Charge: Aroeira/247 |
Uma semana depois da posse de Lula, que deu ao mundo a imagem mais bela de nossa história - o povo brasileiro subindo a rampa com o presidente, na contramão do patriarcalismo racista e da violência de Estado -, a escumalha bolsonarista reeditou a cena pelo avesso.
A súcia golpista invadiu o Palácio do Planalto para promover caos e destruição, como fez no Congresso e no Supremo Tribunal Federal.
Seu propósito era desestabilizar o novo governo, disseminar o medo, mobilizar a militância fascista, instalar a insegurança e provocar seus aliados nas Forças Armadas e nas Polícias para encetarem o golpe, tantas vezes prometido e adiado por Bolsonaro. Transformaram a Praça dos Três Poderes numa espécie de Parque Temático do obscurantismo e da boçalidade.
No dia 26 de novembro de 2022, a Rede Estação Democracia publicou artigo que escrevi sob o título “O problema mais urgente do Brasil é a ruptura entre autoridade e poder”.
A tese se referia ao fato de que a autoridade legítima de instâncias da Justiça, aquelas que resistiam ao golpismo e aos crimes perpetrados pelo então presidente, não ousavam ir além dos poucos passos que puderam dar, porque temiam deixar transparecer sua própria impotência, ou seja, sua incapacidade de implementar as decisões.
Isso porque as instituições coercitivas, Forças Armadas e Polícias, não se mostravam suficientemente confiáveis, tão profunda havia sido a penetração do bolsonarismo - até porque as afinidades com o fascismo eram anteriores e persistentes.
O artigo chamava a atenção para a gravidade dos desafios com que o governo Lula se defrontaria.
Desafios produzidos pela ruptura entre autoridade e poder, isto é, entre a legitimidade cuja fonte é a soberania popular, em última instância o voto, e as instituições que garantem a implementação das decisões tomadas pelos detentores da autoridade.
Em outras palavras, a autoridade apenas se realiza como poder se contar com a lealdade das instituições que mobilizam a força das armas.
Em 8 de janeiro, o país assistiu bestializado ao espetáculo de ousadia golpista e impotência oficial. São duas faces da mesma moeda, sobretudo porque a impotência foi construída, arquitetada, detalhadamente planejada: obra do desígnio político dos responsáveis pela segurança.
Consideremos os fatos com o máximo de objetividade.
Há três possibilidades, apenas três: disciplina e hierarquia foram desrespeitadas NA polícia militar do DF, PELA polícia militar do DF, ou não foram.
No primeiro caso, trata-se de sublevação contra oficiais superiores, o comandante geral e o governador.
No segundo caso, a conivência foi determinada pelo comando, embora contra a vontade expressa do governador. Na terceita hipótese, a conivência com os golpistas foi ordenada pelo governador.
Como saber, antes de maiores investigações?
Simples.
No primeiro caso, já à noite do dia 8 de janeiro, contingente numeroso de policiais teria sido preso pelo comando geral da instituição.
No segundo caso, o comandante geral teria sido exonerado e preso pelo governador.
Na terceira hipótese, ninguém teria sido afastado ou preso.
O que aconteceu? Faça você mesmo o teste.
Observo que não vale a pena introduzir a variável secretário de segurança, porque ele se escafedeu, foi juntar-se a seu messias.
Talvez o teste tenha sido inviabilizado pela necessária intervenção federal.
As medidas, desde a noite do dia 8 de janeiro, passaram a ser de responsabilidade do interventor.
Apliquemos então o teste ao Regimento de Cavalaria de Guarda e ao Batalhão da Guarda Presidencial, que não agiram, criminosamente se omitiram.
Basta saber quem “cortou a cabeça” de quem para identificar o ponto a partir do qual cumpriu- se a lei.
Isso porque nas instituições militares, a transgressão aos princípios de hierarquia e disciplina não é tolerada.
Quando superiores não punem subalternos sublevados, estão admitindo, tacitamente, que os princípios mencionados não foram feridos, ou seja, o comportamento da tropa deu-se em conformidade com as ordens recebidas.
Em outras palavras, se houve conivência é porque conivência era o plano.
Não punir tropas coniventes com atos criminosos dos golpistas bolsonaristas é confissão de culpa, o que, por sua vez, corresponde desobediência ao presidente da República, passível de tipificação criminal como tentativa de golpe de Estado.
Se a sublevação é dos comandantes, transfere-se ao ministro da Defesa o dever de afastar os superiores subversivos. Não o fazendo, compete ao presidente exonerar seu ministro.
Não faltaria a tais argumentos, assim diretos, secos e simplistas, alguma sensibilidade às sinuosidades da política? Eles não revelariam ignorância acerca dos jogos de poder, cujos movimentos são limitados por correlações de força?
Não haveria aí ingenuidade ou irrealismo, uma vez que objetivos estratégicos são inalcançáveis se não se submeterem a táticas impostas pelas circunstâncias?
Este, precisamente, é o ponto: a lógica da política não se aplica sem muitas mediações, bastante complexas, às instituições coercitivas.
Ingenuidade, ignorância e insensibilidade há no cálculo que faz tabula rasa das especificidades das instituições da ordem (Forças Armadas e Polícias) e transfere à reflexão sobre elas e ao relacionamento entre elas e a autoridade civil a lógica da política.
O que estaria em jogo numa negociação com elas é inegociável: a mobilização da força das armas de numerosos contingentes humanos, cujo controle constitui seu monopólio.
A negociação tipicamente política, que promove alianças e as rompe, é voto por voto, apoio atual por apoio futuro, acesso a recursos, proeminência, prestígio, benefícios, privilégios e influência, por outros tantos acessos a recursos e influência.
O intercâmbio se dá entre poder, expectativa de poder e perspectiva de poder.
Justificáveis ou não, coerentes ou não, republicanos ou não, os acordos políticos têm as trocas, a palavra, o compromisso e a reciprocidade como bases. Essa lógica também se aplica às trocas entre governos e segmentos da população.
Mesmo a lógica que envolve persuasão ideológica e sacrifícios do interesse pessoal, ou corporativo, em benefício de conquistas coletivas e construções de projetos comuns, mesmo esta envolve troca, alguma isonomia entre os agentes que operam a troca.
Até mesmo a modalidade política da luta, enquanto não ultrapassar o plano das pressões e dos tensionamentos e deslizar para o terreno da guerra civil, pressupõe o respeito comum a regras do jogo, cuja existência implica um mínimo de simetria e igualdade.
A simetria se rompe quando um dos atores da negociação detém a capacidade de mobilizar a seu favor, integral e exclusivamente, a força.
Por isso, a monopolização dos meios de força ou de coerção sempre foi a condição elementar para a formação do Estado.
Entre a agência de coerção e o ator político, não há bens comensuráveis e, portanto, intercambiáveis.
Tanto é assim que, visando evitar que o domínio da força criasse um Leviatã, o monstro tentacular e despótico que se autonomiza e escraviza a sociedade, a imaginação política republicana e democrática concebeu a subordinação estrita das entidades que mobilizam a força à autoridade do povo.
O povo, fonte da soberania, escolhe seus líderes e representantes, aos quais caberá afirmar a soberania popular sobre os meios de coerção, esvaziados de vontade política, desprovidos de qualquer projeto político próprio.
Assim como colegas pesquisadores e militantes democráticos, como o professor Manuel Domingos, têm chamado a atenção para os riscos de que o governo se fragilize, excessivamente, concedendo às Forças Armadas uma posição de quase autonomia, tenho procurado enfatizar, ao longo dos anos, que a recusa a afirmar uma política nacional para a segurança pública, por parte dos governos federais democráticos e populares, tem contribuído não só para a reprodução do verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres em curso há décadas, nos territórios vulneráveis, como para a autonomização inconstitucional de segmentos policiais importantes, gerando milícias e, principalmente, a milicianização de algumas agências institucionais.
É possível afirmar uma política de reformas com prudência, respeitando o pacto federativo e a independência das instituições.
Ainda que mudanças exijam muito tempo de amadurecimento, é preciso dar o primeiro passo, seja porque de outro modo não se vai a lugar nenhum, seja porque pequenas sinalizações podem reduzir as ameaças à democracia, produzir impactos significativos na vida cotidiana da população e salvar vidas.
Os eventos dramáticos do dia 8 de janeiro oferecem a oportunidade de uma inflexão política, isolando o bolsonarismo e impelindo o governo federal a avançar, rumo à adoção, na Defesa e na Segurança, de políticas cuidadosas e moderadas mas efetivamente vinculadas a agendas transformadoras.
Uma correlação de forças negativa só altera seu equilíbrio original pelo movimento do protagonista em posição desfavorável.
Logo depois que bolsonaristas criminosos invadiram e depredaram as casas dos Poderes da República, Lula fez seu discurso talvez mais importante, mesmo que o tenha proferido sob tensão, no calor da hora.
Extrair de sua fala todas as consequências implicaria despertar da letargia compromissos históricos que pareciam condenados a hibernar.
A ordem a restaurar que mais importa é a que se dá, ou se desconstitui, no interior das instituições da ordem.
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