Charge: Glê |
A reivindicação das cúpulas fardadas e do ministro da Defesa José Múcio Monteiro de aumento do orçamento das Forças Armadas obriga a que o governo, o Congresso e a sociedade civil se ponham a discutir os gastos militares do país à luz do perfil de Forças Armadas necessárias para o Brasil na terceira década do século 21.
O ministro Múcio declarou que “hoje nós gastamos 1,3% do nosso PIB nos investimentos das Forças Armadas […], e estamos preparando uma proposta combinada com os três comandantes para apresentar primeiro um orçamento de 1,5% [do PIB], depois de 1,8%, depois de 2%, que é o número recomendado pela OTAN”.
O pleito de aumento de 70% do orçamento das Forças Armadas nos próximos três anos com a manutenção dos vícios e desvios vigentes é injustificável e profundamente equivocado.
A farda representa um fardo extremamente alto bancado pelo povo brasileiro no orçamento nacional. Além de elevados, tais gastos são muito mal empregados – e não somente devido à corrupção com compras superfaturadas, desvios, aquisição de carnes de boutique, itens nobres e de luxo e toda sorte de mordomias.
Os estamentos fardados gozam de inúmeros privilégios, vantagens e favorecimentos que foram ampliados sobremaneira no período do governo fascista-militar presidido por Bolsonaro – aumentos salariais diferenciados, aposentadorias e pensões imorais, vantagens indecorosas e carreira turbinada com promoções injustificáveis, como noticiado ultimamente pela imprensa sobre R$ 770 mil recebidos pelo atual comandante do Exército, general Tomás.
Em 2022, dos R$ 106 bilhões do orçamento executado pelo ministério da Defesa, R$ 87,4 bilhões, 82,4% do total, foram só para pagamento de pessoal [Portal da Transparência].
Os R$ 87,4 bilhões gastos com pessoal e encargos sociais pelo ministério da Defesa, que congrega as despesas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, representam o maior gasto com pessoal em todo Orçamento da União. Em segundo lugar, muito atrás, vem o ministério da Educação, com R$ 67,2 bilhões, conforme tabela:
No entanto, da verba total de despesas de pessoal [R$ 87,4 bi] do ministério da Defesa, apenas uma parcela minoritária [R$ 33,3 bilhões] foi destinada para pagamento de militares da ativa. A maior parte – R$ 54,1 bilhões, 61,9% do total – foi para pagar inativos: R$ 29,6 bi para aposentados e R$ 24,5 para pensionistas de militares; em grande parte filhas de militares.
Em 2022 a União despendeu R$ 127,8 bilhões para o pagamento de aposentadorias e pensões à totalidade de servidores públicos civis e militares da União, sendo que somente para os militares foram dispendidos R$ 54,1 bilhões, equivalente a 42,3% de tal despesa geral do Tesouro Nacional.
Os pagamentos a filhas de militares – 144.607 privilegiadas que recebem pensões vitalícias – representam a maior parcela das pensões militares pagas, muito acima das viúvas/cônjuges, que totalizam 64.050.
A comparação com pensões pagas a civis revela um abismo de distância. Das 288.160 pensões pagas pelo Tesouro a civis, a imensa maioria [184.600] é paga a cônjuges, sendo que filhos menores representam 96.544 beneficiários que recebem pensão transitória, no máximo até os 24 de idade, se universitários, conforme tabela [Portal da Transparência]:
No caso das filhas de militares, além de vitalícia, a pensão tem valores extravagantemente elevados. Neste universo de pensionistas que recebem pensão vitalícia estão não só as filhas, como também netas, noras e sobrinhas de generais e oficiais da ditadura.
O caso da neta do ditador Ernesto Garrastazu Médici chama atenção pela engenhosidade empregada pelos militares para manterem seus escandalosos privilégios por toda a eternidade. Poucos meses antes de morrer, Médici adotou como filha a própria neta Claudia Candal, de 21 anos, cujos pais ainda estavam vivos, para que após a morte da sua esposa, que veio ocorrer em 2003, a netinha fosse então agraciada com uma pensão vitalícia que em janeiro de 2023 foi de R$ 35.580,30.
Enquanto praticamente todo o orçamento militar brasileiro é direcionado para pagar salários, aposentadorias, pensões, mordomias, compras de luxo e regalias da família militar, o nível de investimento das Forças Armadas foi de apenas R$ 5,0 bilhões em 2022, o que corresponde a 4,8% do orçamento do ministério da Defesa.
É uma realidade contraditória com a reivindicação permanente das cúpulas fardadas, que clamam por aumento do orçamento militar supostamente para possibilitar investimentos na área, mas na prática tal incremento orçamentário é apropriado para finalidades corporativas e nada republicanas.
Por outro lado, também chamam atenção as despesas das Forças Armadas no Exterior, envoltas num orçamento secreto. No exercício de 2022, foram R$ 3,9 bilhões [tabela] para a participação militar brasileira em programas no mínimo controversos e cercados por uma nuvem de opacidade e obscurantismo.
A sociedade não pode continuar aceitando a gestão à parte e sem escrutínio público do orçamento militar brasileiro.
A discussão sobre o orçamento das Forças Armadas deve ser feita à luz das necessidades fundamentais do Exército, Marinha e Aeronáutica para corresponderem com eficiência à proteção da soberania e à defesa nacional.
A definição sobre as prioridades militares e a estratégia nacional de defesa não podem ser delegadas aos próprios militares, pois essas são, essencialmente, atribuições da sociedade civil por meio dos poderes Executivo e Legislativo, com ampla participação de acadêmicos, pesquisadores e especialistas civis na questão militar.
O professor Manuel Domingos Neto tem defendido a realização de uma Conferência Nacional de Defesa como âmbito institucional para o país avançar nesta discussão estratégica.
O 8 de janeiro criou uma oportunidade histórica para a sociedade civil brasileira enfrentar a questão militar e afastar em definitivo o delírio sobre o absurdo papel das Forças Armadas como Poder Moderador e na tutela da democracia.
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