quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O parto de um novo ciclo político

Por Saul Leblon, no sítio Carta Maior:

Assim como as vantagens comparativas na economia, a relação de forças na sociedade não é um dado da natureza, mas uma construção histórica. E precisa ser exercida politicamente; não é uma fatalidade sociológica. A emergência de novos atores nas entranhas da economia não cria automaticamente novos sujeitos históricos.Quem faz isso é a ação política.

Os neoclássicos, os neoliberais aqui e alhures, gostariam que o mapa das vantagens comparativas fosse um pergaminho lacrado e blindado em tanque de nitrogênio. Facilitaria a relação de forças favorável à hegemonia conservadora.

Por eles, o Brasil até hoje seria uma pacata fazenda de café. Ou um esmagador de garapa.

Getúlio Vargas rompeu o interdito dos interesses internos e externos soldados na economia agroexportadora. Isso aconteceu em meados do século passado. Até hoje o seu nome inspira desconforto nos sucessores da casa grande; nos intelectuais que enfeitam seus saraus e nos 'canetas' que lhes servem de ventríloquos obsequiosos.

Em 1930 Vargas derrotou a todos. Desobstruiu assim os canais para lançar as bases de um Estado nacional digno desse nome.

Em 50, no segundo governo, transformaria esse aparelho de Estado em alavanca capaz de assoalhar a infraestrutura da economia industrial que somos hoje.

Ao afrontar o gesso das vantagens comparativas , Vargas alterou a relação de forças na sociedade. Mas não tão sincronizado assim, nem tão solidamente assim, como se veria pelo desfecho em 24 de agosto de 54.

O desassombro daquele período, no entanto, distingue Nação brasileira de seus pares em pleno século XXI.

O Brasil é hoje uma das poucas economias em desenvolvimento que dispõe de uma planta industrial complexa.

A ortodoxia monetarista que engordou a manada especulativa no pasto da Selic na década de 90 - e valorizou o câmbio, a ponto de afogar o produto local em importações baratas até recentemente - afetou o tônus dessa engrenagem. Mas não a destruiu; ainda não a destruiu.

É ela ainda que poderá irradiar a inovação e a produtividade reclamadas pelo passo seguinte do nosso desenvolvimento. Não só para multiplicar empregos com salários dignos, mas sobretudo, para extrair do pré-sal o impulso industrializante e tecnológico que ele enseja, gerando os fundos públicos requeridos à tarefa da emancipação social brasileira.

Não fosse esse lastro fabril , a potencialidade do pré sal não apenas seria desperdiçada, terceirizada e rapinada. Mas conduziria a um duplo salto mortal feito de fastígio imediatista e longa necrose econômica: aquela decorrente da doença holandesa e da dependência externa absoluta .

Foi a industrialização que gerou a organização operária desdenhada pelo conservadorismo como mero ornamento populista.Até que surgiu o PT. E que o PT levou um metalúrgico à chefia da Nação; e não uma, duas vezes; ademais de eleger a sua sucessora em 2010.

A seta do tempo não se quebrou. Mas estamos diante de uma nova esquina histórica.

A exemplo daquela enfrentada por Getúlio, nos anos 50, a dobra seca está cercada de desafios e potencialidades interligados por uma relação de forças igualmente frágil.

Getúlio talvez tenha percebido tarde demais a necessidade de ancorar a travessia econômica em uma efetiva organização de forças correspondentes. Quando atinou era tarde. Mas não só ele.

O descasamento tortuoso entre enredo e personagens daquele período pode ser sintetizado no paradoxal comportamento dos comunistas do PCB.

Em outubro de 1953 Vargas sancionou a lei do monopólio estatal do petróleo. Em dezembro, atacou a farra das remessas de lucros do capital estrangeiro.No início de 1954 decretou em 10% o limite para as remessas de lucros e dividendos. Sucessivamente, criaria a Eletrobrás,o BNDE e elevaria em 100% o salário mínimo.

Em dezembro de 1953 o PCB insistia, conforme o historiador Augusto Buonicore:

“O governo Vargas tudo faz para facilitar a penetração do capital americano em nossa terra, a crescente dominação dos imperialistas norte-americanos e a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos

(...): “O povo brasileiro levantar-se-á contra o atual estado de coisas, não admitirá que o governo de Vargas reduza o Brasil a colônia dos Estados Unidos. O atual regime de exploração e opressão a serviço dos imperialistas americanos deve ser destruído e substituído por um novo regime, o regime democrático e popular”.


Isso quando a direita já escalava os muros do Catete e os jornais conservadores escalpelavam a reputação de quem quer que se acercasse do Presidente, ecoando o alarido udenista pela renúncia que resultaria no suicídio do Presidente, em 24 de agosto de 1954.

Mutati mutandis, trata-se agora de inscrever no Brasil do século XXI uma revolução de infraestrutura e fomento industrial de audácia e desassombro equivalente a que Vargas esboçou há 58 anos.
Foi essa tarefa que Lula retomou no seu segundo governo, e Dilma aprofunda agora.

Repita-se, não se trata de uma baldeação técnica.Não se faz isso dissociado de uma relação de forças correspondente. E esta não é um dado da natureza; precisa ser construída, o que incompatível com o acanhamento amedrontado diante de palavras como 'engajamento', 'mobilização' e pluralismo midiático;

Urge que se faça. Grita nas advertências dos dias que correm; nas investidas cada vez mais desinibidas das últimas horas.

Se o que tem sido testado e assacado nas manchetes não é um ensaio para tornar insustentável o governo Dilma até 2014, então somos todos crédulos nos propósitos republicanos do senhor e senhora Gurgel, de Barbosa & Fux e da escalada midiática que os pauta e ecoa.

Simples coincidência que a orquestra eleve o naipe dos metais exatamente quando solistas como a The Economist disparam setas de fogo contra o 'excessivo intervencionismo de Dilma' nos mercados?

A resposta é não. E até para analistas insuspeitos de simpatias petistas, como o professor da FGV, ex-secretário da Fazenda de Mário Covas, Ioshiaki Nakano.

Trecho de seu artigo desta 3ª feira no jornal Valor:

"os especuladores financeiros, que tinham lucros fantásticos com simples arbitragem de juros, perderam 5,25 pontos da sua remuneração. Perderam mais, pois com o Banco Central administrando a taxa de câmbio e a Fazenda buscando a equalização da taxa de juros interna com a internacional por meio do IOF, a possibilidade de apreciação da taxa de câmbio, pela simples ação dos especuladores, desapareceu e, com isso, os ganhos acima do juros".

A 'expressão lucros fantásticos' não é ornamental aqui. Estamos falando de uma longa sangria de bilhões de dólares embolsados automaticamente nos últimos anos, apenas com um giro do dinheiro barato tomado lá fora e aplicado a juros siderais no mercado brasileiro de títulos públicos, sobretudo.

As perdas e danos geradas pela mudança na regra da jogatina justificam a advertência embutida no arremate do economista:" Reverter as expectativas de longo prazo e mudar as 'convenções' não é tarefa fácil".

Mais que uma tarefa difícil, é preciso repetir à exaustão,ela requer uma relação de forças correspondente.

Para não desaguar em tragédia ou golpe, como tantas vezes na história, essa relação precisa ser construída com passadas largas, hoje maiores que as requeridas ontem.

Sem ela, a transição econômica buscada pelo governo Dilma não ocorrerá.

À esquerda e aos movimentos sociais cabe sacudir a letargia burocrática e refletir sobre o desconcertante esquerdismo do PCB nos anos 50. Enquanto os comunistas lutavam a batalha do dia anterior contra Vargas, o golpe estava escrito nas ruas, nas manchetes, nos discursos, nos astros, nos despachos e nas bulas.

Mas a governo petista cabe igualmente despir-se da esquizofrênica receita de ativismo econômico, de um lado, e alucinado menosprezo ao engajamento político de aliados, do outro.

Vargas que a vulgaridade conservadora reduziu a mero estancieiro gaúcho empurrado pelas circunstâncias; até ele - se quiserem assim - pressentiu onde estava o coração da disputa pela sua sorte e o destino do seu governo.

Eleito em 3 de outubro de 1950, logo em seguida incentivou Samuel Wainer, que conhecera como repórter dos “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, a criar um poderoso aparato de imprensa diária.

Queria pressa. Pediu a Wainer um antídoto ao que antevia, premonitoriamente, como 'um pacto de silêncio' da grande mídia contra seu governo, que dele "só trataria para denegrir".

A história não se repete. Mas 60 anos depois, Dilma --e o PT-- não tem mais o direito de ignorar as suas lições.

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