segunda-feira, 4 de março de 2024

Política pública e a lógica da tesoura

Foto: Diogo Zacarias
Por Paulo Kliass, no site Vermelho:


A Constituição Federal estabelece algumas diretrizes a respeito do tema de Finanças Públicas. Em seu Capítulo II, estão estabelecidas as peças legais para o ordenamento das condições da institucionalidade orçamentária. Assim, o Poder Executivo de todos os entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) deverá contar com três leis: i) planos plurianuais, ii) diretrizes orçamentárias e iii) orçamento anual.

Além disso, no mesmo art.165, o texto constitucional determina alguns procedimentos no que se refere à própria dinâmica do orçamento público e as relações entre as competências do governo e do legislativo a respeito da referida matéria. Assim, vê-se que:

(…) “§ 3º O Poder Executivo publicará, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária.” (…)

Por outro lado, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) aprofundou e detalhou os mecanismos relativos à busca de maior eficiência e eficácia na gestão orçamentária e fiscal. De acordo com os dispositivos da Lei Complementar nº 101/2000, a Seção III é dedicada ao “Relatório Resumido da Execução Orçamentária” (RREO). Ali estão estabelecidas as regras e a metodologia para apuração de tal balanço, com discriminação de receitas e despesas em diferentes abordagens, bom como a determinação de divulgação dos balanços de resultados fiscais primário e nominal.

Alterar a meta fiscal para o Brasil crescer

Desta forma, no final de março próximo deverá ser divulgado, como corre a cada exercício, o primeiro RREO de 2024, relativo ao bimestre janeiro/fevereiro. As expectativas todas se voltam para os números a serem apresentados pelos responsáveis da área econômica. Afinal, o governo se comprometeu a perseguir uma meta de resultado primário igual a zero para o ano em curso. Com isso, a dinâmica dos RREOs periódicos permite o acompanhamento da evolução de tal objetivo a cada encerramento bimestral.

O rigor no cumprimento da execução fiscal com a busca da meta “zero” já foi embutida na elaboração e na votação dos orçamentos fiscal e da seguridade social. Tendo em vista os dispositivos austericidas presentes do Novo Arcabouço Fiscal, criado pela Lei Complementar nº200/2023, a tendência é de se promover ainda mais controle e contingenciamento das rubricas na área social e nos investimentos ao longo dos meses até o final do ano.

As primeiras notícias divulgadas pelo lado das receitas apontam para um melhor desempenho do que o imaginado anteriormente. A arrecadação tributária da União alcançou R$ 280 bilhões no primeiro mês do ano. O valor é o maior da série histórica para o período desde 1995 e representou uma elevação real de quase 7% na comparação com janeiro do ano passado. As avaliações apontam para o crescimento de receitas extraordinárias e atípicas, segundo informe da própria Secretaria da Receita Federal. Esse é o caso da novidade da tributação dos fundos exclusivos e também de desonerações de alguns tributos. Porém, existe um grande consenso de que ainda é muito cedo para se projetar que um comportamento de tal natureza se mantenha ao longo dos próximos onze meses.

Haddad e a obsessão com cortes a todo custo

De qualquer forma, independentemente de alguma melhora no ritmo da arrecadação ao longo do conjunto do exercício, o fato concreto é que a síndrome da tesoura vai se perpetuar na condução da política fiscal. Como o compromisso quase obsessivo de Fernando Haddad é com a meta zero no equilíbrio primário, a condução das demais políticas públicas fica absolutamente reduzida em administrar as migalhas das despesas nas áreas essenciais do Estado, a exemplo de saúde, previdência social, educação, saneamento, assistência social, segurança pública, pagamento de salários dos servidores, investimentos e demais itens.

Em 2023, o resultado das contas governamentais foi um déficit primário de R$ 230 bi. Ora, para se sair de um movimento como esse e alcançar um equilíbrio zerado em 2024, a tendência será de se promover um ajuste de natureza recessiva. A única possibilidade para escapar a esse quadro seria um aumento inesperado nas receitas tributárias. Essa possibilidade seria muito bem vinda, mas o uso que o governo possa vir a fazer de tais recursos extraordinários a ingressarem em seu caixa é que gera uma importante polêmica.

A cartilha da ortodoxia neoliberal sugere manter de forma rígida a meta de equilíbrio e utilizar plenamente as receitas que chegarem a mais do que o previsto para pagar os juros da dívida pública. Sim, pois essa é a ideia fixa de quem se preocupa apenas e tão somente em gerar superávit primário ou fugir do déficit como quem foge da cruz. É sempre bom lembrar que a lógica do “primário” libere as despesas não financeiras. De maneira que em 2023, por exemplo, o governo registrou um valor recorde de despesas financeiras, com pagamento de juros da dívida pública. Foram R$ 720 bi apenas a esse título.

Mas o momento que o Brasil atravessa e o sucesso do terceiro mandato de Lula dependem de outras variáveis. Por exemplo, torna-se fundamental recuperar o protagonismo do Estado em diversas áreas de sua responsabilidade, bem como é imprescindível a retomada de programas sociais em que o aumento do patamar das despesas públicas é elemento basilar.

Assim, o recomendável seria que o Presidente Lula assumisse para si os elementos chaves da condução da política econômica. No caso em especial, aproveitar as informações do primeiro RREO e promover uma adequação da meta fiscal para um déficit semelhante ao de 2023, que registrou -2,3% do PIB. Essa incorporação de um objetivo mais realista e menos influenciado pelo dogmatismo austericida teria o condão de permitir ao governo promover as elevações necessárias nas despesas orçamentárias tão essenciais para que Lula consiga se aproximar de sua promessa de realizar 40 anos em 4.

O Presidente dizia à época da campanha que só havia aceito a incumbência de um terceiro mandato se ele fosse capaz de fazer mais e melhor do que realizou nos dois primeiros, entre 2003 e 2010. Ora, para tanto, é fundamental que o seu governo se liberte do jugo da tesoura cortadora de despesas e se apresenta para o conjunto da sociedade como o impulsionador das políticas públicas tão aguardadas para que os caminhos de superação da crise sejam apresentados para todos nós.

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