quinta-feira, 19 de abril de 2018

Marielle, Lula e o fantasma do esquecimento

Por Mário Magalhães, no site The Intercept-Brasil:

Em meados de março, um tapume em torno do elevador da estação Cinelândia do Metrô foi pichado em letra cursiva: “Marielle presente!”. A vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Pedro Gomes tinham sido assassinados a tiros poucas horas antes. Em protesto, dezenas de milhares de cariocas e agregados ocuparam praças e avenidas do Centro do Rio.

Trinta dias mais tarde, a pichação sumiu. Funcionários me contaram que o Metrô mandou pintar o tapume.

Em contraste com a memória apagada na Cinelândia, mais de cem atos públicos mundo afora assinalaram no sábado o aniversário de um mês das mortes por enquanto impunes. Na Lapa, o abre-alas da caminhada até o local dos assassinatos, no bairro do Estácio, foi uma faixa com o recado “Marielle vive – Militarização: não em nosso nome”.
À indignação e à tristeza amalgamou-se uma obsessão: impedir que as mortes sejam engolidas pelas brumas do esquecimento. Quanto mais forem lembradas, menor será o risco de matadores e mandantes escaparem ao castigo legal. Os indícios sugerem crime de milicianos, declarou o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.

Por ignorância, inépcia ou maldade, a Secretaria de Segurança do Estado do Rio – sob intervenção – acabou com a escolta de Marcelo Freixo por policiais militares. O deputado correligionário de Marielle Franco presidiu a CPI das Milícias, na Assembleia, uma década atrás. Houve vários planos para matá-lo. A retirada da proteção pareceu convite a mais um atentado político. Seria intimidação a quem inspirou o personagem Fraga, de Tropa de elite 2? [Depois de Freixo se reunir com o general Richard Nunes, secretário estadual de Segurança, escalaram policiais civis para escoltá-lo.]

Acumulam-se surtos de insanidade. Em sua reencarnação, desta feita como fanático direitista, o ator Carlos Vereza estercou: “Marielle é um cadáver fabricado por eles… […], a ideologia radical sectária de esquerda”. Nenhum anticomunista é tão devotado quanto um ex-comunista ressentido. Vereza fortalece uma arraigada convicção minha: decência e talento nem sempre são atributos xifópagos. Seu Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere, permanecerá como uma interpretação brilhante.
Procure um psicanalista

No sábado anterior ao da passeata na Lapa, Luiz Inácio Lula da Silva chegara preso à sede da Polícia Federal na República de Curitiba. Apoiadores do ex-presidente acamparam nos arredores. Na segunda-feira seguinte, o nome dele não foi pronunciado nas chamadas ou manchetes que abrem o Jornal Nacional – a “escalada”, no jargão jornalístico. Na terça, o jornal O Globo não imprimiu o substantivo próprio “Lula” na primeira página. Nem em letra pequenina. Esqueceram-no.

Seus partidários empenharam-se em lembrá-lo. Deputados do PT acrescentaram “Lula” aos seus nomes oficiais. Nas redes (antis)sociais, simpatizantes do condenado adotaram idêntico expediente. Militantes montaram bancas nas ruas e recolheram cartas de cidadãos endereçadas ao prisioneiro. Em Aracaju, algumas foram ditadas por iletrados, como na sequência de abertura do filme Central do Brasil. Manifestantes se aglomeraram na praça Olga Benário, como apelidaram uma esquina nas cercanias da Superintendência da PF no Paraná.
Fizeram-me relembrar da dobradinha de 1936 entre o presidente Getúlio Vargas e o Supremo Tribunal Federal. Entregaram à Gestapo a comunista e judia Olga Benário. A alemã estava grávida. Os nazistas viriam a matá-la numa câmara de gás do campo de concentração de Bernburg.

Mesmo em cana, Lula incomoda

A Justiça do Paraná estipulou multa diária de R$ 500 mil aos manifestantes se eles não se afastarem do entorno do prédio da PF.

A Prefeitura de Curitiba pediu à Justiça Federal a transferência do preso.

A juíza Carolina Lebbos proibiu que o ex-presidente conversasse com nove governadores que viajaram a Curitiba em solidariedade. Embora o artigo 41 do Código de Execução Penal preveja como “direito do preso” a “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”. O despacho judicial não determinou dia alternativo para a visita.

O Sindicato dos Delegados de Polícia Federal do Paraná quer LL – Lula longe, e não Lula livre. A entidade reivindicou sua mudança para “uma unidade das Forças Armadas”, em instalação “que possa oferecer condições de segurança e que não traga os transtornos e riscos à população e aos funcionários da Polícia Federal”.

O “Painel” lembrou que o presidente do sindicato, Algacir Mikalovski, é admirador de Jair Bolsonaro. O delegado tem fotos ao lado do deputado.

O encarceramento de Lula não serenou almas atormentadas. O psicanalista Francisco Daudt comparou-o a Hitler: “[…] As semelhanças me assombraram. Senão, vejamos: a atitude messiânica do ‘Führer’ ao discursar, cuidadosamente ensaiada frente ao espelho para transmitir a maior dose de drama possível, aliava-se à estratégia arquitetada pelo gênio da propaganda manipulativa, Joseph Goebbels”.

O jornalista e escritor Bernardo Kucinski contestou: “Voltei esta semana de uma viagem à Polônia, onde visitei três campos de extermínio, Auschwitz, Majdanek e Treblinka. Ainda sob a forte impressão das atrocidades nazistas, deparo com o artigo de Francisco Daudt, que a Folhajulgou adequado publicar, no qual ele compara Hitler, que implantou uma ditadura feroz e provocou a morte de 25 milhões de pessoas, com Lula, que derrubou uma ditadura e tirou da miséria 25 milhões de pessoas. Senti-me mal”.

A autoria do artigo de 2018 me agulhou a memória. Em julho de 2007, a queda de um Airbus A320 que tentara pousar em Congonhas provocou a morte de 199 pessoas. Francisco Daudt, ele mesmo, escreveu que gostaria de ler a manchete garrafal “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. Entre as causas principais da tragédia do voo 3054 da TAM, a investigação da Aeronáutica apontou o controle indevido de manetes, e não o governo encabeçado por Lula.

Se não fosse uma tirada tão óbvia e vulgar, eu recomendaria ao psicanalista Daudt procurar a ajuda de um… deixa pra lá.
Datafolha
Quem também não se esquece de Lula são os eleitores. O Datafolha auscultou as ruas depois da prisão e constatou que ex-presidente conserva o vigor eleitoral, embora pareça inverossímil que a Justiça lhe permita concorrer ao Planalto. Lula sofreu “impeachment preventivo”, na síntese do cientista político Renato Lessa.

Nos três cenários em que aparece como opção, o ex-presidente lidera, com o dobro da intenção de voto de Bolsonaro e o triplo da ex-ministra Marina Silva. Lula alcança 31%, menos do que os 37% de janeiro. Mas a comparação é imprópria, porque o leque de candidatos do novo levantamento não coincide com o do anterior. Com 8% nas simulações com a presença de Lula, o ex-ministro Joaquim Barbosa, recém-filiado ao PSB, atinge promissores 8%.

A Folha advertiu, ao apresentar os resultados: “Como os cenários pesquisados são diferentes dos analisados em janeiro, a comparação direta entre os dois levantamentos não é possível”. O que não impediu o jornal de estampar a manchete dominical “Preso, Lula perde votos; sem ele, Marina sobe e alcança Bolsonaro”.
No Datafolha, Lula manteve o mesmo vigor eleitoral demonstrado em janeiro; não perdeu votos.

Cenários iguais são os de segundo turno. Não custa lembrar: em janeiro, Lula tinha 17 pontos à frente de Bolsonaro (49 a 32). Agora, mantém a distância (48 a 31). Ostentava 19 a mais que o ex-governador Geraldo Alckmin (49 a 30). Hoje, abre 21 (48 a 27). Eram 15 sobre Marina (47 a 32). Em abril, são 14 (46 a 32). Tudo, exceto a baixa do tucano, oscilações dentro da margem de erro. O petista perdeu votos?

A manutenção da preferência por ele impressiona porque se expandiu a percepção de que Lula, enquadrado como ficha suja, não poderá disputar a eleição: de 43% para 62% dos eleitores, aumento de 44%. Ao contrário da imprensa em que a opinião virtualmente única sentencia que a Justiça fez justiça no processo do triplex do Guarujá, 40% dos entrevistados julgam injusta a prisão do ex-presidente (contra 53%). Metade defende o direito de Lula se candidatar.

Dois terços dos que manifestam voto nele sufragariam “com certeza”, se impugnada sua candidatura, alguém indicado pelo ex-presidente. O jornalista Merval Pereira diagnosticou o “final de atuação política” de Lula. Teria de fato caducado a atuação política do possível “grande eleitor” de 2018?

Por mais que certo noticiário omita, oculte e minimize Lula, a crônica dos seus dias na carceragem da PF é acompanhada com curiosidade. Ele assistiu pela TV, no primeiro domingo privado de liberdade, ao seu Corinthians conquistar o título paulista contra o Palmeiras. Levou dois livros para a prisão: o ensaio A elite do atraso, de Jessé de Souza, e o romance Vá, coloque um vigia, de Harper Lee. O sociólogo Jessé visitou o acampamento pró-Lula.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto fez outra visita, ao triplex que serviu de pretexto para a condenação de Lula e o seu provável banimento das urnas. “É uma denúncia da farsa judicial que levou Lula à prisão”, disse Guilherme Boulos, coordenador do MTST e candidato à Presidência pela legenda do PSOL. “Se o triplex é dele, então o povo está autorizado a ficar lá. Se não é, precisam explicar por que ele está preso”. A PM apareceu, e os sem-teto se retiraram.
Há quem não ligue o ‘f*da-se’

Um antagonista de Lula foi lembrado não apenas pelo Datafolha. A Procuradoria-Geral da República denunciou Jair Bolsonaro por racismo. Há um ano, o capitão falou: “Eu fui em um quilombola [sic] em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”. O discurso em que negros são tratados com vocabulário pertinente a animais foi proferido no Rio, em meio a risadas de parcela da audiência, no clube Hebraica.

Filho de pais protestantes mortos em campos de concentração nazistas, Milos Forman morreu aos 86 anos. O cineasta deixou a Tchecoslováquia depois da invasão do país pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto de 1968. Seus filmes Um estranho no ninho e Amadeus paparam estatuetas do Oscar, mas eu me lembro mais da menosprezada versão do musical Hair_de suas cores, canções, comícios e coreografias contra a guerra do Vietnã.

No ataque aéreo de Estados Unidos, Reino Unido e França à Síria, anunciado na noite da sexta-feira, pensei noutra guerra ou massacre. A Casa Branca jurava que o regime de Saddam Hussein, no Iraque, possuía armas químicas. A acusação comprovou-se falsa. Em 2018, se desconhece prova de que o governo de Bashar al-Assad tenha sido o responsável pelo alegado recurso a agentes químicos no subúrbio de Damasco _42 pessoas foram mortas no início de abril. É complicado descobrir mocinhos na tragédia Síria. “Missão cumprida”, tuitou Donald Trump.
Na era Temer, o Brasil coleciona derrotas
Pior do que Trump, porque não teve um só voto popular para o cargo de presidente, Michel Temer foi ridicularizado com 1% na pesquisa presidencial do Datafolha, no cenário em que Lula ponteia com 30%. O vampiro da Sapucaí quis fazer média num encontro com o presidente do Chile, Sebastián Piñera. Disse que desejava as seleções brasileira e chilena na final da Copa. A cortesia pretendida não passou de mico: os chilenos não irão ao Mundial da Rússia.

Na era Temer, o Brasil coleciona derrotas. A precarização do trabalho impulsionou a pobreza extrema, categoria que ganhou 1,49 milhão de brasileiros no ano passado, calculou a LCA Consultores. Já são 14,8 milhões de indivíduos em famílias com renda mensal aquém de R$ 136 por cabeça. Nos últimos 14 anos, 2017 foi o ano com mais assassinatos em conflitos no campo. Somaram 70, inventariou a Comissão Pastoral da Terra.

Com tantas desgraças, um dos sucessos editoriais do ano é um livro narcísico intitulado A sutil arte de ligar o f*da-se, de Mark Manson.

Há quem não ligue (o foda-se), rejeite a viagem em torno do próprio umbigo e se comova com os infortúnios alheios. Na marcha de sábado no Rio, um grito coletivo acalentou a noite do outono: “Atiçou o formigueiro quem mexeu com a Marielle!”.

Na sexta-feira, antes de Caetano Veloso subir ao palco no aterrinho da praia de Iracema, no aniversário de Fortaleza, a multidão bradou por “Lula livre!”. Ao cantar Terra, o eleitor declarado de Ciro Gomes emendou: “Quando eu me encontrava preso, na cela de uma cadeia… Lula livre!” No fim do espetáculo, Caetano proclamou: “Marielle presente! Lula livre!”.

Por mais que uns queiram esquecer, e que o fantasma do esquecimento espreite, muita gente lembra e lembrará.

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