domingo, 25 de junho de 2023

O Brasil escolhe o Brasil

Foto: Ricardo Stuckert
Por Marcelo Zero, no site Viomundo:


No último dia 21, esteve na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do Brasil uma delegação da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu.

Na conversa que se seguiu, diversificada, um parlamentar estoniano, do grupo de direita “Identidade e Democracia”, afirmou, a respeito do conflito na Ucrânia e da geopolítica em geral, que o Brasil teria de decidir entre ficar do lado das “democracias”, isto é, o lado da Europa, dos EUA e aliados, ou do lado das “ditaduras”, a saber, Rússia, China e outros países.

Não haveria meio-termo e equidistância possíveis.

Outro parlamentar europeu afirmou que a China tende a “escravizar” outros países, por meio de empréstimos e dívidas.

Um parlamentar espanhol classificou o conflito da Ucrânia como uma “guerra imperialista” promovida unilateralmente pela Rússia, que, segundo ele, quer impor seu domínio autocrático em toda a Europa.

Essa visão simplória e maniqueísta do conflito na Ucrânia e da nova ordem mundial parece perpassar boa parte do espectro político europeu.

Mesmo parte da esquerda europeia parece ter aderido a essa visão “atlanticista” e paranoica da nova conformação geopolítica e geoeconômica mundial, a qual conduz, invariavelmente, à nova Guerra Fria, que antepõe, como disse o parlamentar estoniano, o “bem”, as democracias ocidentais, e o “mal”, as “autocracias”, como China, Rússia, etc.

Pois bem, ao contrário do que afirmou o parlamentar estoniano, o Brasil e outros países do chamado Sul Global não têm de escolher entre quaisquer dos lados identificados por esse novo maniqueísmo diplomático.

Entre EUA e Europa, de um lado, e China e Rússia, de outro, o Brasil escolhe o Brasil, país com interesses próprios e independentes, que deseja ter boas relações com todas as nações e que procura contribuir para a conformação de uma ordem mundial multipolar, multilateral e simétrica, capaz de dar soluções para os graves problemas do planeta, como o aquecimento global, a fome, a pobreza, as desigualdades e as guerras.

A maior parte dos países emergentes e em desenvolvimento do mundo concorda com essa posição brasileira e não tem motivos históricos para ser hostil, a priori, em relação à China, Rússia e outros países atualmente demonizados pela nova cruzada ocidental.

Não se deve esquecer que os países da América Latina, da África e de outras regiões do “Sul Global” não foram colonizados por Rússia ou China.

Foram colonizados, essencialmente, pela Europa, o que, em alguns casos, deixou cicatrizes difíceis de serem esquecidas.

Na África, continente que se livrou do colonialismo em tempos relativamente recentes, muitas vezes mediante guerras contra os colonizadores europeus, há alguma desconfiança em relação à Europa, mas não há suspeição relativamente à Rússia ou China.

Este último país, frise-se, está investindo na África 2,5 vezes mais que todo o Ocidente combinado, o que vem beneficiando muitas economias daquele continente. Por qual, motivo, então, a África teria de ser hostil à China? Ou a América Latina?

Em relação às “dívidas escravizantes”, a experiência negativa da maior parte dos países do mundo tem mais a ver com dívidas contraídas com o Ocidente.

Com o FMI, por exemplo, organismo controlado por EUA e Europa, que só desembolsava e desembolsa empréstimos mediante draconianas condicionalidades, impondo políticas econômicas ortodoxas e impopulares aos seus credores.

O Brasil, antes dos governos do PT, foi também uma vítima dessas dívidas. Ainda é fresca, na memória coletiva da América Latina, as “décadas perdidas” ocasionadas pelas “crises da dívida externa”. China e Rússia nunca nos constrangeram dessa forma.

Rússia e China também não interviram nos assuntos internos dos países da América Latina. Nesse aspecto, há uma desconfiança histórica, no que tange aos EUA. Motivos não faltam.

Em estudo publicado na Harvard Review of Latin America, em 2005, menciona-se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA conseguiram êxito em mudar governos da região 41 vezes, o que dá uma média de uma mudança de governo a cada 28 meses. Ressalte-se que, nesse estudo publicado na Universidade de Harvard, não se analisa as possíveis intervenções recentes, como as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016).

O recente apoio do governo Biden à democracia brasileira, muito bem-vindo, não invalida o fato de que a América Latina não tem razões para ter desconfianças em relação à Rússia ou China, nesse campo.

Ao pressionar o Brasil e os demais países do mundo a se alinhar a um dos polos dessa nova Guerra Fria, com argumentos maniqueístas e pueris, EUA e Europa cometem um grave erro de avaliação, que poderá produzir efeitos contrários aos pretendidos.

Com efeito, essa pressão belicista poderá ser interpretada como uma atitude arrogante e neocolonial.

Melhor seria investir em cooperação franca, sem condicionalidades geopolíticas, moralistas e maniqueístas, as quais colocariam obstáculos de monta à construção de uma ordem mundial pacífica, sustentável, multipolar e simétrica.

Colocariam obstáculos, em última instância, a um mundo efetivamente mais democrático e igualitário.

Melhor seria abrir as burras e pagar suas dívidas históricas, como a relativa ao meio ambiente.

Lula, agora em Paris, referindo-se à famosa e ofensiva side letter do assimétrico Acordo Mercosul-EU, deixou claro: parceiros estratégicos não devem ser ameaçados. Muito menos submetidos a regras de outros países, que nem eles mesmos conseguem cumprir.

Da mesma forma, parceiros estratégicos não devem ser pressionados a se posicionar contra seus próprios interesses e contra os interesses da maior parte dos países do mundo.

E “falsos amigos” são aqueles que impõem vassalagem para serem “amigos”. Viu, Liberátion?

A nova cruzada política-ideológica que EUA e Europa parecem querer impor ao mundo não interessa ao planeta. Nem ela, nem as posições protecionistas e as pretensões hegemônicas a ela associadas.

A maior parte dos países do mundo, como Brasil, quer paz e pão.

Quer ter a oportunidade de crescer, prosperar e de dar às suas populações o mesmo nível de bem-estar das populações europeias.

Os antigos colonizados querem ter tratamento igual aos dos antigos colonizadores. Querem respeito. Não se submeterão a bullyng diplomático, venha de onde vier.

O Brasil escolhe o Brasil. O Brasil escolhe o mundo. Só isso.

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