Por Maria Inês Nassif, no site Carta Maior:
O grande risco de tomar um momento por outro, e de tratar como iguais coisas que são apenas semelhantes, é não entender o ritmo próprio que a história impõe aos acontecimentos. Uma noção distorcida do governo sobre o tempo que dispõe para deter a corrosão da popularidade da presidenta Dilma Rousseff acaba anulando os resultados de qualquer eventual ação política para reverter esse processo.
O governo Dilma definiu um tempo que não necessariamente será levado em conta pela história. Trabalha-se com o cálculo de que a corrosão da imagem do governo se diluirá à medida em que o Brasil voltar a crescer. Isso representa esperar o pacote fiscal ser aprovado, surtir efeitos indesejáveis sobre a já claudicante atividade econômica e, do meio para o final do mandato, adotar uma política econômica menos ortodoxa que permita a retomada do crescimento econômico. É um tempo que toma quase a metade do segundo mandato de Dilma.
Este é um cálculo completamente irreal para uma gestão que sofreu uma queda vertiginosa de popularidade em menos de seis meses, e para uma presidenta que chegou a apenas 12% de aprovação do governo nas pesquisas de opinião e perde popularidade numa velocidade muito maior do que aquela que se pode imprimir ao plano para sair do imbróglio colocado por um programa econômico de austeridade.
A estratégia de Dilma, de primeiro resolver a governabilidade “por dentro”, para depois trabalhar na reversão de sua popularidade, olha para o que aconteceu em 2003. O início do primeiro mandato de Lula foi destinado a medidas duras, voltadas para o ajuste de uma economia que estava em pandarecos. Nos dois primeiros anos foram gastos esforços e saliva também para consolidar uma maioria governista que viabilizasse o governo.
Para agir “por dentro”, o primeiro governo Lula guardou uma certa distância dos movimentos sociais, mas tinha um crédito de popularidade trazido das urnas e programas que, mesmo pequenos, alteravam a vida das pessoas mais pobres. Os movimentos sociais demoraram a perceber que se estabelecia um canal próprio de comunicação do presidente com as massas. Lula estava coberto.
A situação econômica de 2015 tornou-se parecida com a de 2003 em parte porque, na avaliação também de economistas não ortodoxos, Dilma acreditou no novo ataque à moeda, à economia brasileira e a ela própria. Quando reiterou tudo que os jornais e o mercado diziam sobre a economia e se manteve acuada no ataque especulativo à Petrobras, deu força à especulação. Esta é a tal profecia que se autorrealiza de que o mercado tem tanto orgulho.
O cenário político, todavia, não é igual ao do primeiro mandato de Lula. Em junho de 2002, antes do início da campanha eleitoral oficial, o candidato e o PT já haviam divulgado uma Carta aos Brasileiros em que oficializavam um “pacto” com um mercado que especulava triplamente: contra a economia brasileira, contra o Real e contra o candidato de oposição a FHC. O eleitor foi avisado antes.
Ademais, numa economia em que inexistia renda das classes menos favorecidas, os programas sociais contra fome e a criação de linhas de crédito para a população pobre não apenas atenuaram o impacto das medidas de austeridade, como até melhoraram a vida dos miseráveis e das regiões mais carentes do país, repentinamente movidas pelo comércio e serviços para a parcela de brasileiros antes à margem do consumo. Quando a base de comparação é zero, qualquer melhoria representa muito. As medidas de austeridade, portanto, não foram tomadas a seco. A ativação do consumo nas classes de menor renda não apenas protegeu, mas favoreceu a população mais pobre e enclaves de miséria.
2015 é outro momento. O ganho de renda já está dado: a ação do governo não se dá sobre o que antes era zero, mas sobre uma população já amparada e que tem receio de perder o que ganhou nesses 12 anos. Nas eleições do ano passado, já era perceptível que os eleitores com menor faixa de renda tinham a expectativa de transformar o voto em mais uma possibilidade de ascensão social – e foi isso que todos os candidatos presidenciais venderam seu peixe no primeiro turno, e que os dois candidatos do segundo turno reiteraram.
Os três governos petistas promoveram uma ascensão social despolitizada de uma grande camada da população – e talvez agora se entenda o porquê de críticas que sofreram à esquerda, por terem tratado políticas sociais como simples inclusão de pessoas miseráveis no mercado de consumo. Há uma limite para o voto de reconhecimento, de gratidão, e esse cédito já foi gasto. Isso é passado.
Junto com a inclusão no mercado de consumo, veio a incorporação, por essa parcela em ascensão, de elementos culturais da classe média tradicional. Esses brasileiros passaram a ter acesso ao conteúdo oferecido por uma mídia militantemente oposicionista e incorporam valores da sociedade de consumo, junto com os valores da classe média tradicional.
Outra comparação feita atualmente, quando se debate as saídas para 2015, é com a realidade de 2005. Naquele momento, sob impacto da banda de música da oposição e da mídia, que batucava denúncias diárias de envolvimento da base governista com o chamado Escândalo do Mensalão, e mantido de forma permanente sob ameaça de impeachment, o presidente Lula não desistiu da reeleição, foi para as ruas e ganhou adesão dos movimentos sociais e votos suficientes para consolidar o seu projeto de governo. Então, os atenuantes do ajuste fiscal dos anos anteriores deixaram de ser apenas atenuantes e foram estratégicos: nas eleições do ano seguinte, Lula já havia subvertido o mapa eleitoral do país. Na mesma proporção em que o presidente e o PT perdiam voto e substância nas regiões mais ricas do país – mais vulneráveis à ação da mídia e à cultura conservadora da elite brasileira –, ganhavam nas regiões mais pobres. As políticas sociais seguraram a onda da campanha conservadora, que encontrou no chamado Mensalão pretexto e assunto para veiculação diária de notícias contra Lula e o PT. As pesquisas de opinião da época mostram que Lula não foi contaminado pelo escândalo – e era ele, não o PT, que tinha ligação direta com a parcela mais pobre da população.
Em 2005, a contra-ofensiva à campanha sistemática contra o governo foi protagonizada por Lula, liderança forjada no movimento de massas e nas negociações salariais do final da década de 70 e início dos anos 80. Lula era um presidente que tinha vínculo orgânico com os movimentos sociais, e na época ninguém do campo progressista duvidou que reforçar as trincheiras da oposição era um desserviço a todos. Além disso, a campanha que ganhava televisores, bancas de revistas e mídias sociais foi de tal ordem que, em vez de contaminar o chefe de governo, acabou vitimizando um líder inequivocamente identificado como um igual pela população mais pobre da população.
Se for para forçar uma comparação, o governo Dilma, em 2015, reúne elementos do que aconteceu a Lula em 2003 e em 2005. Mas com agravantes. Neste ano de 2015, Dilma acabou de ser referendada em dois turnos eleitorais e, sem aviso prévio, editou um pacote econômico que foi publicizado massivamente pela mesma mídia. A visão do ajuste fiscal que tomou as ruas é a visão da oposição ao governo Dilma. Além disso, a presidenta não é uma líder de massas capaz de restabecer uma ligação direta com seu eleitorado: ela não pode prescindir do apoio das forças sociais e políticas no campo progressista, e da mediação que essas forças podem fazer entre ela e a opinião pública.
Ao perder a popularidade, Dilma acabou virando refém do pior PMDB. Essa é uma característica do partido: embora sirva a interesses particulares, tem uma certa sensibilidade à “voz das ruas”. Perder as ruas, em última instância, significa perder a governabilidade de um sistema político que é muito pulverizado e tem no PMDB um pilar importante.
É também diferente a relação de Dilma com o eleitorado de baixa renda – e isso não se dá nem por uma questão de carisma, mas pelo simples fato de que os ganhos de combate à miséria já estão dados.
Dilma também tem o inconveniente de, no seu segundo mandato, enfrentar um acúmulo de mais de 12 anos de campanha midiática difamatória dos governos petistas. Não se pode mais dizer que acusações de corrupção não “colam” no governo ou na chefe do governo. Houve uma certa consolidação de uma cultura segundo a qual todo o ranço e herança patrimonialista do país se concentra no petismo. Isto é de fazer Sérgio Buarque de Holanda revirar no túmulo, mas era previsível que, sem reação, essa campanha impregnasse as camadas médias da população, inclusive as ascendentes. O avanço do udenismo sobre uma classe média que se expandia graças a políticas de distribuição de renda dos governos petistas foi subestimada por 12 anos. Agora está aí.
O grande risco de tomar um momento por outro, e de tratar como iguais coisas que são apenas semelhantes, é não entender o ritmo próprio que a história impõe aos acontecimentos. Uma noção distorcida do governo sobre o tempo que dispõe para deter a corrosão da popularidade da presidenta Dilma Rousseff acaba anulando os resultados de qualquer eventual ação política para reverter esse processo.
O governo Dilma definiu um tempo que não necessariamente será levado em conta pela história. Trabalha-se com o cálculo de que a corrosão da imagem do governo se diluirá à medida em que o Brasil voltar a crescer. Isso representa esperar o pacote fiscal ser aprovado, surtir efeitos indesejáveis sobre a já claudicante atividade econômica e, do meio para o final do mandato, adotar uma política econômica menos ortodoxa que permita a retomada do crescimento econômico. É um tempo que toma quase a metade do segundo mandato de Dilma.
Este é um cálculo completamente irreal para uma gestão que sofreu uma queda vertiginosa de popularidade em menos de seis meses, e para uma presidenta que chegou a apenas 12% de aprovação do governo nas pesquisas de opinião e perde popularidade numa velocidade muito maior do que aquela que se pode imprimir ao plano para sair do imbróglio colocado por um programa econômico de austeridade.
A estratégia de Dilma, de primeiro resolver a governabilidade “por dentro”, para depois trabalhar na reversão de sua popularidade, olha para o que aconteceu em 2003. O início do primeiro mandato de Lula foi destinado a medidas duras, voltadas para o ajuste de uma economia que estava em pandarecos. Nos dois primeiros anos foram gastos esforços e saliva também para consolidar uma maioria governista que viabilizasse o governo.
Para agir “por dentro”, o primeiro governo Lula guardou uma certa distância dos movimentos sociais, mas tinha um crédito de popularidade trazido das urnas e programas que, mesmo pequenos, alteravam a vida das pessoas mais pobres. Os movimentos sociais demoraram a perceber que se estabelecia um canal próprio de comunicação do presidente com as massas. Lula estava coberto.
A situação econômica de 2015 tornou-se parecida com a de 2003 em parte porque, na avaliação também de economistas não ortodoxos, Dilma acreditou no novo ataque à moeda, à economia brasileira e a ela própria. Quando reiterou tudo que os jornais e o mercado diziam sobre a economia e se manteve acuada no ataque especulativo à Petrobras, deu força à especulação. Esta é a tal profecia que se autorrealiza de que o mercado tem tanto orgulho.
O cenário político, todavia, não é igual ao do primeiro mandato de Lula. Em junho de 2002, antes do início da campanha eleitoral oficial, o candidato e o PT já haviam divulgado uma Carta aos Brasileiros em que oficializavam um “pacto” com um mercado que especulava triplamente: contra a economia brasileira, contra o Real e contra o candidato de oposição a FHC. O eleitor foi avisado antes.
Ademais, numa economia em que inexistia renda das classes menos favorecidas, os programas sociais contra fome e a criação de linhas de crédito para a população pobre não apenas atenuaram o impacto das medidas de austeridade, como até melhoraram a vida dos miseráveis e das regiões mais carentes do país, repentinamente movidas pelo comércio e serviços para a parcela de brasileiros antes à margem do consumo. Quando a base de comparação é zero, qualquer melhoria representa muito. As medidas de austeridade, portanto, não foram tomadas a seco. A ativação do consumo nas classes de menor renda não apenas protegeu, mas favoreceu a população mais pobre e enclaves de miséria.
2015 é outro momento. O ganho de renda já está dado: a ação do governo não se dá sobre o que antes era zero, mas sobre uma população já amparada e que tem receio de perder o que ganhou nesses 12 anos. Nas eleições do ano passado, já era perceptível que os eleitores com menor faixa de renda tinham a expectativa de transformar o voto em mais uma possibilidade de ascensão social – e foi isso que todos os candidatos presidenciais venderam seu peixe no primeiro turno, e que os dois candidatos do segundo turno reiteraram.
Os três governos petistas promoveram uma ascensão social despolitizada de uma grande camada da população – e talvez agora se entenda o porquê de críticas que sofreram à esquerda, por terem tratado políticas sociais como simples inclusão de pessoas miseráveis no mercado de consumo. Há uma limite para o voto de reconhecimento, de gratidão, e esse cédito já foi gasto. Isso é passado.
Junto com a inclusão no mercado de consumo, veio a incorporação, por essa parcela em ascensão, de elementos culturais da classe média tradicional. Esses brasileiros passaram a ter acesso ao conteúdo oferecido por uma mídia militantemente oposicionista e incorporam valores da sociedade de consumo, junto com os valores da classe média tradicional.
Outra comparação feita atualmente, quando se debate as saídas para 2015, é com a realidade de 2005. Naquele momento, sob impacto da banda de música da oposição e da mídia, que batucava denúncias diárias de envolvimento da base governista com o chamado Escândalo do Mensalão, e mantido de forma permanente sob ameaça de impeachment, o presidente Lula não desistiu da reeleição, foi para as ruas e ganhou adesão dos movimentos sociais e votos suficientes para consolidar o seu projeto de governo. Então, os atenuantes do ajuste fiscal dos anos anteriores deixaram de ser apenas atenuantes e foram estratégicos: nas eleições do ano seguinte, Lula já havia subvertido o mapa eleitoral do país. Na mesma proporção em que o presidente e o PT perdiam voto e substância nas regiões mais ricas do país – mais vulneráveis à ação da mídia e à cultura conservadora da elite brasileira –, ganhavam nas regiões mais pobres. As políticas sociais seguraram a onda da campanha conservadora, que encontrou no chamado Mensalão pretexto e assunto para veiculação diária de notícias contra Lula e o PT. As pesquisas de opinião da época mostram que Lula não foi contaminado pelo escândalo – e era ele, não o PT, que tinha ligação direta com a parcela mais pobre da população.
Em 2005, a contra-ofensiva à campanha sistemática contra o governo foi protagonizada por Lula, liderança forjada no movimento de massas e nas negociações salariais do final da década de 70 e início dos anos 80. Lula era um presidente que tinha vínculo orgânico com os movimentos sociais, e na época ninguém do campo progressista duvidou que reforçar as trincheiras da oposição era um desserviço a todos. Além disso, a campanha que ganhava televisores, bancas de revistas e mídias sociais foi de tal ordem que, em vez de contaminar o chefe de governo, acabou vitimizando um líder inequivocamente identificado como um igual pela população mais pobre da população.
Se for para forçar uma comparação, o governo Dilma, em 2015, reúne elementos do que aconteceu a Lula em 2003 e em 2005. Mas com agravantes. Neste ano de 2015, Dilma acabou de ser referendada em dois turnos eleitorais e, sem aviso prévio, editou um pacote econômico que foi publicizado massivamente pela mesma mídia. A visão do ajuste fiscal que tomou as ruas é a visão da oposição ao governo Dilma. Além disso, a presidenta não é uma líder de massas capaz de restabecer uma ligação direta com seu eleitorado: ela não pode prescindir do apoio das forças sociais e políticas no campo progressista, e da mediação que essas forças podem fazer entre ela e a opinião pública.
Ao perder a popularidade, Dilma acabou virando refém do pior PMDB. Essa é uma característica do partido: embora sirva a interesses particulares, tem uma certa sensibilidade à “voz das ruas”. Perder as ruas, em última instância, significa perder a governabilidade de um sistema político que é muito pulverizado e tem no PMDB um pilar importante.
É também diferente a relação de Dilma com o eleitorado de baixa renda – e isso não se dá nem por uma questão de carisma, mas pelo simples fato de que os ganhos de combate à miséria já estão dados.
Dilma também tem o inconveniente de, no seu segundo mandato, enfrentar um acúmulo de mais de 12 anos de campanha midiática difamatória dos governos petistas. Não se pode mais dizer que acusações de corrupção não “colam” no governo ou na chefe do governo. Houve uma certa consolidação de uma cultura segundo a qual todo o ranço e herança patrimonialista do país se concentra no petismo. Isto é de fazer Sérgio Buarque de Holanda revirar no túmulo, mas era previsível que, sem reação, essa campanha impregnasse as camadas médias da população, inclusive as ascendentes. O avanço do udenismo sobre uma classe média que se expandia graças a políticas de distribuição de renda dos governos petistas foi subestimada por 12 anos. Agora está aí.
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