Editorial do site Vermelho:
A disputa presidencial dos Estados Unidos, concluída com a vitória de Donald Trump, ao revolver de cima abaixo a dividida sociedade estadunidense, crivada por elevada desigualdade social, racismo, violência, ódio aos imigrantes, ofensiva contra os direitos reprodutivos das mulheres e outros antagonismos, ao trazer à tona o pesadelo que se tornou o decantado “sonho americano” e uma economia regida pelo parasitismo financeiro, ao revelar as duas candidaturas em continência com a diretriz de guerras e genocídios contra os povos, e mais uma vez escancarar um sistema político, eleitoral e partidário com a legitimidade corroída, retratou com nitidez o declínio crescente do imperialismo estadunidense.
Ao contrário do que previram as pesquisas, Trump saiu vitorioso, numa disputa acirrada, tanto no voto popular quanto dos delegados do Colégio Eleitoral, além de fazer maioria no Congresso, fato que evidencia o grau de desgaste da gestão de Joe Biden, tanto na política interna, como a economia e a imigração, quanto externa, cuja marca é o apoio irrestrito da Casa Branca ao genocídio do povo palestino em Gaza. Os setores progressistas, como a juventude estudantil, que faz campanha de solidariedade ao povo palestino, obviamente não se viram estimulados a votar em Kamala Herris.
Uma das razões para tal resultado é a naturalização de Trump pelo establishment financeiro e midiático, em sua maioria, que lhe deu o salvo-conduto da normalidade, apesar da invasão do Capitólio. Trump despejou na campanha farto e corrosivo conteúdo supremacista e neofascista. Elon Musk fez da sua plataforma X uma usina de munição suja a favor de Trump. Postagens do bilionário, pura fake news, tiveram mais de dezessete bilhões de visualizações, fato que evidencia o grau de desmoralização da “democracia liberal” ianque.
Embora na superfície os temas da economia, da imigração, do direito ao aborto, do respaldo ao genocídio do povo palestino tenham predominado na campanha, uma questão superior regeu toda a atmosfera do confronto: a missão do Estado estadunidense de tentar conter ou reverter seu declínio relativo, que se acelera no sistema de poder mundial ante a ascensão progressiva da República Popular da China. Este é o programa real, há anos obrigatório ao inquilino da Casa Branca, republicano ou democrata.
Contudo, sucessivos mandatos presidenciais neste século resultaram em fracasso nessa missão de injetar dinamismo na economia, apesar de inúmeras guerras bélicas e comerciais e agressão à soberania de países. E o mandato de Trump tende a repetir a sina, pois se realizará no contexto de um país que sai ainda mais fragmentado e entrecortado por ódio e ressentimentos, e será confrontado por um cenário internacional cada vez mais multipolar.
Reverter tal declínio encerra dificuldade extrema, posto que, além dos obstáculos conjunturais – no caso, o rescaldo das eleições –, existem as causas estruturais. O país vive uma crise acentuada desde o cancelamento unilateral da conversibilidade do dólar em ouro no começo da década de 1970, num processo de rearranjo da Conferência de Bretton Woods, de 1944. A escalada da financeirização e a debacle do campo socialista liderado pela União Soviética deram nova face do capitalismo, o chamado projeto neoliberal, com forte impacto negativo na indústria e na concentração de renda.
A combinação de arrocho fiscal e taxa de juros impôs barreiras à economia produtiva, limitando a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), o papel do Estado na economia e as políticas públicas – de resto, tendência que se espalhou pelo capitalismo, inclusive em países da semiperiferia e da periferia do sistema, entre eles o Brasil.
O panorama dos Estados Unidos é de forte concentração da economia nas grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e nas oligarquias financeiras de Wall Street, ao passo que a pobreza e a desindustrialização se alastram. Fala-se em Cinturão da Ferrugem em algumas regiões, cenário surgido com a queda da indústria a partir dos anos 1980, quando a dinâmica financeira do capital assumiu as rédeas da economia, resultando numa queda drástica de empregos e consequente aumento da pobreza. Esse acúmulo de fatores, somados aos efeitos da pandemia de Covid-19, tem como resultado uma queda da participação dos Estados Unidos na economia global, pela chamada paridade de poder de compra, de 21% em 1990 para os atuais 16%.
A guerra tecnológica desencadeada pelos Estados Unidos contra a China segue o roteiro clássico imperialista de cerco, inclusive com ameaças militares, recurso recorrente do sistema como ocorre atualmente na Ucrânia e no Oriente Médio.
No Brasil, a vitória de Trump reforça a extrema-direita e tende a impactar o comércio entre os dois países com a anunciada política de fechamento progressivo dos Estados Unidos ao comércio internacional. O presidente eleito anunciou tarifas de até 10% para produtos em geral e de 60% para os chineses, além de endurecimento da política de imigração e outras atitudes abertamente de extrema-direita, o clássico receituário de violência contra o povo e truculência política, a face saliente do neofascismo.
Trump também manifesta a intenção de tirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, decisão que terá consequências para a intenção do governo brasileiro de incentivar uma articulação internacional na COP 30 sobre questões climáticas globais, um esforço de financiamento para a transição ecológica.
Esses são, em essência, os elementos das eleições, tradução do quadro de confronto entre duas realidades fundamentais da contemporaneidade. A força unipolar que emergiu pós-fim da URSS perdeu impulso e entrou em declínio, abrindo caminho para a multipolarização, com consequente instabilidade no sistema internacional, fomentadas e alimentadas pela histórica dinâmica de desenvolvimento desigual do capitalismo.
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