Durante a campanha eleitoral, Javier Milei prometeu uma política externa profundamente ideologizada, tal qual a política externa de Bolsonaro na gestão de Ernesto Araújo.
Milei, que segue confessadamente os ensinamentos de Conan, o mastim inglês, afirmou, entre outras coisas, que não manteria relações com países “comunistas”, como China, e que se afastaria do Brasil de Lula.
Também deixou claro que suas absolutas prioridades em política externa seriam os EUA e Israel.
Em nenhum momento, mencionou, como relevante, a integração regional, bem como o Mercosul, a Celac e a Unasul, principais instrumentos de cooperação e de articulação de interesses da América Latina.
Em tempo algum sinalizou que as relações bilaterais com o nosso país teriam alguma importância.
Embora o ultradireitista tenha feito alguns gestos de moderação antes de tomar posse, como enviar a futura ministra das relações exteriores à Brasília para aparar as arestas causadas pelos graves e reiterados insultos a Lula, a política externa de Milei não deverá ser muito diferente da implementada por Bolsonaro.
Há poucos dias, a ministra de relações exteriores da Argentina, Diana Mondino, anunciou que seu país retirará seus embaixadores em Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Na China, a Argentina continua sem embaixador, e está sendo representada por uma diplomata de baixo escalão.
A chanceler também já deixou claro que Argentina não entrará para o BRICS em janeiro, como estava previsto. A alegação é a de que a Argentina não teria condições de pagar a “taxa” de entrada.
Em compensação, a Argentina de Milei deverá pagar, com orgulhoso regozijo, o devido pedágio para entrar na OCDE, o “Clube dos Ricos”, organização que demanda compromissos com políticas econômicas conservadoras e alinhamento geopolítico com o chamada Ocidente.
A Argentina, com Milei, também tentará articular apoio para a Ucrânia e a OTAN na América Latina, colocando-se, assim, em rota contrária à posição do Brasil, da maioria da região e do Sul Global de manter neutralidade relativamente a esse conflito e de contribuir para buscar uma paz realista e exequível.
Sua anunciada aliança com o governo de extrema-direita de Israel também se choca com a posição do Brasil e da maioria dos países em desenvolvimento, que estão empenhados num cessar-fogo em Gaza e na implementação da “solução dos dois Estados”.
A clara opção ideológica de Milei pelo alinhamento incondicional e acrítico à geopolítica belicista e confrontacionista estadunidense, que tenta impor uma nova Guerra Fria ao mundo, deverá ter efeito disruptivo no protagonismo internacional do Brasil, particularmente no que tange à integração regional.
A política externa do Brasil no terceiro governo Lula está fortemente dedicada a fortalecer os mecanismos que integram a América do Sul e a América Latina, abandonados no governo Bolsonaro.
Com efeito, o estímulo aos processos de integração política, comercial e de infraestrutura com os países vizinhos, além de ser um princípio constitucional da nossa política externa, sempre foi forte diretriz da diplomacia brasileira, sobretudo em governos progressistas.
Mercosul, Unasul e Celac não surgiram por geração espontânea. Eles foram criados a partir de um esforço conjunto, no qual o Brasil foi protagonista. A Argentina participou ativamente desse esforço.
Na realidade, a , assentou-se fortemente, desde o início, na relação bilateral Brasil/Argentina.
Essas organizações fundamentais da integração regional compõem uma visão estratégica que procura promover a integração América do Sul e da América Latina como zonas geográficas de paz e desenvolvimento e como atores coletivos em um mundo multipolar e mais simétrico.
Uma região não comprometida com alinhamento algum e que tem interesses próprios. Uma região efetivamente soberana.
Milei e a direita argentina não parecem gostar muito dessa opção pela soberania.
Querem uma inserção subalterna na esfera de influência dos EUA e de alguns aliados dessa potência.
Querem voltar ao passado de uma ordem mundial unilateralista que não mais existe.
Isso implica rejeitar o BRICS e a multipolaridade e manter uma relação de distanciamento, no mínimo, com China, Rússia e todos os países que não são considerados “bons aliados” dos EUA.
Implica também distanciamento do Brasil e da integração regional soberana.
Não surpreenderá se a Argentina, com Milei, apostar no fim da união aduaneira do Mercosul, como já propunha Domingo Cavallo ao final década 90, e abandonar a Unasul e a Celac.
Tampouco causará surpresa se Milei decidir fazer acordos de livre comércio radicais, como conviria a discípulos da Escola de Viena, sem a participação dos demais sócios do Mercosul.
Não surpreenderá se Milei passar a sabotar os esforços do Brasil para manter a nossa região como uma zona de paz, não alinhada com nenhuma potência extrarregional, empenhada na multipolaridade e dedicada a manter pragmaticamente boas relações com todo o mundo, sem discriminações político-ideológicas.
Manter o antigo (e bom) embaixador em Brasília pode ajudar, mas não será suficiente para evitar um efeito disruptivo e negativo na região.
A política externa de Bolsonaro, especialmente na gestão de Ernesto Araújo, foi adversária dos interesses do Brasil, da integração regional e da multipolaridade.
Nos tornou párias. Perdemos protagonismo regional e mundial. Perdemos soberania.
A política externa de Milei, que deverá seguir os mesmos cânones fortemente ideológicos, também será adversária do Brasil, assim como se contraporá à soberania argentina.
Argentina e Brasil são grandes parceiros estratégicos, mas Milei prefere outra estratégia de inserção mundial.
Vem aí um “DNU” contra a integração regional soberana.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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