Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality in a Bieconomy, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin (IELA-FUB), da Alemanha, em conjunto com pesquisadores da UFMG e da UnB [1], demonstra, através de entrevistas com cerca de 2.000 pessoas, realizadas no período de agosto a dezembro de 2020, que a insegurança alimentar se agravou de forma alarmante no Brasil.

A segurança alimentar é assim classificada pelo IBGE:

1. Segurança alimentar: Quando a família/domicílio tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais;

2. Insegurança alimentar leve: Quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam a não comprometer a quantidade de alimentos;

3. Insegurança alimentar moderada: Quando há redução quantitativa de alimentos entre adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos;

4. Insegurança alimentar grave: Redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultantes da falta de alimentação entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.

A pesquisa destaca que a insegurança alimentar no Brasil, que alcançou seu nível mínimo histórico na PNAD 2013 (22,6% dos domicílios em situação de insegurança alimentar, de qualquer nível de gravidade), já havia crescido para 36,7% dos domicílios brasileiros, conforme constatado pela POF 2017/2018, bem antes, portanto, do início da pandemia.

Outros estudos vêm demonstrando que a situação da fome no país já se agravava mesmo desde antes de 2016, agravamento esse que se acentuou com a ascensão de Michel Temer e sua Ponte para o Futuro ao poder. O fim da política de valorização real do salário mínimo; a precarização do emprego em função da reforma trabalhista; o crescimento do desemprego; os cortes nas políticas de mitigação da fragilidade social e, por último, mas nem de longe menos importante, os cortes orçamentários impostos pelas políticas de austeridade fiscal, que atingem mais fortemente a parcela mais desfavorecida da população; agravaram a depressão econômica que já se manifestava desde fins de 2014, e da qual o país ainda não logrou sair, o que vem provocando o aumento de desigualdade e trazendo de volta a milhões de lares brasileiros o espectro da fome.

O Brasil havia deixado o infame Mapa da Fome das Nações Unidas em 2013, quando logrou alcançar o percentual de apenas 3,6% dos brasileiros em situação de insegurança alimentar grave – ou simplesmente fome. Uma conquista espetacular, que desafortunadamente foi menos celebrada pela mídia e pela sociedade do que uma façanha deste quilate mereceria. O IBGE confirmou que, em 2018, voltamos a ter 5% da população em estado de fome, índice que nos reinclui no rol dos desafortunados do mundo.

Desde que a FAO-ONU publica o Indicador de Prevalência de Subalimentação, há pouco mais de 50 anos, somente durante o curto período de 2013 a 2017 o país – ironicamente, um dos maiores produtores de alimentos do mundo – esteve fora daquela vergonhosa relação dos países com 5% ou mais de sua população padecendo de fome.

O estudo do IELA-FUB aponta que, em dezembro de 2020, a insegurança alimentar atingiu 59,4% dos domicílios brasileiros. 31,7% estão em situação de insegurança alimentar leve, 12,7% moderada e aterradores 15% em situação de insegurança alimentar grave – a fome propriamente dita. Analisada a porcentagem de domicílios em situação de insegurança alimentar por região do país, vê-se que algum tipo de carência alimentar alcança 51,6% dos lares da região Sul; 53,5% das famílias da região Sudeste; 54,6% dos moradores em domicílios da região Centro-Oeste; 67,7% dos domicílios da região Norte e impressionantes 73,1% dos domiciliados na região Nordeste. A insegurança alimentar grave, faceta mais perversa desse enredo, atinge em cheio 29,2% dos lares nortistas e 22,1% dos nordestinos.

O recorte em domicílios situados em áreas rurais, rurais e urbanas e áreas urbanas, que deve ser tomado com os cuidados devidos em razão de conhecidas distorções neste tipo de classificação em virtude dos interesses arrecadatórios dos municípios, conforme amplamente discutido pelos estudiosos da demografia brasileira, o estudo constata que a insegurança alimentar grave chega a 27,3% dos lares rurais, em comparação com 16,9% em áreas rurais e urbanas e 13,1% dos domicílios urbanos. A fome está presente em 16,1% dos lares em cidades com menos de 20 mil habitantes, e em 14,9% dos domicílios situados em municípios com mais de 20 mil habitantes.

Analisando a clivagem por sexo, nos casos em que apenas um morador do domicílio é responsável por prover a família, vimos que se o chefe da família é homem, a fome atinge 13,3% dos lares, enquanto os lares providos por mulheres chegam à cifra de 25,5% em situação de fome, quase o dobro do índice dos lares mantidos por homens. Se o recorte leva em consideração a raça ou cor do único responsável pelo domicílio, constata-se que 48,9% dos lares chefiados por brancos possuem algum nível de insegurança alimentar, índice que sobe para 66,8% se o provedor da família é preto e para 67,8% se o responsável é pardo.

No caso da fome, o estudo apurou que 23,4% dos domicílios sob o encargo de pretos e 18,9% dos domicílios chefiados por pardos estão na grave situação em que todos os membros da família, incluídas as crianças, estão desprovidos de alimentos na quantidade e qualidade necessárias.

Ao analisarmos os recortes por idade, constatamos que os lares onde vivem pessoas com 60 anos de idade ou mais são os menos atingidos pela insegurança alimentar: 58,4% – comprovando o impacto positivo da aposentadoria sobre a pobreza -, enquanto a pior situação é encontrada nos lares com crianças de até 4 anos: inacreditáveis 70,7%.

Com base na PNAD-COVID, o estudo constata que 63,3% dos entrevistados que receberam Auxílio Emergencial utilizaram os recursos para comprar comida, e 27,8% para pagar contas básicas e dívidas. A insegurança alimentar atingiu 43,4% dos lares onde nenhum morador recebeu Auxílio Emergencial, sendo apenas 7,4% deles em situação de fome. Essa situação é dramaticamente maior nos lares onde alguém recebeu o Auxílio Emergencial: 74,1% experimentam algum nível de carência, sendo que 21,9% desses domicílios vivem restrições alimentares de natureza grave.

Os domicílios com os maiores níveis de insegurança alimentar foram os de beneficiários do Bolsa Família: 88,2%. Entre os lares de beneficiários do Auxílio Emergencial, a insegurança alimentar alcançou 74,1%, sendo o índice de insegurança alimentar de 56,4% dos lares que contavam com aposentadorias.

Os índices de consumo de alimentos processados, ricos em gorduras e açucares, de menor custo, aumentaram, sendo reduzido o consumo de alimentos saudáveis, como frutas, legumes, laticínios e carne. Nesse caso, o duplo efeito da perda de renda e da alta inflação de alimentos conduziu a esse resultado: o ovo passou a ser a principal fonte de proteínas nos lares em situação de insegurança alimentar. Tal situação é mais grave entre os adultos, que em muitos casos empobrecem a qualidade de sua alimentação na tentativa de preservar a saúde e a qualidade nutricional de suas crianças.

Como conclusão, podemos estimar, com muita preocupação, que a situação seguramente se agravou no primeiro trimestre de 2021, visto que a pesquisa foi realizada na vigência do Auxílio Emergencial de 2020. Embora seu valor tenha sido reduzido à metade no quarto trimestre do ano, a pesquisa mostra que a sua concessão atenuou os impactos da perda de renda durante a pandemia, o que se torna mais claro se os domicílios com beneficiários do Auxílio Emergencial são comparados com a situação dos domicílios beneficiados pelo programa Bolsa Família.

O retorno do Auxílio Emergencial no segundo trimestre de 2021, conforme a autorização concedida pelo Legislativo, será limitado a 44 bilhões de Reais de custo total em 2021, enquanto pagou quase 388 bilhões de Reais em 2020. Isto já bastaria, sem maiores detalhamentos, para demonstrar cabalmente que o impacto do novo Auxílio Emergencial será consideravelmente menor no combate à insegurança alimentar, porque o valor, o prazo de concessão e o número de beneficiários foram reduzidos.

A tendência clara é de aprofundamento da fome entre os mais severamente atingidos pelo desastre econômico – os informais, os “empreendedores de si mesmos”, os desempregados, os desalentados -, ao menos durante o primeiro semestre de 2021. O retorno do Auxílio Emergencial foi tardio e insuficiente [2].

Ademais, por variadas causas, o preço dos alimentos tem subido consideravelmente acima da inflação oficial, que de alguma forma baliza os dissídios dos trabalhadores formais. Estes, especialmente os de menor remuneração, também estão sendo atingidos por algum nível de insegurança alimentar. Mesmo os lares sustentados por aposentados – menos atingidos hoje pela insegurança alimentar – sofrerão mais no futuro, em razão dos impactos da reforma da previdência, que dificulta a concessão e reduz o valor dos benefícios, chegando em alguns casos a repor apenas 50% do salário médio de contribuição sob a forma de benefício previdenciário.

Somem-se a isso os efeitos da política de austericídio, que insiste em cortar o orçamento fiscal para garantir folga para o pagamento de juros aos detentores da dívida pública. Diversos estudos, feitos por pesquisadores do Instituto de Economia da UNICAMP [3] e também de outros centros de estudos, vêm demonstrando os impactos perversos dessa política de busca do equilíbrio fiscal e da estabilidade de preços a qualquer custo sobre a parcela mais frágil da população, que o estudo do IELA-FUB aponta que vem crescendo e se empobrecendo ainda mais, de forma avassaladora.

Estamos contratando uma maior pressão sobre os gastos com saúde no futuro imediato, em razão do empobrecimento da dieta e do avanço da fome sobre uma parcela tão grande da população, com ênfase nas crianças na mais tenra infância: quase 60% dos domicílios brasileiros experimentavam alguma restrição no acesso a alimentos na quantidade e qualidade necessárias no fim de 2020, situação essa que seguramente se agravou nos meses seguintes. A desídia do governo federal no combate à pandemia e o atraso e a insuficiência do novo Auxílio Emergencial estão deixando mais de uma centena de milhões de brasileiros diante de uma Escolha de Sofia: enfrentar o risco de morrer de fome ou morrer sufocado nas filas dos prontos socorros públicos sucateados pelos cortes orçamentários e superlotados.

O estudo coordenado pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie Universität Berlin não deixa dúvidas quanto à natureza devastadora e à verdadeira face da fome no Brasil: ela é mulher e criança ainda na primeira infância; preta e parda; nortista e nordestina.

Estarão questões como regras fiscais, estabilidade macroeconômica de curto prazo e os interesses do mercado financeiro acima do bem-estar e da vida de parcela tão esmagadoramente significativa dos cidadãos?

Notas

[1] GALINDO, E. et al. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil. Working Papers Series nº 4, IELA – Freie Universität Berlin: Berlin, 2021. Disponível em

https://www.lai.fu-berlin.de/en/forschung/food-for-justice/publications/Publikationsliste_Working-Paper-Series/Working-Paper-4/index.html, consulta em 13 ABR 2021.

[2] BASTOS, P., PETRINI, G. e DOURADO, L. Ação tardia, inação precoce, nova ação tardia. O PIB da pandemia e o cenário pessimista para 2021. Nota 17 do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da Unicamp: Campinas, abr. 2021. Disponível em https://www.eco.unicamp.br/noticias/nota-17-do-centro-de-estudos-de-conjuntura-e-politica-economica-cecon .

[3] ROSSI, P., DWECK, E. e OLIVEIRA, A. (orgs.). Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. Autonomia Literária: São Paulo, 2018.

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