Por José Antonio Lima, na revista CartaCapital:
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou nesta quarta-feira (16) uma série de propostas para tentar reduzir a violência provocada por armas de fogo no país. As medidas estão em um relatório montado pelo vice-presidente, Joe Biden, após reuniões com diversos setores da sociedade, mobilização iniciada após o massacre de Newtown, em dezembro. As propostas incluem, entre outras, o banimento da venda de rifles de assalto, a redução do tamanho dos cartuchos e a ampliação das verificações de identidade de donos de armas. No improvável caso de serem aprovadas pelo Congresso, as medidas terão impacto reduzido, pois são apenas paliativas. Obama não conseguirá, na verdade nem está tentando fazer isso, impor um controle eficiente de pequenas armas, como revólveres e pistolas, as que provocam mais mortes, pois o debate está completamente dominado por direitistas paranoicos.
Na teoria, o momento político dos Estados Unidos seria propício para mudar a legislação do porte de arma. O massacre de 20 crianças em Newtown inverteu a balança na comparação entre a quantidade de norte-americanos que preferem o controle de armas diante dos que favorecem o direito de portá-las. Segundo pesquisa feita pelo instituto Pew entre 9 e 13 de janeiro, o “controle” vence o “direito de portar” por 51% a 45%.
Na prática, a situação é bem diferente. Os defensores do direito de portar armas são muito mais ativos politicamente. De acordo com a mesma pesquisa do Pew, 23% deles já doaram dinheiro a instituições dedicadas a influenciar o debate sobre o tema. Entre os defensores de mais controle, apenas 5% tiraram dinheiro do bolso. Este ativismo é personificado pela Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), a instituição de vanguarda na defesa do direito de portar armas. Nos 18 dias seguintes à chacina de Newtown, a NRA amealhou 100 mil novos integrantes, chegando a 4,2 milhões em todo o país.
O comportamento da NRA explica como o debate está viciado nos Estados Unidos. A NRA, sempre no centro das discussões a respeito do tema, é uma entidade extremista. Reportagem publicada pelo jornal The Washington Post no sábado, 12, traçou um histórico ideológico da NRA e mostrou como ela passou por um processo de involução desde sua criação, em 1871. A entidade se dedicou, por muito tempo, a promover o tiro esportivo, a defender os direitos dos caçadores e tinha muitas parcerias com a união dos escoteiros dos EUA. Hoje seus líderes acreditam que os defensores do desarmamento têm um plano secreto: desarmar a população para implantar a tirania do governo. Para membros da NRA, eventos como o Holocausto e os massacres do regime comunista de Mao Tsé-Tung só ocorreram pois os judeus e os chineses não tinham armas.
Por trás desta teoria está uma força cultural norte-americana que o historiador Walter Russell Mead chama de “populismo jacksoniano”, uma referência a Andrew Jackson, o sétimo presidente dos Estados Unidos. Os jacksonianos creem que pessoas comuns podem estabelecer verdades morais, científicas, políticas e religiosas por si próprias, usando a intuição e o que acreditam ser o senso comum. Ao mesmo tempo, suspeitam da mídia, dos especialistas, dos políticos, do governo e de consensos estabelecidos por eles. Um dos consensos vistos com ceticismo pelos jacksonianos já foi a igualdade racial. Hoje são temas como o aquecimento global e a tese, defendida por grande parte da mídia e dos especialistas de que mais armas significam mais violência, e não mais liberdade.
O deputado republicano Steve Stockman, recém-eleito pelo Texas, resume a argumentação. “As ações do presidente são uma ameaça existencial a esta nação. O direito de as pessoas terem e portarem armas é o que manteve esta nação livre e segura por duzentos anos”, escreveu ele em nota oficial divulgada no início da semana. Stockman ameaçava pedir o impeachment de Obama caso o presidente use seus poderes executivos, e não as votações no Congresso, para aprovar legislações de controle de armas. Nesta quarta, Obama assinou diversas medidas executivas a respeito do tema.
Stockman e muitos outros apostam na força política da NRA para bloquear restrições a armas no Congresso. Segundo dados do Centro de Políticas Responsivas, uma ONG dos EUA, a NRA gastou entre 1,5 milhão de dólares e 2,7 milhões de dólares, por ano, entre 2001 e 2010, para fazer lobby com políticos. Apenas no ciclo eleitoral de 2010, a entidade investiu 7,2 milhões nas campanhas de candidatos favoráveis a sua causa e em anúncios negativos contra seus rivais. Com esse dinheiro, a Associação Nacional do Rifle tem, na avaliação doWashington Post, “o mais poderoso e um dos mais temidos” lobbies em Washington.
A força do lobby das armas deriva da forma como ela deturpa um sentimento genuíno do norte-americano comum. Em artigo publicado no site Politico na segunda-feira 14, o ex-deputado Dan Glickman mostrou o que pode acontecer com quem vota por mais restrições a armas. Em 1994, Glickman votou duas legislações marcantes. A chamada “lei do crime”, que proibiu a venda de rifles de assalto por dez anos (e expirou em 2004), e uma lei protegendo a indústria de pequenos aviões, que salvou milhares de empregos, muitos deles no Kansas, Estado pelo qual era parlamentar. Um operário cujo emprego fora salvo pela lei agradeceu Glickman pelo esforço, mas disse que não poderia votar nele para a reeleição por conta do controle de armas. O diálogo se repetiu com inúmeros eleitores, e o parlamentar acabou fora do Congresso. Para Glickman, a lição do episódio é que os EUA precisam “reconhecer que muitos americanos veem o porte de arma como equivalente a sua cidadania”.
Com seu radicalismo, a NRA arrastou o debate todo para a direita. Assim, fez da defesa intransigente das armas uma causa de boa parte dos políticos republicanos e dos conservadores como um todo nos EUA. Em 2008, a adoração por armas de alguns americanos passou a estar escorado numa decisão da Suprema Corte. Naquele ano, em votação apertada (5 votos 4), o tribunal, predominantemente conservador, entendeu que a segunda emenda da Constituição dá aos americanos o direito de portar armas.
Não bastasse a garantia constitucional, os paranoicos que tentam guiar o debate transformaram a proteção a esse direito na rejeição de qualquer regra a ele. Hoje é possível comprar rifles automáticos facilmente, pedir munição de forma anônima pela internet e obter armas em feiras especializadas sem precisar registrá-las. Talvez a administração Obama consiga reverter alguns desses absurdos, mas não será capaz de fazer os EUA discutirem a relação entre serem o país onde há mais armas por pessoa no mundo e aquele com os maiores índices de homicídio entre as nações desenvolvidas. Isso só vai acontecer com o passar do tempo e se a sociedade norte-americana passar a entender o problema, como afirmou o próprio Obama nesta quarta. “Políticos e lobistas vão alertar sobre um ataque tirânico e direto à liberdade, mas só vamos poder mudar isso se a audiência deles, seus eleitores e seus membros disserem: ‘agora precisa ser diferente’. A única forma de mudarmos isso é se a população exigir”.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou nesta quarta-feira (16) uma série de propostas para tentar reduzir a violência provocada por armas de fogo no país. As medidas estão em um relatório montado pelo vice-presidente, Joe Biden, após reuniões com diversos setores da sociedade, mobilização iniciada após o massacre de Newtown, em dezembro. As propostas incluem, entre outras, o banimento da venda de rifles de assalto, a redução do tamanho dos cartuchos e a ampliação das verificações de identidade de donos de armas. No improvável caso de serem aprovadas pelo Congresso, as medidas terão impacto reduzido, pois são apenas paliativas. Obama não conseguirá, na verdade nem está tentando fazer isso, impor um controle eficiente de pequenas armas, como revólveres e pistolas, as que provocam mais mortes, pois o debate está completamente dominado por direitistas paranoicos.
Na teoria, o momento político dos Estados Unidos seria propício para mudar a legislação do porte de arma. O massacre de 20 crianças em Newtown inverteu a balança na comparação entre a quantidade de norte-americanos que preferem o controle de armas diante dos que favorecem o direito de portá-las. Segundo pesquisa feita pelo instituto Pew entre 9 e 13 de janeiro, o “controle” vence o “direito de portar” por 51% a 45%.
Na prática, a situação é bem diferente. Os defensores do direito de portar armas são muito mais ativos politicamente. De acordo com a mesma pesquisa do Pew, 23% deles já doaram dinheiro a instituições dedicadas a influenciar o debate sobre o tema. Entre os defensores de mais controle, apenas 5% tiraram dinheiro do bolso. Este ativismo é personificado pela Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), a instituição de vanguarda na defesa do direito de portar armas. Nos 18 dias seguintes à chacina de Newtown, a NRA amealhou 100 mil novos integrantes, chegando a 4,2 milhões em todo o país.
O comportamento da NRA explica como o debate está viciado nos Estados Unidos. A NRA, sempre no centro das discussões a respeito do tema, é uma entidade extremista. Reportagem publicada pelo jornal The Washington Post no sábado, 12, traçou um histórico ideológico da NRA e mostrou como ela passou por um processo de involução desde sua criação, em 1871. A entidade se dedicou, por muito tempo, a promover o tiro esportivo, a defender os direitos dos caçadores e tinha muitas parcerias com a união dos escoteiros dos EUA. Hoje seus líderes acreditam que os defensores do desarmamento têm um plano secreto: desarmar a população para implantar a tirania do governo. Para membros da NRA, eventos como o Holocausto e os massacres do regime comunista de Mao Tsé-Tung só ocorreram pois os judeus e os chineses não tinham armas.
Por trás desta teoria está uma força cultural norte-americana que o historiador Walter Russell Mead chama de “populismo jacksoniano”, uma referência a Andrew Jackson, o sétimo presidente dos Estados Unidos. Os jacksonianos creem que pessoas comuns podem estabelecer verdades morais, científicas, políticas e religiosas por si próprias, usando a intuição e o que acreditam ser o senso comum. Ao mesmo tempo, suspeitam da mídia, dos especialistas, dos políticos, do governo e de consensos estabelecidos por eles. Um dos consensos vistos com ceticismo pelos jacksonianos já foi a igualdade racial. Hoje são temas como o aquecimento global e a tese, defendida por grande parte da mídia e dos especialistas de que mais armas significam mais violência, e não mais liberdade.
O deputado republicano Steve Stockman, recém-eleito pelo Texas, resume a argumentação. “As ações do presidente são uma ameaça existencial a esta nação. O direito de as pessoas terem e portarem armas é o que manteve esta nação livre e segura por duzentos anos”, escreveu ele em nota oficial divulgada no início da semana. Stockman ameaçava pedir o impeachment de Obama caso o presidente use seus poderes executivos, e não as votações no Congresso, para aprovar legislações de controle de armas. Nesta quarta, Obama assinou diversas medidas executivas a respeito do tema.
Stockman e muitos outros apostam na força política da NRA para bloquear restrições a armas no Congresso. Segundo dados do Centro de Políticas Responsivas, uma ONG dos EUA, a NRA gastou entre 1,5 milhão de dólares e 2,7 milhões de dólares, por ano, entre 2001 e 2010, para fazer lobby com políticos. Apenas no ciclo eleitoral de 2010, a entidade investiu 7,2 milhões nas campanhas de candidatos favoráveis a sua causa e em anúncios negativos contra seus rivais. Com esse dinheiro, a Associação Nacional do Rifle tem, na avaliação doWashington Post, “o mais poderoso e um dos mais temidos” lobbies em Washington.
A força do lobby das armas deriva da forma como ela deturpa um sentimento genuíno do norte-americano comum. Em artigo publicado no site Politico na segunda-feira 14, o ex-deputado Dan Glickman mostrou o que pode acontecer com quem vota por mais restrições a armas. Em 1994, Glickman votou duas legislações marcantes. A chamada “lei do crime”, que proibiu a venda de rifles de assalto por dez anos (e expirou em 2004), e uma lei protegendo a indústria de pequenos aviões, que salvou milhares de empregos, muitos deles no Kansas, Estado pelo qual era parlamentar. Um operário cujo emprego fora salvo pela lei agradeceu Glickman pelo esforço, mas disse que não poderia votar nele para a reeleição por conta do controle de armas. O diálogo se repetiu com inúmeros eleitores, e o parlamentar acabou fora do Congresso. Para Glickman, a lição do episódio é que os EUA precisam “reconhecer que muitos americanos veem o porte de arma como equivalente a sua cidadania”.
Com seu radicalismo, a NRA arrastou o debate todo para a direita. Assim, fez da defesa intransigente das armas uma causa de boa parte dos políticos republicanos e dos conservadores como um todo nos EUA. Em 2008, a adoração por armas de alguns americanos passou a estar escorado numa decisão da Suprema Corte. Naquele ano, em votação apertada (5 votos 4), o tribunal, predominantemente conservador, entendeu que a segunda emenda da Constituição dá aos americanos o direito de portar armas.
Não bastasse a garantia constitucional, os paranoicos que tentam guiar o debate transformaram a proteção a esse direito na rejeição de qualquer regra a ele. Hoje é possível comprar rifles automáticos facilmente, pedir munição de forma anônima pela internet e obter armas em feiras especializadas sem precisar registrá-las. Talvez a administração Obama consiga reverter alguns desses absurdos, mas não será capaz de fazer os EUA discutirem a relação entre serem o país onde há mais armas por pessoa no mundo e aquele com os maiores índices de homicídio entre as nações desenvolvidas. Isso só vai acontecer com o passar do tempo e se a sociedade norte-americana passar a entender o problema, como afirmou o próprio Obama nesta quarta. “Políticos e lobistas vão alertar sobre um ataque tirânico e direto à liberdade, mas só vamos poder mudar isso se a audiência deles, seus eleitores e seus membros disserem: ‘agora precisa ser diferente’. A única forma de mudarmos isso é se a população exigir”.
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