Por Victor Henrique Grampa
O que é o Estatuto da Família?
Muitos têm se perguntado sobre o Estatuto da Família. Trata-se de um Projeto de Lei (PL 6.583/13) em andamento na Câmara dos Deputados. Tal PL foi aprovado por Comissão Especial em 24/09/2015, 17 votos a 5. O que isso significa? Significa que os deputados consideraram o PL constitucional e socialmente relevante, verificando-se agora os destaques. Regimentalmente não há a necessidade de aprovação em Plenário na Câmara, mas poderá ocorrer caso haja recurso de parlamentares. Se aprovado, o PL será encaminhado para revisão pelo Senado Federal, de onde, se não houver propostas de alterações, irá para sanção ou veto da Presidenta da República. Em caso de veto, poderá o Congresso Nacional mantê-lo ou rejeitá-lo. Após sancionada, a norma entrará em vigor e será obrigatória - cabendo ao STF, se provocado, julgar a (in)constitucionalidade.
Qual o objetivo do Estatuto da Família?
A motivação desse PL, do ponto de vista politico, é clara, desde seu art. 2o:
“...define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
Seu objetivo é o de garantir que a “família tradicional” seja a única “correta”, juridicamente protegida, inclusive o negrito vem do projeto original. Trata-se de uma “briga” comprada pela Câmara dos Deputados contra o STF, em função do reconhecimento judicial de direitos aos LGBTTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Esse “contra-ataque” surge baseado na falsa concepção de que a democracia é um regime no qual o poder é exercido exclusiva e arbitrariamente pela vontade da maioria - ou dos que se dizem “maioria”. Todavia, essa concepção mostra-se equivocada em nosso País, pois a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana. Isso significa que o exercício do poder não se dá de qualquer forma, ele é limitado pelos direitos humanos e fundamentais, inclusive em face das vontades das maiorias.
Esses direitos não são objeto de permuta ou autorização do Estado, são inalienáveis e imprescritíveis, constituindo limites contra particulares e contra o próprio Estado. Mesmo assim, não é raro deputados dizerem que: o STF “usurpou prerrogativas do Congresso” e “estendeu direitos” indevidamente;- demonstrando que nossos parlamentares ainda não entenderam bem o desenho constitucional brasileiro, nem a natureza dos direitos humanos e fundamentais.
O STF “deu” direitos aos LGBTTTs?
O que o STF fez, ao julgar a ADPF 132/RJ e ADI 4277/DE, foi ato de mero “reconhecimento” de direitos fundamentais aos LGBTTTs, direitos que nunca estiveram em pauta de “aprovação” ou “reprovação” pelo Estado; tratava-se, portanto, de uma violação aos direitos preexistentes dessas minorias. Uma vez reconhecidos pelo STF, esses direitos passaram a vincular os Três Poderes, competindo apenas atuação estatal no sentido de efetivá-los, protegê-los e ampliá-los, nunca suprimi-los. O Estado serve ao Povo e não o Povo ao Estado, os parlamentares servem aos direitos do Povo e não são donos desses direitos. Há em nosso País uma falsa visão que os direitos são “dados”, como se fossem propriedade do Estado, que “dá” ou “tira”, ou pior: propriedade de políticos que barganham “votos” por “direitos”. Nenhum LGBTTT pediu em uma carta ao Legislativo, em 24 de dezembro, seus direitos sob a árvore de natal: os LGBTTTs sempre possuíram e sempre possuirão tais direitos, o que contrariar isso é violação, ilegalidade - gostando certas bancadas politicas ou não.
Dessa forma o Projeto de Estatuto “da Família”, por ser uma norma limitadora de direitos fundamentais, é inconstitucional em sua origem. Esse tipo de intervenção na vida privada é típica dos totalitarismos, fundados em ideologias dogmáticas e no medo, sem bases racionais.
“Conselhos da Família” ou “Conselhos contra as Famílias”?
Outro ponto do Estatuto “da Família” é a criação de “Conselhos da Família”, que servirão como como um braço do poder público, um instrumento ideológico do Estado. Serão implantados na sociedade civil para garantir, como único “correto”, esse modelo “tradicional” de família. Dessa forma, uma ação do poder público, que vise proteger direitos de famílias LGBTTTs, seria passível de “denúncia” perante os Conselhos. Nos termos do PL eles podem “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da família garantidos na legislação” - e o que seriam essas “violações”? Estariam estes Conselhos voltados para a proteção “da família” ou seriam organizados para o sistemático ataque aos que sequer poderiam ostentar o título de “famílias”?
Criação da Disciplina de “Educação para a Família”
A criação de uma disciplina de “Educação para família” é outra questão fundamental, qual seria o conteúdo dessa disciplina? Quais profissionais estariam “habilitados” para ministrar essa disciplina? Seria necessária a contratação de especialistas em “família”, no caso: psicólogos. Entretanto, os psicólogos não poderiam ministrar algo do gênero, pois, segundo Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, isso é proibido: “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”. Quem seria então o professor? Talvez essa resposta diga bastante sobre a “laicidade” desse Estatuto, que cria uma “disciplina” na qual os profissionais da área sequer poderiam atuar sem responder por “indisciplina”. Qual seria a solução? Uma intervenção no Conselho Federal de Psicologia? Uma intervenção para garantir que “a verdade” prevaleça sobre a ciência!? .....
Sim, é inconstitucional.
A (in)constitucionalidade não se confunde com o o gosto pessoal, ou com o achismo, ela precisa ser fundamentada racionalmente. O Projeto de Estatuto da Família sofre de graves inconstitucionalidades, sendo baseado, tão somente, em interpretações preconceituosas. Em última instância, o que ganhariam as “famílias tradicionais” com este Ato Estatucional? Nada! Todos os direitos previstos no Estatuto já são garantidos a todo e qualquer cidadão, ainda que sem família (saúde, educação etc). Há nele pouquíssimas inovações capazes de proteger as famílias, sendo que todas essas inovações poderiam ser agregadas a politicas públicas capazes de proteger todas as famílias, não só um tipo. Há uma falsa dicotomia, ideológica, e não concreta, que a existência de famílias LGBTTTs põe em risco a “família tradicional”, puro terror, argumento desprovido de racionalidade: há espaço e direitos para tod@s. Transversamente se finge a “garantia” de um direito à “família tradicional”, maquiando o real objetivo de se tolher os direitos das minorias. Nenhuma família ganha com esse Estatuto, todas perdem; só quem ganha é o preconceito e a intolerância!
* Por Victor Henrique Grampa é membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB/SP. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O que é o Estatuto da Família?
Muitos têm se perguntado sobre o Estatuto da Família. Trata-se de um Projeto de Lei (PL 6.583/13) em andamento na Câmara dos Deputados. Tal PL foi aprovado por Comissão Especial em 24/09/2015, 17 votos a 5. O que isso significa? Significa que os deputados consideraram o PL constitucional e socialmente relevante, verificando-se agora os destaques. Regimentalmente não há a necessidade de aprovação em Plenário na Câmara, mas poderá ocorrer caso haja recurso de parlamentares. Se aprovado, o PL será encaminhado para revisão pelo Senado Federal, de onde, se não houver propostas de alterações, irá para sanção ou veto da Presidenta da República. Em caso de veto, poderá o Congresso Nacional mantê-lo ou rejeitá-lo. Após sancionada, a norma entrará em vigor e será obrigatória - cabendo ao STF, se provocado, julgar a (in)constitucionalidade.
Qual o objetivo do Estatuto da Família?
A motivação desse PL, do ponto de vista politico, é clara, desde seu art. 2o:
“...define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
Seu objetivo é o de garantir que a “família tradicional” seja a única “correta”, juridicamente protegida, inclusive o negrito vem do projeto original. Trata-se de uma “briga” comprada pela Câmara dos Deputados contra o STF, em função do reconhecimento judicial de direitos aos LGBTTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Esse “contra-ataque” surge baseado na falsa concepção de que a democracia é um regime no qual o poder é exercido exclusiva e arbitrariamente pela vontade da maioria - ou dos que se dizem “maioria”. Todavia, essa concepção mostra-se equivocada em nosso País, pois a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana. Isso significa que o exercício do poder não se dá de qualquer forma, ele é limitado pelos direitos humanos e fundamentais, inclusive em face das vontades das maiorias.
Esses direitos não são objeto de permuta ou autorização do Estado, são inalienáveis e imprescritíveis, constituindo limites contra particulares e contra o próprio Estado. Mesmo assim, não é raro deputados dizerem que: o STF “usurpou prerrogativas do Congresso” e “estendeu direitos” indevidamente;- demonstrando que nossos parlamentares ainda não entenderam bem o desenho constitucional brasileiro, nem a natureza dos direitos humanos e fundamentais.
O STF “deu” direitos aos LGBTTTs?
O que o STF fez, ao julgar a ADPF 132/RJ e ADI 4277/DE, foi ato de mero “reconhecimento” de direitos fundamentais aos LGBTTTs, direitos que nunca estiveram em pauta de “aprovação” ou “reprovação” pelo Estado; tratava-se, portanto, de uma violação aos direitos preexistentes dessas minorias. Uma vez reconhecidos pelo STF, esses direitos passaram a vincular os Três Poderes, competindo apenas atuação estatal no sentido de efetivá-los, protegê-los e ampliá-los, nunca suprimi-los. O Estado serve ao Povo e não o Povo ao Estado, os parlamentares servem aos direitos do Povo e não são donos desses direitos. Há em nosso País uma falsa visão que os direitos são “dados”, como se fossem propriedade do Estado, que “dá” ou “tira”, ou pior: propriedade de políticos que barganham “votos” por “direitos”. Nenhum LGBTTT pediu em uma carta ao Legislativo, em 24 de dezembro, seus direitos sob a árvore de natal: os LGBTTTs sempre possuíram e sempre possuirão tais direitos, o que contrariar isso é violação, ilegalidade - gostando certas bancadas politicas ou não.
Dessa forma o Projeto de Estatuto “da Família”, por ser uma norma limitadora de direitos fundamentais, é inconstitucional em sua origem. Esse tipo de intervenção na vida privada é típica dos totalitarismos, fundados em ideologias dogmáticas e no medo, sem bases racionais.
“Conselhos da Família” ou “Conselhos contra as Famílias”?
Outro ponto do Estatuto “da Família” é a criação de “Conselhos da Família”, que servirão como como um braço do poder público, um instrumento ideológico do Estado. Serão implantados na sociedade civil para garantir, como único “correto”, esse modelo “tradicional” de família. Dessa forma, uma ação do poder público, que vise proteger direitos de famílias LGBTTTs, seria passível de “denúncia” perante os Conselhos. Nos termos do PL eles podem “encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da família garantidos na legislação” - e o que seriam essas “violações”? Estariam estes Conselhos voltados para a proteção “da família” ou seriam organizados para o sistemático ataque aos que sequer poderiam ostentar o título de “famílias”?
Criação da Disciplina de “Educação para a Família”
A criação de uma disciplina de “Educação para família” é outra questão fundamental, qual seria o conteúdo dessa disciplina? Quais profissionais estariam “habilitados” para ministrar essa disciplina? Seria necessária a contratação de especialistas em “família”, no caso: psicólogos. Entretanto, os psicólogos não poderiam ministrar algo do gênero, pois, segundo Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, isso é proibido: “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”. Quem seria então o professor? Talvez essa resposta diga bastante sobre a “laicidade” desse Estatuto, que cria uma “disciplina” na qual os profissionais da área sequer poderiam atuar sem responder por “indisciplina”. Qual seria a solução? Uma intervenção no Conselho Federal de Psicologia? Uma intervenção para garantir que “a verdade” prevaleça sobre a ciência!? .....
Sim, é inconstitucional.
A (in)constitucionalidade não se confunde com o o gosto pessoal, ou com o achismo, ela precisa ser fundamentada racionalmente. O Projeto de Estatuto da Família sofre de graves inconstitucionalidades, sendo baseado, tão somente, em interpretações preconceituosas. Em última instância, o que ganhariam as “famílias tradicionais” com este Ato Estatucional? Nada! Todos os direitos previstos no Estatuto já são garantidos a todo e qualquer cidadão, ainda que sem família (saúde, educação etc). Há nele pouquíssimas inovações capazes de proteger as famílias, sendo que todas essas inovações poderiam ser agregadas a politicas públicas capazes de proteger todas as famílias, não só um tipo. Há uma falsa dicotomia, ideológica, e não concreta, que a existência de famílias LGBTTTs põe em risco a “família tradicional”, puro terror, argumento desprovido de racionalidade: há espaço e direitos para tod@s. Transversamente se finge a “garantia” de um direito à “família tradicional”, maquiando o real objetivo de se tolher os direitos das minorias. Nenhuma família ganha com esse Estatuto, todas perdem; só quem ganha é o preconceito e a intolerância!
* Por Victor Henrique Grampa é membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB/SP. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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