Por Breno Altman, em seu blog:
A mobilização em curso, patrocinada por setores da oposição de direita, exigindo a interrupção do mandato da presidente Dilma Rousseff, traz à tona questões jurídicas e políticas fundamentais para a democracia.
O argumento mais corriqueiro, contra a hipótese de afastamento, é de ordem legal: de acordo com o artigo 85 da Constituição Federal e a legislação ordinária, torna-se imperativa prova material quanto a suposto crime de responsabilidade, durante mandato em exercício, para se dar curso a trâmites de impedimento presidencial.
A inexistência de qualquer indício que envolva a atual chefe de Estado nos casos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato, portanto, invalidaria qualquer tentativa de retirá-la do poder por via constitucional. Todos os que, ao arrepio da lei, continuam a pregar por sua saída, vinculam-se à tramoia antidemocrática, pressionando para a maioria parlamentar conservadora atropelar a Constituição e recorrer à degola golpista.
Tal abordagem é certeira, mas incompleta. Há um problema de fundo a ser debatido: à luz do aprofundamento democrático, ainda que exigências jurídicas fossem atendidas, deveria decisão tomada pela soberania popular ser revogada sem que o povo soberano voltasse a decidir?
Nascido na Grã Bretanha do século XIV, mas consolidado nos Estados Unidos pós-Independência, o mecanismo de impeachment terceiriza a revogação de cargos executivos, em particular o de presidente da República.
Basta contradição mais profunda entre o líder do governo e a composição do Legislativo, para não falar da suprema corte, e estará posta a possibilidade de golpe constitucional, pelo qual o império do voto é anulado, mediante qualquer pretexto razoável, por forças que eventualmente detêm hegemonia parlamentar.
Não se pode esconder que assim se passou com o ex-presidente Fernando Collor, derrubado pelo Congresso e absolvido pelo STF. Denunciado por corrupção, liderando administração antipopular e antinacional, rompido com as elites que dele se serviram para derrotar Lula em 1989, o atual senador alagoano acabou afastado à revelia do eleitorado.
Existiria maneira de conciliar, no presidencialismo, a demissão de um governo com legitimidade questionada e asupremacia da vontade popular?
A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro é, ironicamente, a nação que oferece resposta mais avançada a este dilema. Sua Constituição prevê, depois de cumprida metade do mandato de qualquer governante, a convocação de referendo revocatório por petição impositiva que reúna ao menos 20% dos eleitores.
Os EUA, por exemplo, apresentam essa prática, chamada de recall, para deputados e senadores. Os venezuelanos ampliaram esse instituto para todos os cargos executivos, incluindo a Presidência da República. O Parlamento perde, nessa fórmula, a incumbência de cassar chefes de Estado, direito reservado à fonte original da democracia: o sufrágio universal.
Também decisão penal condenatória, transitada em julgado, poderia levar ao afastamento de mandatário, mas sem efeito impugnatório antes de concluído eventual processo criminal.
O fato é que o atropelo da soberania popular, previsto no impeachment, ainda que inscrito na Constituição, converte-se em golpe contra o resultado das urnas.
Na democracia, apenas os cidadãos deveriam ter a prerrogativa para remover, de forma livre e direta, os governantes que elegeram.
* Este artigo foi originalmente publicado no diário Folha de S.Paulo, edição de 06/05/2015.
O argumento mais corriqueiro, contra a hipótese de afastamento, é de ordem legal: de acordo com o artigo 85 da Constituição Federal e a legislação ordinária, torna-se imperativa prova material quanto a suposto crime de responsabilidade, durante mandato em exercício, para se dar curso a trâmites de impedimento presidencial.
A inexistência de qualquer indício que envolva a atual chefe de Estado nos casos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato, portanto, invalidaria qualquer tentativa de retirá-la do poder por via constitucional. Todos os que, ao arrepio da lei, continuam a pregar por sua saída, vinculam-se à tramoia antidemocrática, pressionando para a maioria parlamentar conservadora atropelar a Constituição e recorrer à degola golpista.
Tal abordagem é certeira, mas incompleta. Há um problema de fundo a ser debatido: à luz do aprofundamento democrático, ainda que exigências jurídicas fossem atendidas, deveria decisão tomada pela soberania popular ser revogada sem que o povo soberano voltasse a decidir?
Nascido na Grã Bretanha do século XIV, mas consolidado nos Estados Unidos pós-Independência, o mecanismo de impeachment terceiriza a revogação de cargos executivos, em particular o de presidente da República.
Basta contradição mais profunda entre o líder do governo e a composição do Legislativo, para não falar da suprema corte, e estará posta a possibilidade de golpe constitucional, pelo qual o império do voto é anulado, mediante qualquer pretexto razoável, por forças que eventualmente detêm hegemonia parlamentar.
Não se pode esconder que assim se passou com o ex-presidente Fernando Collor, derrubado pelo Congresso e absolvido pelo STF. Denunciado por corrupção, liderando administração antipopular e antinacional, rompido com as elites que dele se serviram para derrotar Lula em 1989, o atual senador alagoano acabou afastado à revelia do eleitorado.
Existiria maneira de conciliar, no presidencialismo, a demissão de um governo com legitimidade questionada e asupremacia da vontade popular?
A Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro é, ironicamente, a nação que oferece resposta mais avançada a este dilema. Sua Constituição prevê, depois de cumprida metade do mandato de qualquer governante, a convocação de referendo revocatório por petição impositiva que reúna ao menos 20% dos eleitores.
Os EUA, por exemplo, apresentam essa prática, chamada de recall, para deputados e senadores. Os venezuelanos ampliaram esse instituto para todos os cargos executivos, incluindo a Presidência da República. O Parlamento perde, nessa fórmula, a incumbência de cassar chefes de Estado, direito reservado à fonte original da democracia: o sufrágio universal.
Também decisão penal condenatória, transitada em julgado, poderia levar ao afastamento de mandatário, mas sem efeito impugnatório antes de concluído eventual processo criminal.
O fato é que o atropelo da soberania popular, previsto no impeachment, ainda que inscrito na Constituição, converte-se em golpe contra o resultado das urnas.
Na democracia, apenas os cidadãos deveriam ter a prerrogativa para remover, de forma livre e direta, os governantes que elegeram.
* Este artigo foi originalmente publicado no diário Folha de S.Paulo, edição de 06/05/2015.
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