terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Mídia, fake news e eleições de 2022

Por Ângela Carrato, no site Viomundo

A campanha eleitoral já começou. O lançamento oficial de candidaturas à presidência da República deve acontecer apenas entre o final de julho e o início de agosto, mas dificilmente haverá surpresas. Os nomes são conhecidos e a posição que ocupam nas pesquisas de intenção de voto tem se mantido praticamente inalterada.

Se para quem está na liderança é aparentemente confortável, para os demais é sinônimo que precisam agir.

Dito isso, imagine a seguinte situação: o candidato que lidera, isolado, todas essas pesquisas, dá entrevista coletiva de mais de duas horas para veículos da mídia independente, é sabatinado sobre os mais diversos assuntos e a mídia corporativa finge que não vê ou destaca apenas o que considera que pode ser prejudicial ao candidato.

Absurdo? Foi exatamente isso o que aconteceu.

O político é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem praticamente a soma das intenções de votos de todos os demais concorrentes juntos.

A mídia é aquela parcela comandada pelos velhos “barões”, que impõem aos seus jornais, emissoras de rádio e de TV a visão de mundo que lhes interessa, como se eles fossem também os donos das notícias.

Nos Estados Unidos, na Europa ou mesmo na vizinha Argentina, uma situação como essa seria impensável. Aqui, onde esta velha mídia se apresenta como “profissional” e “comprometida com a liberdade de imprensa”, isso é recorrente.

Há sete anos que a mídia corporativa brasileira tenta, sem sucesso, silenciar o Partido dos Trabalhadores (PT) e sua principal liderança, o ex-presidente Lula.

Nestas eleições, decisivas para o futuro do Brasil e dos brasileiros, nada indica que será diferente.

Com um agravante: parece não haver limite para as manipulações, distorções e mentiras, as fake news, que essa mídia diz existirem somente nas redes sociais.

Tudo isso tem levado a previsões sombrias, de que as eleições desse ano têm tudo para ser das mais sujas de toda a nossa história republicana. Em outras palavras, concorrentes e mídia vão para o vale tudo contra Lula.

Polarização artificial

Mesmo Lula tendo dito, na mencionada entrevista coletiva, que fará uma “campanha leve”, “do mais alto nível”, sem responder a provocações, dificilmente inibirá o jogo baixo dos adversários e da própria mídia, que, aliás, já começou.

Jair Bolsonaro e Sergio Moro que o digam. A TV Globo, a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, também.

Com a popularidade em queda livre – sua rejeição chega a 60% – Bolsonaro diz que essa “não vai ser uma eleição difícil”, acrescentando que basta comparar seu governo aos do PT.

Num distante segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, o otimismo de Bolsonaro não encontra base na realidade. Interna e externamente, ele é considerado o pior governante que o Brasil já teve e um dos piores, senão o pior, dirigente de um país na atualidade.

Já o ex-juiz Sergio Moro, terceiro colocado na disputa, a “terceira via” sonhada pela mídia corporativa, simplesmente não decola. Razão pela qual vem tentando, como faz Bolsonaro, polarizar com Lula. Seu objetivo é revitalizar o antipetismo e trazer para si aquela parcela da sociedade que acreditou na mentirosa visão difundida pela Globo e afins de que o grande problema do Brasil é a corrupção.

Nesse sentido, o recente editorial do jornal Estado de S. Paulo que considerou Lula “uma ameaça à democracia” faz coro com os interesses do ex-juiz e também com os de Bolsonaro.

Não por acaso a publicação da família Mesquita se mostra tão preocupada em esconder os feitos dos governos do PT e reviver as mentiras da Operação Lava Jato, apostando na memória curta dos brasileiros.

Quanto a Ciro Gomes, mesmo visivelmente encolhendo em termos de apoio popular, é o único que já formalizou a pré-candidatura. Como não falta, dentro de seu próprio partido, o PDT, quem emita claros sinais de que preferiria vê-lo fora do páreo, sua movimentação possivelmente tenha como objetivo colocar um freio nisso.

A exemplo de Bolsonaro, Ciro também bateu e continua batendo pesado em Lula e nos apoiadores do ex-presidente, tendo extrapolado inclusive os limites da crítica e mergulhado na baixaria política. Apoiadores de Lula não descartam mover contra ele processo coletivo. O assunto está em análise.

Mesmo que os nomes na disputa sejam conhecidos, a maioria da população está longe de saber o que pensa e as propostas de cada um para tirar o Brasil da crise econômica, social e sanitária a que foi levado. A mídia corporativa, que deveria dar destaque a esse aspecto crucial, está mais disposta a confundir do que explicar.

A facada está de volta

O alvo principal de todos os candidatos é Lula. Também o alvo principal da mídia corporativa era e continua sendo o ex-presidente Lula.

O curioso é que quem a agride verbalmente e a seus jornalistas é Bolsonaro. Mais ainda: volta e meia ele ameaça cassar a concessão da TV Globo e tirar os anúncios oficiais da Folha de S.Paulo e ambos fingem que não é com eles.

No fundo, a mídia corporativa quer evitar a todo custo o início do debate sobre a regulação democrática da mídia no Brasil, a exemplo do que ocorre em todos os países democráticos desde o final dos anos 1940. Por isso, é melhor, para ela, não responder a Bolsonaro. Some-se a isso que essa mídia interdita qualquer debate ou declaração favorável à regulação.

Depois de várias tentativas frustradas para endurecer o regime e transformar o Brasil numa ditadura, aprofundando o golpe de 2016, Bolsonaro voltou à carga nos últimos dias.

No Amapá, por exemplo, sem apresentar provas, reafirmou que o pleito de 2018 foi fraudado. Insistiu em colocar em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e dá mostras de que pode seguir seu ídolo, Donald Trump, que não reconheceu a vitória do adversário e lançou os Estados Unidos num dos episódios mais lamentáveis de sua história.

Bolsonaro voltou a viajar pelo país e a tentar ressuscitar o episódio da facada de que foi vítima na campanha eleitoral passada.

Outra vez, sem qualquer base na realidade, atribuiu a responsabilidade a um “integrante do PSOL”, numa evidente atitude que visa criminalizar a esquerda.

A mídia corporativa, por sua vez, comprou e segue divulgando o episódio da facada segundo a versão oficial, quando se sabe que há inúmeras contradições e pontos obscuros nesta visão, sem falar que Bolsonaro tem se reunido, fora da agenda oficial, com delegados ligados ao caso.

Uma das possibilidades é que force a reabertura da investigação, procurando repetir a vitimização que lhe rendeu votos e, para alguns, a própria vitória.

Por qual motivo, por exemplo, a mídia corporativa brasileira não fez nenhuma reportagem sobre a vinda, das Bahamas, do médico do presidente, um oncologista, o único que Bolsonaro admitia atendê-lo em sua mais recente passagem por um hospital?

Entre outros disparates, Bolsonaro tem dito também que, quando tomou posse, o Brasil estava “à beira do socialismo e mergulhado em corrupção”.

Seu objetivo é claro: polarizar ideologicamente e desviar o debate do que não lhe interessa. Sob qualquer aspecto, seu governo levou o Brasil ao fundo do poço e ele não tem, concretamente, nenhum resultado a apresentar.

Sem consistência

Não seria o caso da mídia corporativa dar início a um balanço do governo Bolsonaro?

Deveria, mas dificilmente acontecerá. Seja porque os Marinho e demais “barões” apoiam integralmente a agenda neoliberal e privatizante do atual governo. Seja porque avaliam que podem vir a ter que fechar outra vez com ele, caso a candidatura de Moro não decole.

Moro e o governador de São Paulo, João Doria, integram a tal “terceira via” (nem Bolsonaro, nem Lula) com que sonha a direita brasileira. O problema é que, até agora, falta consistência à candidatura de ambos.

A candidatura de Doria não parece ter muito futuro, enfrentando problemas dentro do PSDB, seu partido, e também no resto do país, onde é pouquíssimo conhecido.

Já Moro enfrenta problemas dentro do partido ao qual filiou, o Podemos. Em vários estados, a agremiação pretende lançar candidatos afinados com Bolsonaro.

No mais, as propostas de ambos seguem a receita neoliberal e tentam captar a parcela de centro-direita descontente com a pessoa do presidente, mas não necessariamente com suas ideias ou com sua agenda neoliberal.

Pouco importa que a inflação esteja na casa dos 10% ao ano, que o preço dos combustíveis seja os mais altos em toda a história brasileira, que metade da população se encontre desempregada ou passando fome.

Para os “barões” da mídia e sua “terceira via”, o importante é que “as reformas econômicas sejam aprofundadas”. Vale dizer: privatizar tudo a preço de banana e aprofundar o corte nos direitos sociais e trabalhistas.

DarkMatter

Outros indícios de que Bolsonaro e o seu “gabinete do ódio” pretendem jogar pesadíssimo surgiram a partir de sua viagem aos Emirados Árabes.

Oficialmente, ele foi lá para inaugurar o pavilhão brasileiro numa feira de exposições em Dubai. Enquanto cumpria a agenda oficial, um membro de sua comitiva manteve contado com representantes da empresa israelense DarkMatter.

A empresa é a responsável pelo desenvolvimento de uma ferramenta que invade computadores e celulares, mesmo desligados.

Possivelmente, o interesse seria utilizá-la para aprofundar o trabalho que o “gabinete do ódio” já faz, com foco no monitoramento das redes sociais, no apoio às redes bolsonaristas, na difusão de desinformação e ataque a adversários políticos.

É importante lembrar que a CPI das Fake News, do Congresso Nacional, chegou à antessala de Bolsonaro e deixou patente a ligação de seus filhos, em especial Carlos, o Zero 2, com disseminadores de mentiras como o blogueiro Allan dos Santos, no momento foragido do Brasil.

Não falta nem mesmo quem acredite que o tal evento em Dubai serviu como fachada para que representantes da extrema-direita mundial se encontrassem e traçassem planos.

Neles, o Brasil, obviamente, ocupa lugar central, depois que Steve Bannon, o assessor de Trump, responsável por sua vitória em 2016, disse, com todas as letras, que a eleição presidencial aqui é a mais importante do mundo em 2022.

Para Trump e a extrema-direita internacional, a vitória de Bolsonaro é fundamental. Não por Bolsonaro, mas pela importância de que se reveste manter o controle de um país do tamanho e da importância geopolítica do Brasil atrelado aos interesses dos Estados Unidos, num momento em que a América Latina diz não ao neoliberalismo e o eixo da economia mundial desloca-se rapidamente para o Oriente.

WhatsApp sem limites?

Outro indício de que a extrema-direita estadunidense vai jogar pesado nas eleições brasileiras é o anúncio feito pelo WhatsApp sobre a possibilidade de derrubar o limite para envio de mensagens. O WhatsApp pertence ao Facebook, empresa recentemente rebatizada como Metaverso.

Como se sabe, o Facebook está por trás do escândalo da Cambridge Analytics, além de ser apontado como ferramenta do Deep State estadunidense (conglomerados empresariais, indústria armamentista, Pentágono e agências de inteligência), que combatem governos progressistas na América Latina e na maior parte do mundo.

O WhatsApp teria a capacidade de expandir o alcance das publicações em grupos, assim como ocorre no Telegram, onde canais chegam a ultrapassar um milhão de pessoas.

Especialistas veem riscos de que isso potencialize a circulação de conteúdos falsos em meio às eleições, como aconteceu tanto no primeiro quanto no segundo turno de 2018, sem que as autoridades brasileiras tomassem quaisquer providências.

No Brasil, o WhatsApp é o aplicativo que está presente em 99% dos celulares. Será que é esse tipo de coisa que leva Bolsonaro a falar que “a eleição não será difícil”?

Nas eleições de 2018, por exemplo, fake news contra o PT não foram combatidas e nem sequer desmentidas pela mídia corporativa, a exemplo do “kit gay” e da manifestação de mulheres pelo #elenão.

Nas redes sociais, prevaleceu a visão que as manifestantes, milhares em todo o país, defendiam o aborto e o fim da família, quando, na realidade protestavam e se opunham a Bolsonaro.

A mídia corporativa colaborou com a mentira, dando apenas alguns segundos à cobertura das manifestações. No mesmo dia, por exemplo, o Jornal Nacional da TV Globo dedicou grande espaço de sua edição para Bolsonaro apresentar-se como a resignada vítima que deixava o hospital e voltava para casa, depois da facada.

Não houve qualquer reação do TSE na época e nem depois, com a Corte, ao julgar processos envolvendo fake news naquelas eleições, concluindo que não dispunha de elementos suficientes para uma decisão.

Até o momento não se viu um posicionamento enérgico do TSE, capaz de inibir que isso volte a acontecer, especialmente num momento em que a tecnologia utilizada pelo submundo da internet é capaz de dar aparência de verdade a qualquer mentira.

Basta lembrar que já circulou entre os blogs bolsonaristas uma fake news na qual um aplicativo recriou, com perfeição, a voz da ex-presidenta Dilma. Não é difícil imaginar que efeitos esse tipo de ação podem provocar.

É importante observar que, no passado, os operadores de fake news não contavam com os poderosíssimos recursos agora disponíveis de modificação e previsão comportamental, a partir dos milhares de dados que possuem.

Um dos maiores erros que o TSE pode vir a cometer, em termos das próximas eleições, é banir, por exemplo, o Telegram, mas deixar livre o WhatsApp.

Essa, aliás, é a denúncia central que faz a pesquisadora estadunidense Shoshana Zuboff, no livro “A Era do Capitalismo de Vigilância. A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder” (2020).

As big techs como são chamadas as cinco empresas estadunidenses que dominam o mercado de tecnologia – Apple, Amazon, Alphabet (holding do Google), Microsoft e Facebook – sabem mais de cada usuário do que eles próprios e são capazes de preparar conteúdos aparentemente adequados aos interesses de cada um, inclusive os eleitorais, sem, no entanto, quaisquer compromissos com a realidade.

Ainda sobre as big techs, é importante ressaltar que, há vários meses, perfis progressistas no Facebook e canais no YouTube no Brasil passaram a ter seu alcance reduzido.

Como a mídia independente brasileira (também chamada de progressista ou alternativa) está nestas plataformas, isso pode ser interpretado como uma forma de tentar limitar ou de buscar confinar a opinião crítica e de oposição. Algo absolutamente inaceitável em qualquer circunstância, sobretudo numa campanha eleitoral, constituindo-se em forma velada de censura.

Para os que se arvoram a dizer que tudo não passa de teoria da conspiração, vale lembrar as denúncias reveladas pelos WikiLeaks, em 2014, de que os Estados Unidos grampearam a ex-presidenta Dilma Rousseff e o próprio avião presidencial brasileiro.

Não era para a mídia corporativa estar discutindo essas questões? Era, se o Grupo Globo não fosse parceiro do Google. Aliás, essa parceria foi anunciada, com pompa e circunstância, pela própria TV Globo, sem detalhar sua extensão ou quaisquer outros aspectos. E as autoridades também deixaram por isso mesmo.

Meras sucursais

Se a TV Globo passa pano para Bolsonaro, emissoras de TV, como Record, SBT e a Band, vendem a versão que interessa ao governo, em troca de polpudas verbas oficiais. Mas a relação que mais chama atenção é a existente entre Moro e a família Marinho.

Depois de desmentida pela série de reportagens do The Intercept Brasil (#VazaJato) e pelo próprio STF, que anulou as sentenças de Moro contra Lula, a família Marinho insiste em apresentar Moro como “herói” no combate à corrupção” e não desmentiu e nem pediu desculpas a Lula por tudo o que fez contra ele nos verões passados.

Moro segue sendo notícia. Seus menores passos são alvo de grande cobertura por parte da TV Globo e de seu canal pago, a GloboNews. Também a revista Veja, desde 2018 propriedade do empresário Fábio Carvalho, deu capa da edição de duas semanas atrás, ao ex-juiz parcial, tentando transformá-lo num novo “caçador de marajás”.

Moro é o candidato ideal para os interesses hegemônicos dos Estados Unidos. Ele já deu provas de que serve bem a esses interesses, como ficou evidenciado em sua parceria, ao arrepio da lei, com o FBI e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, contra a Petrobras, sem falar na condenação, sem provas, e prisão de Lula, determinada por ele.

Para parte da mídia corporativa brasileira, que não gosta de Lula, não tem qualquer compromisso com os interesses ou a soberania nacional, e considera Bolsonaro “tosco demais”, Moro é o candidato dos sonhos. A TV Globo e os Marinho que o digam.

O problema é que a candidatura Moro, até o momento, não decolou. E nada indica que, em condições normais, venha a decolar, apesar de toda a força que fazem seus apoiadores. Moro segue recebendo da mídia corporativa tratamento e cobertura dignos de quem lidera a corrida eleitoral.

Enquanto isso, Lula continua sendo solenemente ignorado ou lembrado exclusivamente nos pontos que podem lhe trazer críticas ou problemas. Nunca se viu, por exemplo, a mídia que desconhece Lula dar tanto espaço à polêmica sobre seu possível vice, Geraldo Alckmin, o ex-governador de São Paulo, que deve deixar o PSDB e filiar-se ao PSB ou PSD.

A palavra crise, que não saia das manchetes de jornais, emissoras de rádio e de televisão e serviram de combustível para o golpe contra Dilma, simplesmente sumiu de cena, mesmo o Brasil vivendo agora a maior crise de sua história.

As tais empresas de verificação de fatos (fact-checking), que teriam o objetivo de confirmar a verdade e denunciar mentiras na mídia, não passam de sucursais dos veículos da própria mídia corporativa ou de organismos mantidos com recursos, nem sempre muito claros, de controvertidas fundações estadunidenses.

Infelizmente, a julgar pelo que tem está ocorrendo, a mídia corporativa dá mostras de que novamente em 2022 passará longe do compromisso com os fatos e com a pluralidade de opiniões.

O jogo bruto e sujo contra Lula está apenas começando e a mídia que deveria informar, mente e distorce descaradamente.

Vai ser um vale tudo, mas possivelmente será também a última eleição em que a mídia atuará sem a devida regulação.

* Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG.

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