O setor da educação e pesquisa científica no Brasil nunca foi tão atacado. A estratégia de desmonte do governo federal contra o conhecimento atua em diversas frentes: corte de verbas para pesquisa, ataque à autonomia docente, ideologização do ensino. O plano segue com estímulo à militarização, desprezo com avaliações, incentivo ao setor privado inclusive na concessão de bolsas e financiamento. A todo momento se observa a crítica à política de cotas, ao pluralismo e às políticas de inclusão. O boicote ao Enem demonstrou seu sucesso com a mais esvaziada edição do exame em toda sua história. Os técnicos do setor foram escanteados pelos arrivistas.
A condução do governo durante a pandemia é exemplar deste programa de desmonte da educação e de desprezo ao saber. No que diz respeito ao conhecimento científico, exibiu-se uma estúpida ação negacionista, marcada pelo charlatanismo criminoso, que aumentou o número de casos e mortes e confluiu para o isolamento do país. Na área do ensino, não se desenvolveu qualquer programa de apoio aos estudantes, sobretudo os mais carentes, que não dispunham de condições materiais para a aprendizagem em outras plataformas. Matou na saúde, atrasou na educação.
Por isso é significativa a atitude de educadores, professores e cientistas que, nas últimas semanas, têm resgatado a importância do lugar que ocupam na sociedade. Muitas vezes frente à ameaça da barbárie, um gesto de negação é uma das forças mais decisivas de afirmação de valores éticos universais. Sem desprezar as ações estruturais, as instâncias de crítica, os espaços institucionais de protesto e oposição, a ação de indivíduos e grupos que se recusam a curvar-se ao autoritarismo indica a presença de uma brasa dormida de indignação.
O pedido de demissão coletiva de coordenadores do Inep, responsáveis pela elaboração e aplicação do Enem, escancarou a crise do setor. Uma crise dupla, no conteúdo e na gestão. Em primeiro lugar, pela denúncia de tentativa de manipulação ideológica e censura no exame, confirmadas por declarações do próprio ministro da Educação e do presidente da República. Em seguida, pela forma como o órgão vem sendo gerido, em meio ao autoritarismo, assédio e quebra de relações de confiança com a equipe técnica, além da escolha de gestor incapaz para comandar o instituto. O problema que começa na base repercute nos escalões mais qualificados da ciência brasileira.
Na primeira semana de novembro, um grupo de 21 cientistas recusou a receber a Ordem Nacional do Mérito Científico concedida pelo governo federal, depois que dois pesquisadores, igualmente indicados, foram excluídos por pressão de bolsonaristas. Marcos Vinicius Guimarães Lacerda, da Fiocruz, conduziu estudo que demonstrava a inutilidade de cloroquina no tratamento da covid-19. Adele Benzaken, da Fiocruz Amazônia, desenvolvia trabalho de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no Ministério da Saúde e foi demitida por trabalhar na edição de uma cartilha sobre a saúde de homens transexuais. Seus nomes chegaram publicados, por indicação de seus pares, e depois riscados com tinta da ignorância e preconceito.
No fim do mês, o reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Marcelo Fernandes de Aquino, recusou a medalha de Cavaleiro da Ordem de Rio Branco por discordância com o governo Bolsonaro. E explicou em carta enviada ao Itamaraty, responsável pela honraria, que declinava da condecoração por causa da incapacidade do governo federal de dar “rumo correto às políticas públicas para as áreas da educação, saúde, meio ambiente, ciência e tecnologia”. Nos dois casos, não se coloca em crítica as honrarias em si, mas a autoridade de quem as concede. A mão que condecora a própria mulher não tem estatura para adentrar no recinto da ciência e da justiça.
Para completar o conjunto de recusa do arbítrio na área de educação, coordenadores e consultores da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, se demitiram da função. São mais de 100 pesquisadores, altamente qualificados, que se recusaram a servir à farsa estabelecida no órgão. Representantes de universidades e institutos de pesquisa, eles desenvolvem trabalho voluntário e são responsáveis pela política de avaliação e incentivo à pesquisa, inclusive dos programas de pós-graduação, mestrado e doutorado.
Os demissionários, até agora, são da área de matemática, física e diversas especialidades de engenharia (naval e oceânica, aeroespacial, mecânica e de produção), o que impacta fortemente o sistema de ciência pura e aplicada no país. A atitude se deve às decisões erráticas e evasivas implementadas pela atual responsável pela instituição. Além de não efetivar o processo de avalição, que deveria ser feito este ano, a direção da Capes quer patrocinar uma política de sigilo às análises realizadas, contrário ao clima histórico de transparência e respeito à comunidade científica.
As avaliações da Capes servem de instrumento para a concessão de bolsas de pós-graduação, linhas de investimento em pesquisa e desenvolvimento de políticas públicas para o setor. Com o apagão proposital conduzido pela atual gestão, o ensino e a pesquisa de ponta do país deixa de ter critérios públicos, racionais e científicos, para atender a outros interesses, que vão do direcionamento ideológico, estímulo às instituições privadas, incentivo aos projetos de ensino à distância e ao completo desmonte do sistema.
Desobediência construtiva
Quando a inteligência brasileira se rebela de tal forma, colocando em xeque as formas de reconhecimento do valor do conhecimento, as estruturas básicas de funcionamento dos diversos níveis de formação e até mesmo os mais elaborados resultados do sistema de ciência e tecnologia, se acende um sinal de alerta. Há momentos em que a responsabilidade individual e coletiva não pode ser adiada, nem mesmo na expectativa de uma eleição que se avizinha. Pode começar com um grito de revolta ou com uma atitude responsável e construtiva de desobediência. O importante, nessa hora, é dizer não.
Que essa mensagem esteja chegando pela educação é um sintoma profundo da crise, mas traz com ela uma perspectiva de alento.
A condução do governo durante a pandemia é exemplar deste programa de desmonte da educação e de desprezo ao saber. No que diz respeito ao conhecimento científico, exibiu-se uma estúpida ação negacionista, marcada pelo charlatanismo criminoso, que aumentou o número de casos e mortes e confluiu para o isolamento do país. Na área do ensino, não se desenvolveu qualquer programa de apoio aos estudantes, sobretudo os mais carentes, que não dispunham de condições materiais para a aprendizagem em outras plataformas. Matou na saúde, atrasou na educação.
Por isso é significativa a atitude de educadores, professores e cientistas que, nas últimas semanas, têm resgatado a importância do lugar que ocupam na sociedade. Muitas vezes frente à ameaça da barbárie, um gesto de negação é uma das forças mais decisivas de afirmação de valores éticos universais. Sem desprezar as ações estruturais, as instâncias de crítica, os espaços institucionais de protesto e oposição, a ação de indivíduos e grupos que se recusam a curvar-se ao autoritarismo indica a presença de uma brasa dormida de indignação.
O pedido de demissão coletiva de coordenadores do Inep, responsáveis pela elaboração e aplicação do Enem, escancarou a crise do setor. Uma crise dupla, no conteúdo e na gestão. Em primeiro lugar, pela denúncia de tentativa de manipulação ideológica e censura no exame, confirmadas por declarações do próprio ministro da Educação e do presidente da República. Em seguida, pela forma como o órgão vem sendo gerido, em meio ao autoritarismo, assédio e quebra de relações de confiança com a equipe técnica, além da escolha de gestor incapaz para comandar o instituto. O problema que começa na base repercute nos escalões mais qualificados da ciência brasileira.
Na primeira semana de novembro, um grupo de 21 cientistas recusou a receber a Ordem Nacional do Mérito Científico concedida pelo governo federal, depois que dois pesquisadores, igualmente indicados, foram excluídos por pressão de bolsonaristas. Marcos Vinicius Guimarães Lacerda, da Fiocruz, conduziu estudo que demonstrava a inutilidade de cloroquina no tratamento da covid-19. Adele Benzaken, da Fiocruz Amazônia, desenvolvia trabalho de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis no Ministério da Saúde e foi demitida por trabalhar na edição de uma cartilha sobre a saúde de homens transexuais. Seus nomes chegaram publicados, por indicação de seus pares, e depois riscados com tinta da ignorância e preconceito.
No fim do mês, o reitor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Marcelo Fernandes de Aquino, recusou a medalha de Cavaleiro da Ordem de Rio Branco por discordância com o governo Bolsonaro. E explicou em carta enviada ao Itamaraty, responsável pela honraria, que declinava da condecoração por causa da incapacidade do governo federal de dar “rumo correto às políticas públicas para as áreas da educação, saúde, meio ambiente, ciência e tecnologia”. Nos dois casos, não se coloca em crítica as honrarias em si, mas a autoridade de quem as concede. A mão que condecora a própria mulher não tem estatura para adentrar no recinto da ciência e da justiça.
Para completar o conjunto de recusa do arbítrio na área de educação, coordenadores e consultores da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, se demitiram da função. São mais de 100 pesquisadores, altamente qualificados, que se recusaram a servir à farsa estabelecida no órgão. Representantes de universidades e institutos de pesquisa, eles desenvolvem trabalho voluntário e são responsáveis pela política de avaliação e incentivo à pesquisa, inclusive dos programas de pós-graduação, mestrado e doutorado.
Os demissionários, até agora, são da área de matemática, física e diversas especialidades de engenharia (naval e oceânica, aeroespacial, mecânica e de produção), o que impacta fortemente o sistema de ciência pura e aplicada no país. A atitude se deve às decisões erráticas e evasivas implementadas pela atual responsável pela instituição. Além de não efetivar o processo de avalição, que deveria ser feito este ano, a direção da Capes quer patrocinar uma política de sigilo às análises realizadas, contrário ao clima histórico de transparência e respeito à comunidade científica.
As avaliações da Capes servem de instrumento para a concessão de bolsas de pós-graduação, linhas de investimento em pesquisa e desenvolvimento de políticas públicas para o setor. Com o apagão proposital conduzido pela atual gestão, o ensino e a pesquisa de ponta do país deixa de ter critérios públicos, racionais e científicos, para atender a outros interesses, que vão do direcionamento ideológico, estímulo às instituições privadas, incentivo aos projetos de ensino à distância e ao completo desmonte do sistema.
Desobediência construtiva
Quando a inteligência brasileira se rebela de tal forma, colocando em xeque as formas de reconhecimento do valor do conhecimento, as estruturas básicas de funcionamento dos diversos níveis de formação e até mesmo os mais elaborados resultados do sistema de ciência e tecnologia, se acende um sinal de alerta. Há momentos em que a responsabilidade individual e coletiva não pode ser adiada, nem mesmo na expectativa de uma eleição que se avizinha. Pode começar com um grito de revolta ou com uma atitude responsável e construtiva de desobediência. O importante, nessa hora, é dizer não.
Que essa mensagem esteja chegando pela educação é um sintoma profundo da crise, mas traz com ela uma perspectiva de alento.
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