quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A mídia ocidental e a mulher árabe

Por Sahar Khalifeh, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

É comum: na cultura árabe, assim como em outras, a mulher encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, que não herda nada, nem sequer o nome de família, o sexo que pode trazer decência ou desonra. Minha família acolheu meu nascimento com uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um menino. Para a infelicidade de todos, nasci menina, a quinta da família, ou seja, a quinta inconveniente e, para minha mãe, a quinta derrota. Comparada à esposa de meu tio, que triunfou dando à luz dez inestimáveis garotos, minha mãe era a mulher maldita. Apesar de mais bonita, mais inteligente e mais digna que minha tia (e que outras mulheres da família), todos a consideravam a menos fecunda, a que não podia trazer bons frutos ao mundo.

Herdei esses preconceitos e essas teorias. Desde a infância, escuto que as mulheres – da família, do bairro, do mundo inteiro – são impotentes, indefesas, condenadas pela natureza a permanecerem fracas.

Há alguns meses, contudo, minha irmã menor descobriu que eu era a única pessoa da família Khalifeh a figurar na enciclopédia palestina. Com um suspiro de alívio, ela sublinhou: “A enciclopédia não menciona meu pai, minha mãe, nem meu irmão ou meu tio e seus dez filhos milagrosos, nem outro homem da família; apenas você!”.

Como mulher árabe, já passei por diferentes fases. Fui transformada por certas influências e contribuí em parte para evoluções da nossa sociedade. Mesmo as famílias árabes mais conservadoras agora enviam suas filhas à escola. Quando formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras, farmacêuticas, escritoras, jornalistas, músicas ou artistas. Hoje, muitas parecem indispensáveis, mais fortes, mais criativas e mais importantes que os homens.

Contudo, os meios de comunicação ocidentais nos representam como criaturas horríveis, envelopadas em xadores, escondidas sob máscaras de couro, como cativas de um harém dissimulado atrás dos véus. Pergunto-me por que eles nos veem dessa forma, fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Eles realmente acreditam que somos criaturas diferentes do resto do gênero feminino, incapazes de mudar?

Na escola, eu tinha um professor que falava sempre em “mudança”, usando diferentes tons e sentidos da palavra de acordo com os aspectos da realidade árabe que abordava: a redistribuição da riqueza, a condição das mulheres ou os regimes políticos obsoletos. Todos ao meu redor o respeitavam e o admiravam; os mais jovens queriam ser como ele, e os menos jovens se mostraram dispostos a escondê-lo quando foi perseguido pela polícia.

Esse professor maravilhoso não era o único a falar de mudança e justiça. A maioria das pessoas instruídas acreditava nessas ideias e as defendia. Assim como ele, milhares de homens esclarecidos foram perseguidos pela polícia ou padeceram em prisões dos regimes apoiados e subvencionados pelas potências inglesa, francesa e depois norte-americana.

O nacionalismo árabe conheceu seu auge durante os anos 1950 e 1960. Nossas ruas ferviam e transbordavam esperanças de transformação. Adotamos uma atitude rebelde e crítica em relação aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Os ideais de libertação e justiça social estão em nossa literatura, nosso teatro, nossos cantos, nossa música e até nas expressões que usamos na vida cotidiana. A literatura do mundo inteiro irrigou nossa cultura. Nossas bibliotecas e nossas ruas regurgitam livros que apelam à libertação, revolução e mudança: literatura existencialista, socialista, negra.

Esse entusiasmo chegava a todos, até aos camponeses iletrados e às mulheres, que começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares delas foram estudar na universidade; algumas se engajaram em partidos políticos. Não apenas não usavam mais o véu, como também passaram a se vestir com outras roupas, minissaia. Por mais inacreditável que pareça, dançamos rock’n’roll e twist, apesar de nosso ódio pelos ocidentais. Queríamos viver como eles, sem que para isso precisássemos ser dominados.

Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo Ocidente, conseguiu derrotar o dirigente egípcio Gamal Abdel Nasser, em 1967. Essa derrota – momento em que os norte-americanos e todos os seus aliados regionais aproveitaram para enfraquecer o movimento rebelde – significou também a de nosso movimento nacional e nossas convicções socialistas. Eles apoiaram maciçamente o islamismo – com milhões de dólares – como estratégia para abafar o nacionalismo progressista. A Irmandade Muçulmana, até então vista com certa indiferença pela população, subiu ao poder. A situação de nossa região nos anos 1970 e 1980 era similar à do Afeganistão quando os norte-americanos apoiaram militarmente os islâmicos, em particular Osama bin Laden, para conter os comunistas.

As instituições e os meios de comunicação ocidentais, seja a imprensa escrita ou a televisão, o cinema ou as universidades, apresentam a mulher árabe como uma criatura com véu dos pés à cabeça, cujos olhos nem sequer ficam à mostra. Supõe-se que elas não são capazes de respirar ou pensar sob o xador, condenando-as a ser sombras ambulantes que erram pela vida como feiticeiras ou fantasmas aterradores.

As vestes da criatura que mulheres como eu encarnam aos olhos ocidentais são chamadas de “traje islâmico”. Contudo, estou convencida de que esse traje não é islâmico ou árabe: trata-se de uma criação do Ocidente, uma manifestação vergonhosa de seu imperialismo.

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Minha mãe usava um véu transparente negro que cobria mais ou menos seu rosto e seus cabelos, mas a deixava ver e respirar. O resto de sua roupa consistia em uma saia ou vestido simples que chegava até os joelhos, com um colete justo que desenhava seus seios e sua cintura. Nada a ver com o que hoje é considerado “traje islâmico” – que transforma o corpo feminino em saco informe, massa sombria, coluna de fumaça.

No início dos anos 1950, minha mãe engajou-se no movimento sufur (pelo desuso do véu), ao lado de muitas outras mulheres de sua geração. Algumas eram como ela, oriundas de classes médias de grandes cidades árabes; outras, menos privilegiadas e de vilarejos. Basta assistir às gravações de shows da cantora egípcia Umm Kulthum ou de outros artistas da mesma época para constatar que nenhuma mulher da plateia veste esse “traje”.

A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou uma degradação da situação econômica, e isso teve um grande e direto impacto sobre as mulheres. Milhares de famílias que perderam suas terras, suas casas e cujos maridos morreram em combates precisaram afastar as mulheres da esfera doméstica para que pudessem trabalhar ou estudar.

Nessa época, milhares de jovens palestinas instruídas começaram a ser vistas viajando sem lenço, morando sozinhas sem ser casadas, e ainda assim conservando a honra diante de seus próximos e da sociedade: elas ajudavam a suprir as necessidades de famílias de baixa renda. Descrevi a condição dessas mulheres em meu romance A herança (sem tradução, 1997). Com o tempo, não somente se passou a admitir, como também a ser bem-visto, que elas financiassem os estudos universitários de suas protegidas no Egito, Síria ou Líbano, o que por sua vez permitia que essas mulheres obtivessem diplomas em medicina, farmácia, engenharia, direito ou outras disciplinas.

Essas jovens mulheres qualificadas, corajosas e abertas para o mundo lançaram uma onda de emancipação feminina e social, ainda que nosso conhecimento do pensamento feminista se limitasse aos artigos publicados nos jornais egípcios por algumas pioneiras como Al-Said, Suhair al Qalamawi e Durriya Shafik – cujos escritos não iam muito além de temas como planejamento familiar, casamento precoce e poligamia.

No entanto, logo depois de nossa derrota para Israel em 1967, regimes árabes ditatoriais hostis ao socialismo, apoiados pelos Estados Unidos, aliaram-se a grupos islâmicos fundamentalistas, generosamente financiados. Todos aqueles que vestissem o famoso “traje islâmico”, por exemplo, receberiam um auxílio mensal de 15 dinares jordanianos para o homem (R$ 70) e 10 para a mulher. Os homens deveriam vestir dishdasha ou jellabiya, sandálias de couro e manter a barba comprida; as mulheres, por sua vez, precisavam vestir lenço sobre a cabeça e uma longa túnica que chegasse aos dedos dos pés. Os beneficiários desse auxílio também ganhavam um rosário e uma linda edição do Corão, além de um lindo tapete de reza.

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As organizações islâmicas priorizaram como alvo as jovens já ilustradas, pois exerceriam influência sobre as outras. Também quiseram atingir as donas de casa. Depois, a atenção se voltou para as mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não poderia ter funcionado sem a ajuda (notoriamente financeira) dos regimes árabes que manifestaram sua lealdade – ou submissão – aos Estados Unidos ao se alinharem com sua estratégia, na esperança de que o islamismo triunfasse sobre os socialistas e progressistas no seio de nossas sociedades.

Contudo, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas vestimentas, auxílios mensais e lugares de encontro (mesquitas). Com o objetivo de conquistar os espíritos em escolas primárias e secundárias, nomearam para os cargos-chave dessas instituições – em vez de professores – islâmicos fundamentalistas, homens ou mulheres, cuja missão seria imprimir a ideologia da religião na psique e no intelecto dos estudantes. Para completar essa educação, os adolescentes seguiram um treinamento que lhes inculcava a disciplina militar e as artes marciais em campos instalados nos desertos árabes, assim como no Afeganistão e no Paquistão.

Ironicamente, os Estados Unidos e seus aliados caíram na própria armadilha: o mal já estava feito, e as organizações fundamentalistas começaram a projetar um regime islâmico hostil ao Ocidente.

Atualmente, passamos por uma terrível crise intelectual, social e política. Somos ameaçados por todos os lados sem saber qual das ameaças é mais brutal. De um lado, o Ocidente, com suas megalomanias, exploração e colonização; de outro, o islamismo, cujas supostas inovações nos levaram ao tempo dos haréns e da opressão. Em outros termos, podemos escolher entre um Ocidente sinônimo de liberdade, laicidade e ciência, mas também de colonialismo, e um islã impiedoso, que apela para seus seguidores resistirem ao Ocidente, mas se opõe à ciência, à modernidade, assim como à emancipação feminina e social.

E esse caos geral não se limita à nossa região; também toca o próprio Ocidente. Assim, o véu e o xador tornaram-se símbolos de temor e aversão, a ponto de certos países proibirem vestimentas islâmicas e o uso do véu em escolas e locais públicos. Atualmente, somos alvo de preconceitos racistas.

De minha parte, declaro àqueles que compartilham dessa visão estreita e egoísta que somos mais próximas deles do que imaginam. Não costumamos repetir que o planeta se transformou em uma aldeia? Como ondas humanas, desaguamos em suas praias. Façam o que quiserem para limitar a imigração e intensificar os controles, sempre encontraremos um meio de chegar a vocês, superar os obstáculos e afirmar nossa presença. Na realidade, já estamos aí. Vocês podem negar nossa presença, mas estamos ao seu redor, somos parte do seu mundo.

Não tenho nenhuma intenção de provocar raiva. Simplesmente quero defender minha causa de maneira crua e concreta. Desejo que um leitor ocidental possa sentir o que eu sinto, temer o que eu temo; quero que tenha consciência da dor que seus governantes colonialistas infligem a nossos povos, da dor que infligem a mim. Seus meios de comunicação me transformam em estereótipo, condenam-me, falsificam-me. Quando apresentam uma mulher de burca como a encarnação da mulher árabe, eles subentendem que a escritora que sou, assim como milhares de outras mulheres instruídas e milhões de mulheres árabes modernas – muçulmanas e cristãs – que vivem em países árabes são apenas aquilo: uma sombra cabisbaixa, um corpo sem forma, incapaz de pensar e se expressar. Mas eles se enganam. A imagem de uma mulher de burca não me enche de medo e terror. Tenho medo, sim, de que um dia essa imagem represente minha filha, minhas netas ou a mim mesma em um regime árabe sinistro, mantido na ignorância e por manobras cujo objetivo é nos conservar como somos há muito tempo: uma jazida de petróleo a serviço do mercado ocidental.

* Sahar Khalifeh é escritora palestina e autora, entre outros livros, de Un printemps très chaud [Uma primavera muito quente] (Seuil, 2008). Este texto foi adaptado de uma conferência pronunciada no Centro de Estudos Palestinos da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), na Universidade de Londres, em 5 de março de 2015.

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