Por Marcelo Zero, no blog de Paulo Moreira Leite:
A América Latina e o Brasil estão numa encruzilhada. É o que afirma o estudo Pactos para a Igualdade- Rumo a um Futuro Sustentável, lançado pela Cepal em Lima, Peru, no dia 5 deste mês, e já amplamente debatido em seminário promovido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (GCEE), instituição vinculada ao MCTI brasileiro, na Universidade do Ceará.
Elaborado com muita competência, entre outros técnicos, pelo economista brasileiro Antonio Prado, Secretário Executivo Adjunto da Cepal, o documento traça um diagnóstico muito amplo e consistente sobre o recente processo de desenvolvimento com inclusão social da região e os obstáculos atuais para a sua continuidade.
De acordo com o estudo, muitos países da América Latina, como o Brasil, passaram, na última década, em maior ou menor grau, por um processo de desenvolvimento que, em contraste com a tradição regional, reduziu a pobreza e, em certos casos, também os históricos e agudos níveis de desigualdade social. Foram feitos, da mesma forma, notáveis progressos no campo institucional e democrático, com o fortalecimento e a expansão dos direitos da cidadania, bem como no campo macroeconômico, com a redução das dívidas públicas, das vulnerabilidades externas e dos níveis de inflação. Além disso, aumentaram os níveis de escolaridade e a cobertura da proteção social. Nesse período, a redução da pobreza e das desigualdades dinamizou o mercado interno de consumo e fortaleceu as economias, tornando-as mais sólidas e mais preparadas para conviver com a pior crise internacional desde 1929.
Assim sendo, muitas nações latino-americanas conseguiram implantar, ainda que em níveis diferenciados e heterogêneos, um novo ciclo virtuoso de desenvolvimento que contrasta agudamente com o ciclo vicioso do período do neoliberalismo da década de 1990, no qual foram aumentados os níveis de pobreza e de desigualdade, as dívidas públicas e as vulnerabilidades e fragilidades das economias.
Entretanto, o estudo da Cepal alerta que, nos últimos anos, surgiram limites e obstáculos claros à manutenção e ao aprofundamento desse ciclo virtuoso surgido na última década.
A primeira série de obstáculos tange aos constrangimentos externos gerados pela crise internacional. O boom das commodities que contribuiu, em níveis diferenciados, para a superação dos estrangulamentos externos das economias latino-americanas já deu sinais de arrefecimento. Com a redução do aumento do comércio mundial e do crescimento vertiginoso da China, houve significativo decréscimo dos preços internacionais de algumas matérias primas, como os dos minérios, por exemplo. Para países que dependem muito da exportação desses bens, como o Chile e o Peru, por exemplo, isso cria um grave constrangimento. Além disso, a crise mundial ainda provoca alta volatilidade financeira e um cenário de incertezas que limitam os investimentos produtivos.
A segunda série de limites diz respeito aos chamados fatores endógenos. Entre estes, se destacam, segundo a Cepal, a estrutura produtiva defasada e desarticulada (fator não tão presente no Brasil), os baixos níveis de investimentos e de inovação tecnológica, a alta informalidade no mundo do trabalho (que vem caindo bastante no Brasil), a débil governança dos recursos naturais (desperdício e ineficiência em sua gestão), as fortes carências nos serviços públicos, as altas pressões ambientais e energéticas, e o persistente déficit institucional em matéria de regulação e captação de renda.
Esses obstáculos e limites não são, contudo, intransponíveis. No caso específico do Brasil, a economia mais desenvolvida da região e país com muitas vantagens comparativas em nível regional e mundial, eles são empecilhos plenamente superáveis, caso sejam tomadas algumas decisões estratégicas. A encruzilhada está justamente nessas decisões. Ela é, portanto, uma encruzilhada fundamentalmente política.
Pois bem, a Cepal propõe sete grandes pactos sociais e políticos de médio e longo prazo para a superação desses obstáculos.
O primeiro pacto é o pacto pela “fiscalidade com vocação de igualdade”. Para a Cepal, a política fiscal deve assegurar a “estabilização macroeconômica anticíclica”, promover o crescimento econômico e contribuir para a distribuição da renda e a diminuição das desigualdades. Em outras palavras, a política fiscal, ao contrário da tradição regressiva e concentradora da região, deve contribuir para financiar um conjunto de compromissos da agenda para a igualdade social e a sustentabilidade do desenvolvimento. Trata-se, em suma, de reverter uma “fiscalidade para a desigualdade”, herdada do período paleoliberal, que limitava o crescimento e aumentava o desemprego e as desigualdades. Obviamente, esse primeiro pacto é fundamental para assegurar que os demais pactos sejam financeiramente viáveis.
O segundo pacto é o pacto para “o investimento, a política industrial e o financiamento inclusivo”. A produtividade das economias da região ainda é, em média, baixa, embora muito diferenciada entre setores e países. Ademais, a capacidade de promover inovação tecnológica é muito limitada, especialmente no setor industrial. Por conseguinte, é necessário aumentar as taxas de investimentos para incrementar a produtividade, a diversificação produtiva e a capacidade de inovar tecnologicamente. Também é necessário que o sistema financeiro assuma um papel de potencializar a captação da poupança e direcioná-la para o investimento e a inovação tecnológica, bem como de facilitador do crédito para famílias e pequenas e médias empresas. Isso implica, evidentemente, taxas de juros básicas e de spread baixas e políticas ativas de inclusão bancária.
O terceiro pacto é o pacto para a “igualdade no mundo trabalho”. O mercado de trabalho foi e é fundamental para a redução das desigualdades e a eliminação progressiva da pobreza. No Brasil, em particular, a ampla geração de empregos formais de trabalho e as políticas de valorização do salário mínimo tiveram um impacto distributivo bem maior que os programas de transferência condicionais de renda, como o Bolsa Família. Assim sendo, a Cepal recomenda que os países da região tenham uma política trabalhista destinada à valorização dos salários, à promoção dos empregos formais e ao fortalecimento das instituições do trabalho.
O quarto pacto é o pacto para um “maior bem-estar social e melhores serviços públicos”. Trata-se do pacto pelo qual o Estado assume o papel de condutor da criação de uma ampla rede de proteção social, assim como de provedor de serviços públicos universais e de qualidade. A Cepal adverte que “as regulações, os sistemas tributários e os investimentos urbanos devem limitar as opções de escape da classe alta e da alta classe média dos males públicos via mercado (bairros privados, segurança privada e transporte privado, entre outros) e promover os usos coletivos (transporte público e espaços públicos comuns)”. Além disso, os serviços públicos básicos de saúde e educação devem ser de qualidade suficiente para atrair os setores médios. Em outras palavras, é necessário reverter o ciclo vicioso que cria uma segmentação público/privada, na provisão de serviços públicos.
O quinto pacto é o pacto pela “sustentabilidade ambiental” do desenvolvimento. Trata-se aqui de conciliar os desafios da sustentabilidade ambiental com a necessidade de manter o crescimento econômico com inclusão social, ao contrário do que apregoam os neomalthusianos que, como o Clube de Roma na década de 1970, voltaram a sugerir o crescimento zero ou próximo de zero como solução para os problemas ambientais do planeta. A implementação de uma economia verde e o melhor equilíbrio entre o consumo privado e a oferta de bens e serviços públicos (menos automóveis e mais transporte público, por exemplo) podem muito bem promover essa imprescindível conciliação.
O sexto pacto é o pacto para a boa “governança dos recursos naturais”. A América Latina é uma região rica em recursos naturais. Porém, em geral não os administra bem. A Venezuela é um caso emblemático. Rica em petróleo há décadas, a Venezuela ainda não conseguiu transformar essa riqueza natural numa indústria diversificada e numa agricultura eficiente, apesar dos esforços recentes dos governos chavistas. A previsão de Celso Furtado, feita em 1974, de que a Venezuela provavelmente seria o primeiro país latino-americano a se tornar realmente desenvolvido não se cumpriu. No entanto, o Brasil já dá mostras de uma maior maturidade com a gestão dos seus recursos naturais. A exitosa preocupação em usar os recursos do petróleo para estimular a indústria nacional e a recente decisão de utilizar os royalties do pré-sal para alavancar a educação e a saúde dos brasileiros são sinais evidentes dessa maturidade.
Por último, a Cepal propõe um “pacto internacional pelo desenvolvimento e cooperação pós-2015”. A ideia é produzir um pacto que não apenas reduza as carências básicas, como no caso dos Objetivos do Milênio da ONU, mas também que corrija as profundas desigualdades a assimetrias que existem entre os países.
É óbvio que esses pactos propostos pela Cepal, aqui descritos de forma muito sumária, não são substancialmente inovadores. Na realidade, muito do que essa organização propõe já vem sendo feito ou pensado, em alguns países. No Brasil, diga-se de passagem, a presidenta Dilma Rousseff propôs pactos semelhantes no ano passado, após as grandes manifestações de junho. Assim, a importância desses pactos não reside em propostas inéditas.
A importância desses pactos propostos pela Cepal está em sua oportunidade política. Neste momento em que a crise se dilata e muitos governos progressistas da América Latina são questionados pelos setores mais conservadores das nossas sociedades, os pactos da Cepal mostram soluções abrangentes e consistentes para a manutenção e o aprofundamento do virtuoso ciclo econômico, social e político implantado na região.
Há, contudo, alguns empecilhos à implementação dessas propostas.
No caso do Brasil, há dois grandes obstáculos.
O primeiro tange ao nosso sistema político. Pactos sociais e políticos de médio e longo prazo exigem, em geral, atores consistentes e permanentes e um sistema político que assegure a representação de todos os setores da sociedade. Porém, o nosso sistema político e eleitoral está longe de ter tais características. Trata-se um sistema político (e de um Estado) ainda muito capturado por interesses privados e fisiológicos, que tem baixa capacidade de representação e articulação. A influência excessiva do poder econômico nas eleições, os partidos com baixo enraizamento orgânico (com algumas exceções) e o presidencialismo de coalizão criam um sistema de representação restrito e uma governabilidade fundada essencialmente em interesses fisiológicos de curto prazo. Ora, os pactos propostos pela Cepal precisariam de um sistema de representação amplo e de uma governabilidade fundada em interesses estratégicos de longo prazo. Por isso, a reforma política é absolutamente essencial. Ela é, na realidade, a mãe de todas as reformas. Ela é o pacto capaz de dar fundamentação política a todos os outros pactos progressistas.
O outro grande e principal obstáculo tange à crescente articulação dos interesses conservadores brasileiros contra a continuidade e o aprofundamento do recente ciclo virtuoso de desenvolvimento. Em servil consonância com aquilo que apregoa a ortodoxia internacional desastrosa e falida, alguns já falam na necessidade de “medidas impopulares”. Outros se queixam dos supostos “gastos excessivos” e de que o salário mínimo estaria “muito alto”. Os mais afoitos já prometem reduzir a inflação a 3% ao ano em pouco tempo, uma proposta celerada e desnecessária, que comprometeria definitivamente nosso crescimento e aumentaria sobremaneira as nossas atuais e baixíssimas taxas de desemprego. Há até aqueles que prometem acabar com o Mercosul, como se isso fosse contribuir em alguma coisa para que o Brasil participe mais das “cadeias produtivas globais”.
Articulou-se, no Brasil, a bem da verdade, um pacto excludente e conservador tácito. Um pacto já costurado “por cima”, como convém à nossa tradição política. Um pacto que vai à contramão daquilo que propõe a Cepal. Esse pacto tácito é um pacto pela volta da desigualdade como suposto mecanismo eficiente para a superação dos atuais gargalos ao crescimento econômico. Trata-se, no fundo, de uma volta ao passado medíocre dos tempos do paleoliberalismo. A volta das altas taxas de desemprego, da “precarização” do mercado de trabalho, das assimetrias e das desigualdades, dos baixos níveis de investimentos e de proteção social, das vulnerabilidades e de tudo aquilo que nos fez regredir, em muitos aspectos, na década de 1990.
Assim sendo, nessas eleições estará em jogo muitos mais que alternância de poder entre partidos. Estará em jogo o futuro do país e do recente ciclo de desenvolvimento. Teremos de decidir se persistiremos no rumo da igualdade, como aconselha a Cepal, ou se regrediremos ao que apregoava o velho FMI e à nossa histórica e carcomida desigualdade. Igualdade ou desigualdade, essa é a questão. A grande questão desta encruzilhada histórica.
A nossa experiência demonstra que o FMI nunca foi um bom conselheiro. Melhor dar ouvidos à Cepal.
A América Latina e o Brasil estão numa encruzilhada. É o que afirma o estudo Pactos para a Igualdade- Rumo a um Futuro Sustentável, lançado pela Cepal em Lima, Peru, no dia 5 deste mês, e já amplamente debatido em seminário promovido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (GCEE), instituição vinculada ao MCTI brasileiro, na Universidade do Ceará.
Elaborado com muita competência, entre outros técnicos, pelo economista brasileiro Antonio Prado, Secretário Executivo Adjunto da Cepal, o documento traça um diagnóstico muito amplo e consistente sobre o recente processo de desenvolvimento com inclusão social da região e os obstáculos atuais para a sua continuidade.
De acordo com o estudo, muitos países da América Latina, como o Brasil, passaram, na última década, em maior ou menor grau, por um processo de desenvolvimento que, em contraste com a tradição regional, reduziu a pobreza e, em certos casos, também os históricos e agudos níveis de desigualdade social. Foram feitos, da mesma forma, notáveis progressos no campo institucional e democrático, com o fortalecimento e a expansão dos direitos da cidadania, bem como no campo macroeconômico, com a redução das dívidas públicas, das vulnerabilidades externas e dos níveis de inflação. Além disso, aumentaram os níveis de escolaridade e a cobertura da proteção social. Nesse período, a redução da pobreza e das desigualdades dinamizou o mercado interno de consumo e fortaleceu as economias, tornando-as mais sólidas e mais preparadas para conviver com a pior crise internacional desde 1929.
Assim sendo, muitas nações latino-americanas conseguiram implantar, ainda que em níveis diferenciados e heterogêneos, um novo ciclo virtuoso de desenvolvimento que contrasta agudamente com o ciclo vicioso do período do neoliberalismo da década de 1990, no qual foram aumentados os níveis de pobreza e de desigualdade, as dívidas públicas e as vulnerabilidades e fragilidades das economias.
Entretanto, o estudo da Cepal alerta que, nos últimos anos, surgiram limites e obstáculos claros à manutenção e ao aprofundamento desse ciclo virtuoso surgido na última década.
A primeira série de obstáculos tange aos constrangimentos externos gerados pela crise internacional. O boom das commodities que contribuiu, em níveis diferenciados, para a superação dos estrangulamentos externos das economias latino-americanas já deu sinais de arrefecimento. Com a redução do aumento do comércio mundial e do crescimento vertiginoso da China, houve significativo decréscimo dos preços internacionais de algumas matérias primas, como os dos minérios, por exemplo. Para países que dependem muito da exportação desses bens, como o Chile e o Peru, por exemplo, isso cria um grave constrangimento. Além disso, a crise mundial ainda provoca alta volatilidade financeira e um cenário de incertezas que limitam os investimentos produtivos.
A segunda série de limites diz respeito aos chamados fatores endógenos. Entre estes, se destacam, segundo a Cepal, a estrutura produtiva defasada e desarticulada (fator não tão presente no Brasil), os baixos níveis de investimentos e de inovação tecnológica, a alta informalidade no mundo do trabalho (que vem caindo bastante no Brasil), a débil governança dos recursos naturais (desperdício e ineficiência em sua gestão), as fortes carências nos serviços públicos, as altas pressões ambientais e energéticas, e o persistente déficit institucional em matéria de regulação e captação de renda.
Esses obstáculos e limites não são, contudo, intransponíveis. No caso específico do Brasil, a economia mais desenvolvida da região e país com muitas vantagens comparativas em nível regional e mundial, eles são empecilhos plenamente superáveis, caso sejam tomadas algumas decisões estratégicas. A encruzilhada está justamente nessas decisões. Ela é, portanto, uma encruzilhada fundamentalmente política.
Pois bem, a Cepal propõe sete grandes pactos sociais e políticos de médio e longo prazo para a superação desses obstáculos.
O primeiro pacto é o pacto pela “fiscalidade com vocação de igualdade”. Para a Cepal, a política fiscal deve assegurar a “estabilização macroeconômica anticíclica”, promover o crescimento econômico e contribuir para a distribuição da renda e a diminuição das desigualdades. Em outras palavras, a política fiscal, ao contrário da tradição regressiva e concentradora da região, deve contribuir para financiar um conjunto de compromissos da agenda para a igualdade social e a sustentabilidade do desenvolvimento. Trata-se, em suma, de reverter uma “fiscalidade para a desigualdade”, herdada do período paleoliberal, que limitava o crescimento e aumentava o desemprego e as desigualdades. Obviamente, esse primeiro pacto é fundamental para assegurar que os demais pactos sejam financeiramente viáveis.
O segundo pacto é o pacto para “o investimento, a política industrial e o financiamento inclusivo”. A produtividade das economias da região ainda é, em média, baixa, embora muito diferenciada entre setores e países. Ademais, a capacidade de promover inovação tecnológica é muito limitada, especialmente no setor industrial. Por conseguinte, é necessário aumentar as taxas de investimentos para incrementar a produtividade, a diversificação produtiva e a capacidade de inovar tecnologicamente. Também é necessário que o sistema financeiro assuma um papel de potencializar a captação da poupança e direcioná-la para o investimento e a inovação tecnológica, bem como de facilitador do crédito para famílias e pequenas e médias empresas. Isso implica, evidentemente, taxas de juros básicas e de spread baixas e políticas ativas de inclusão bancária.
O terceiro pacto é o pacto para a “igualdade no mundo trabalho”. O mercado de trabalho foi e é fundamental para a redução das desigualdades e a eliminação progressiva da pobreza. No Brasil, em particular, a ampla geração de empregos formais de trabalho e as políticas de valorização do salário mínimo tiveram um impacto distributivo bem maior que os programas de transferência condicionais de renda, como o Bolsa Família. Assim sendo, a Cepal recomenda que os países da região tenham uma política trabalhista destinada à valorização dos salários, à promoção dos empregos formais e ao fortalecimento das instituições do trabalho.
O quarto pacto é o pacto para um “maior bem-estar social e melhores serviços públicos”. Trata-se do pacto pelo qual o Estado assume o papel de condutor da criação de uma ampla rede de proteção social, assim como de provedor de serviços públicos universais e de qualidade. A Cepal adverte que “as regulações, os sistemas tributários e os investimentos urbanos devem limitar as opções de escape da classe alta e da alta classe média dos males públicos via mercado (bairros privados, segurança privada e transporte privado, entre outros) e promover os usos coletivos (transporte público e espaços públicos comuns)”. Além disso, os serviços públicos básicos de saúde e educação devem ser de qualidade suficiente para atrair os setores médios. Em outras palavras, é necessário reverter o ciclo vicioso que cria uma segmentação público/privada, na provisão de serviços públicos.
O quinto pacto é o pacto pela “sustentabilidade ambiental” do desenvolvimento. Trata-se aqui de conciliar os desafios da sustentabilidade ambiental com a necessidade de manter o crescimento econômico com inclusão social, ao contrário do que apregoam os neomalthusianos que, como o Clube de Roma na década de 1970, voltaram a sugerir o crescimento zero ou próximo de zero como solução para os problemas ambientais do planeta. A implementação de uma economia verde e o melhor equilíbrio entre o consumo privado e a oferta de bens e serviços públicos (menos automóveis e mais transporte público, por exemplo) podem muito bem promover essa imprescindível conciliação.
O sexto pacto é o pacto para a boa “governança dos recursos naturais”. A América Latina é uma região rica em recursos naturais. Porém, em geral não os administra bem. A Venezuela é um caso emblemático. Rica em petróleo há décadas, a Venezuela ainda não conseguiu transformar essa riqueza natural numa indústria diversificada e numa agricultura eficiente, apesar dos esforços recentes dos governos chavistas. A previsão de Celso Furtado, feita em 1974, de que a Venezuela provavelmente seria o primeiro país latino-americano a se tornar realmente desenvolvido não se cumpriu. No entanto, o Brasil já dá mostras de uma maior maturidade com a gestão dos seus recursos naturais. A exitosa preocupação em usar os recursos do petróleo para estimular a indústria nacional e a recente decisão de utilizar os royalties do pré-sal para alavancar a educação e a saúde dos brasileiros são sinais evidentes dessa maturidade.
Por último, a Cepal propõe um “pacto internacional pelo desenvolvimento e cooperação pós-2015”. A ideia é produzir um pacto que não apenas reduza as carências básicas, como no caso dos Objetivos do Milênio da ONU, mas também que corrija as profundas desigualdades a assimetrias que existem entre os países.
É óbvio que esses pactos propostos pela Cepal, aqui descritos de forma muito sumária, não são substancialmente inovadores. Na realidade, muito do que essa organização propõe já vem sendo feito ou pensado, em alguns países. No Brasil, diga-se de passagem, a presidenta Dilma Rousseff propôs pactos semelhantes no ano passado, após as grandes manifestações de junho. Assim, a importância desses pactos não reside em propostas inéditas.
A importância desses pactos propostos pela Cepal está em sua oportunidade política. Neste momento em que a crise se dilata e muitos governos progressistas da América Latina são questionados pelos setores mais conservadores das nossas sociedades, os pactos da Cepal mostram soluções abrangentes e consistentes para a manutenção e o aprofundamento do virtuoso ciclo econômico, social e político implantado na região.
Há, contudo, alguns empecilhos à implementação dessas propostas.
No caso do Brasil, há dois grandes obstáculos.
O primeiro tange ao nosso sistema político. Pactos sociais e políticos de médio e longo prazo exigem, em geral, atores consistentes e permanentes e um sistema político que assegure a representação de todos os setores da sociedade. Porém, o nosso sistema político e eleitoral está longe de ter tais características. Trata-se um sistema político (e de um Estado) ainda muito capturado por interesses privados e fisiológicos, que tem baixa capacidade de representação e articulação. A influência excessiva do poder econômico nas eleições, os partidos com baixo enraizamento orgânico (com algumas exceções) e o presidencialismo de coalizão criam um sistema de representação restrito e uma governabilidade fundada essencialmente em interesses fisiológicos de curto prazo. Ora, os pactos propostos pela Cepal precisariam de um sistema de representação amplo e de uma governabilidade fundada em interesses estratégicos de longo prazo. Por isso, a reforma política é absolutamente essencial. Ela é, na realidade, a mãe de todas as reformas. Ela é o pacto capaz de dar fundamentação política a todos os outros pactos progressistas.
O outro grande e principal obstáculo tange à crescente articulação dos interesses conservadores brasileiros contra a continuidade e o aprofundamento do recente ciclo virtuoso de desenvolvimento. Em servil consonância com aquilo que apregoa a ortodoxia internacional desastrosa e falida, alguns já falam na necessidade de “medidas impopulares”. Outros se queixam dos supostos “gastos excessivos” e de que o salário mínimo estaria “muito alto”. Os mais afoitos já prometem reduzir a inflação a 3% ao ano em pouco tempo, uma proposta celerada e desnecessária, que comprometeria definitivamente nosso crescimento e aumentaria sobremaneira as nossas atuais e baixíssimas taxas de desemprego. Há até aqueles que prometem acabar com o Mercosul, como se isso fosse contribuir em alguma coisa para que o Brasil participe mais das “cadeias produtivas globais”.
Articulou-se, no Brasil, a bem da verdade, um pacto excludente e conservador tácito. Um pacto já costurado “por cima”, como convém à nossa tradição política. Um pacto que vai à contramão daquilo que propõe a Cepal. Esse pacto tácito é um pacto pela volta da desigualdade como suposto mecanismo eficiente para a superação dos atuais gargalos ao crescimento econômico. Trata-se, no fundo, de uma volta ao passado medíocre dos tempos do paleoliberalismo. A volta das altas taxas de desemprego, da “precarização” do mercado de trabalho, das assimetrias e das desigualdades, dos baixos níveis de investimentos e de proteção social, das vulnerabilidades e de tudo aquilo que nos fez regredir, em muitos aspectos, na década de 1990.
Assim sendo, nessas eleições estará em jogo muitos mais que alternância de poder entre partidos. Estará em jogo o futuro do país e do recente ciclo de desenvolvimento. Teremos de decidir se persistiremos no rumo da igualdade, como aconselha a Cepal, ou se regrediremos ao que apregoava o velho FMI e à nossa histórica e carcomida desigualdade. Igualdade ou desigualdade, essa é a questão. A grande questão desta encruzilhada histórica.
A nossa experiência demonstra que o FMI nunca foi um bom conselheiro. Melhor dar ouvidos à Cepal.
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