Por Luiz Alberto Gómez de Souza, no site Carta Maior:
Ao ler certa imprensa, temos a impressão que ela se deleita com uma situação que se deteriora, de fato ou com dados cuidadosamente selecionados: quanto pior, melhor. Abrimos O Globo de 29 de agosto e lá está uma enorme manchete, como quando se festejam vitórias nos esportes: Recessão! E logo embaixo: economia abaixo de zero, com os piores índices possíveis. Manchetes menores: PIB caiu mais e só ganha da Rússia e Ucrânia; consumo das famílias é o pior desde 2001; investimentos em construção desabam.
Ao ler certa imprensa, temos a impressão que ela se deleita com uma situação que se deteriora, de fato ou com dados cuidadosamente selecionados: quanto pior, melhor. Abrimos O Globo de 29 de agosto e lá está uma enorme manchete, como quando se festejam vitórias nos esportes: Recessão! E logo embaixo: economia abaixo de zero, com os piores índices possíveis. Manchetes menores: PIB caiu mais e só ganha da Rússia e Ucrânia; consumo das famílias é o pior desde 2001; investimentos em construção desabam.
Merval Pereira, com seus bigodes tremulando de satisfação, indica que Lula tenta segurar um PT moribundo. Mais adiante, Guilhermo Fiuza considera a presidente, “a representante legal da maior pilhagem na história do país”. Miriam Leitão exulta: “É uma recessão. Ontem acabaram todas as dúvidas”. E determina, com o cacoete doutoral de tantos economistas: ”É hora de parar de improvisar e de autoridades terem um plano para tirar o país do buraco em que o governo Dilma nos colocou”. A coluna de Ricardo Noblat, nas segundas-feiras, destila rancor. E se ainda temos paciência para ligar a Globo News das 22 horas, nos deparamos com uma equipe bem azeitada, com o sorriso feliz de Renata Lo Prete, os olhinhos apertados que brilham de Cristiana Lôbo, passando pelo ar bem comportado de Gerson Camarotti, fazendo crer que tem informações inéditas; trata-se de apresentar um desfile de desgraças do país, declaradas triunfalmente, com ar de “eu não disse?” Passando à TV Cultura, no noticiário, o debatedor Marco Antonio Villas ressuma ódio. E no Roda Viva, seu apresentador, Augusto Nunes, colunista da Veja, insiste para que os convidados declarem o fim próximo do mandato presidencial.
Na TV argentina havia o personagem de um ventríloquo, Don Viceversa Segundo, que anunciava catástrofes com entusiasmo e boas notícias com um ar contrito. Vários desses meios de comunicação, em lugar de informar trazem um desfile de opiniões preconceituosas: estamos num precipício sem volta, para felicidade deles. E o futuro da nação não parece causar-lhes inquietação.
Se fosse esse o cenário real, como parecem fazer crer, a oposição, voltando ao poder, encontraria terra arrasada e uma situação ingovernável. Aécio, que não se repôs da derrota, com a irresponsabilidade que lhe é própria, desenha um abismo futuro a seus pés e deixa claro que não terá fôlego para chegar a 2018. Já Geraldo Alckmin é cuidadoso, ele que, governando o maior estado do país, sabe como seria dar um tiro no pé, ao querer passar do Palácio dos Bandeirantes a um Planalto estilhaçado. Logo poderá disputar a liderança da oposição com José Serra, dono de uma ambição desmedida e capaz de usar os mais insidiosos meios, como parece ter feito ao detonar, faz alguns anos, as ambições presidenciais de Roseana Sarney. Guerra de foice numa oposição que não tem programa alternativo, mas apenas vontade de derrubar o adversário.
Isso se nos ativermos a certa mídia e a partidos de oposição. Mas se olhamos mais fundo, nos setores realmente decisivos, encontramos outro cenário. Os dirigentes da Fiesp e da Firjam não parecem tão negativos. Pelo contrário. E nos levam a repensar a própria ideia de golpe.
Normalmente associamos golpe a uma ruptura na ordem jurídico-institucional, com a deposição das autoridades. Dia 20 de agosto, muitos de nós saímos à rua com cartazes e faixas em defesa de um governo legalmente eleito. Mas eis que nos deparamos com o perigo de outro tipo de golpe, à primeira vista invisível, onde a legalidade se mantém, mas a legitimidade poderia corroer-se.
Há sinais inquietantes à vista. Foi plantada a notícia de uma possível saída de Joaquim Levy do governo. Porém tudo poderia indicar tratar-se de um pretexto para reforçá-lo ainda mais. Confirmada sua permanência no governo, com declarações incisivas do setor mais próximo do Planalto, então o sensível mercado – um grupo de especuladores - reagiu favoravelmente. Levy pôde viajar tranquilo ao exterior, pois seu poder permanece aparentemente intacto. Antes disso ele se reuniu com as maiores lideranças empresariais e, ao fim do encontro, um dos participantes telefonou à presidente para levar, em primeira mão, a posição das chamadas “classes produtivas”, pedindo uma política fiscal equilibrada e cortes nos gastos, mesmo que afetassem programas sociais. Estava ali embutido um apoio que mais se parecia ao abraço que asfixia.
Dito em palavras simples, para esses setores não seria necessário derrubar a presidente, ela mesma poderia servir aos interesses do grande capital. Em plena recessão cantada pela mídia, cresce como nunca o lucro dos bancos e do 1% mais rico do país, cuja renda é cerca de 90 vezes maior do que a dos 10% mais pobres. Essa crise penaliza os setores inferiores e chega a uma boa porção da classe média. A mal denominada “nova classe média”, os cerca de quarenta milhões que saíram do nível da pobreza nos governos do PT, correm o risco de regressão e de estar entre os que mais pagam a conta do ajuste acordado por Levy e sua equipe ultraliberal.
Economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz estão cansados de denunciar, pela imprensa norte-americana, que uma política de ajustes, sob o pretexto de enfrentar a recessão, na verdade a retroalimenta. Reduz-se a produção, cai a oferta, aumenta o desemprego e retrai-se a demanda, seguindo num círculo vicioso descendente. E o terrível é que essa receita segue sendo proposta aqui, na Grécia e onde for o caso. À primeira vista pareceria um desvario, um equívoco com receitas de economistas que, como gosta de dizer com ironia Delfin Neto, vivem dentro de um ritual religioso ou falsamente científico. Porém, na verdade, é uma política pragmática e consequente, claramente orientada para defender os interesses do grande capital especulativo.
O governo apresentou um déficit orçamentário de 30,5 bilhões, previsto para 2016, indicado como sinal de transparência. Como enfrentá-lo? Para os fiscalistas no governo a solução seria basicamente uma, como sinalizada pelos empresários: corte nos gastos, mesmo atingindo os programas sociais. Mas aqui temos felizmente uma contradição. Dilma declarou enfaticamente: “Foram feitos todos os cortes possíveis no orçamento, sem prejudicar os recursos dos programas sociais”. Fazer o contrário seria renegar um dos mais importantes eixos programáticos que restariam do programa original do governo. Ali as gestões do PT obtiveram resultados expressivos. Mas na realidade, o programa “Minha Casa Minha Vida” praticamente está diminuindo o ritmo, atendendo nos próximos meses apenas obras em curso. E o Pronatec seguirá com um desempenho menor.
Lula intervém para, ao mesmo tempo pedir o fim de uma tensão interna Joaquim Levy - Nelson Barbosa e, logo adiante, solicitar que se liberem créditos para aquecer a economia, em direção oposta do receituário Levy.
Que fazer diante de um orçamento deficitário? Uma saída seria crescer a receita, com aumento da tributação. O governo chegou a anunciar a volta da CPMF, para logo voltar atrás. Outra saída poderia seu o combate à sonegação: a dívida ativa da União chegou a 1,46 trilhões! Cobrar dos grandes devedores poderia ser um caminho e não seria necessário um ajuste, que recai sobre os mais pobres. Mas na prática parece irrealizável. A solução poderia estar também numa medida aparentemente simples, mas impossível de implementar na atual conjuntura, no acordo com os empresários, via Levy: um imposto sobre as grandes fortunas.
Já foi calculado por Amir Khair, que gravar essas grandes fortunas daria um resultado de 100 bilhões, resolvendo com acréscimo o rombo orçamentário. Mas isso não aparece no horizonte imediato, nem aqui, nem em outros países, incluídos os Estados Unidos, onde Obama não consegue dobrar a maioria opositora e a tendência Reagan. Para este e os republicanos, numa previsão enganosa, tributar menos os ricos seria ter mais recursos para, na reinversão, alimentar a economia. No caso brasileiro, o grande capital, praticamente livre de impostos, não vai necessariamente reinverter seus ganhos na produção, mas pode seguir fazendo crescer suas contas nos paraísos fiscais, realizando gastos suntuosos, comprando belas residências na Flórida ou na Riviera. E a tributação desigual segue penalizando os assalariados.
Fica claro que chegar ao governo não leva necessariamente a mudar o poder real. No Brasil, temos o seguinte paradoxo: um esforço do governo que, pelas políticas sociais, deu excelentes resultados para a melhoria dos setores populares, corre o risco de involução na redistribuição da renda. Pelos dados do IPEA e do IBGE, vai ficando clara a confirmação das análises de Piketty quanto à crescente concentração do capital. Este autor declara enfaticamente que não discutir impostos sobre a riqueza é pura loucura.
A situação tende a tornar-se ainda pior, aumentando as disparidades sociais. Com isso, os grandes produtores, da indústria ao agronegócio, só teriam que se beneficiar com a nova política econômica do segundo governo Dilma. Para a Fiesp então, não interessaria uma ruptura institucional. A atual política já lhe daria segurança. Daí o apoio demonstrado, velada ou abertamente.
Em março de 1964, o general Kruel indicou ao presidente João Goulart que o II exército o apoiaria, desde que ele se desfizesse dos esquerdistas, ao seu ver enquistados no governo. Jango não aceitou e caiu. Agora, uma política econômica sempre mais ortodoxa, levaria a manter e reforçar o apoio dos grandes setores produtores. Ela marginaliza os setores populares que, entretanto, ainda estão em boa parte mobilizados contra possível golpe de ruptura legal. Entretanto este não parece ser necessário, já que, insidiosamente, dentro da própria institucionalidade vigente, as exigências do poder real vão sendo atendidas.
Não estamos vivenciando a posta em prática de uma sorte de golpe, mais ou menos camuflado, salvas as regras institucionais? Em tantos países, partidos socialistas ou de esquerda passaram a tomar decisões com as receitas de seus adversários. Isso em nome de uma governabilidade que justificava as mais esdrúxulas alianças. Nesse caso, os setores dominantes não precisariam derrubar o governo. Esse se manteria, ao preço de aceitar os ditames do poder real.
Na França, François Mitterrand sustentou e dobrou seu septenato, renegando o projeto que o levou ao poder em 1981, em meio a grande entusiasmo popular e com promessas de estatizações. Este projeto foi mais adiante interrompido e chegou mesmo a entrar num processo de regressão.
Saímos às ruas para defender o mandato da presidente Dilma e seguiremos atentos às tentativas de ruptura institucional, denunciando também esse golpe camuflado. Depois das mobilizações do dia 20 de Agosto, em vários lugares do país estão sendo preparados manifestos, em defesa da democracia, dos direitos populares e da soberania nacional. Eles denunciam uma tecnocracia que tenta capturar o Estado a serviço dos interesses dos setores dominantes. Dia 5 de setembro, em Belo Horizonte, foi lançada uma Frente Brasil nessa direção. No dia da pátria, 7 de setembro, o 21º Grito dos Excluídos, liderado pela conferência dos bispos católicos e com o apoio de movimentos sociais, teve o seguinte lema: “Que país é esse que mata gente, que a mídia mente e nos consome?” O governo da presidente Dilma teria que sentir o clamor que vem das bases da sociedade e que lhe daria apoio para evitar políticas antipopulares.
Se a oposição fosse um pouco mais inteligente, veria que as políticas econômicas de ajuste poderiam preparar sua volta ao poder em 2018, sem necessidade de abreviar prazos eleitorais. Um programa de oposição, basicamente, teria que continuar as linhas mestras da atual política ortodoxa, mas além disso, como nos tempos da “privataria tucana”, escancarando o mercado aos interesses do grande capital globalizado. Dando-se conta dessa realidade este último, frio e pragmático, daria um puxão de orelhas a essa mídia vociferante, fazendo-a mudar seus tiques violentos. Fala-se de uma possível aproximação das Organizações Globo com as políticas de ajuste do governo. Nesse caso seus serviçais teriam que refrear suas reações figadais.
Tudo parece indicar que a presidente chegará ao final de seu mandato mas, se não houver uma inflexão nas políticas econômicas, poderá transmitir uma herança maldita aos apoiadores de esquerda que buscarem sucedê-la. Compete aos setores populares, partidos progressistas, movimentos sociais, independentes e intelectuais de esquerda, fazer-se presentes e exigir mudanças de rota. Trata-se, ademais, de fortalecer uma estratégia, num prazo longo, que deveria ir além dos prazos eleitorais de 2016 e 2018, buscando novas alternativas para a construção de um país menos desigual e mais justo.
Vejamos uma situação com algumas semelhanças. Giuseppe Dosseti foi um importante político italiano no pós-guerra. Saiu de cena e fez-se religioso, criando um centro de reflexão e de espiritualidade. Mas em 1994, sentindo uma terrível crise política e ética dos partidos, voltou de seu isolamento e exigiu uma mudança nos rumos de seu país. Baseou-se num texto do profeta Isaias, com uma pergunta a alguém que via a realidade do alto e pela frente: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?”. E veio a resposta: “o amanhecer vai chegar” (Is. 21,11-12). Para além das crises, num horizonte histórico ambicioso, temos de trabalhar para a criação de uma ampla aliança popular e nacional transformadora.
Na TV argentina havia o personagem de um ventríloquo, Don Viceversa Segundo, que anunciava catástrofes com entusiasmo e boas notícias com um ar contrito. Vários desses meios de comunicação, em lugar de informar trazem um desfile de opiniões preconceituosas: estamos num precipício sem volta, para felicidade deles. E o futuro da nação não parece causar-lhes inquietação.
Se fosse esse o cenário real, como parecem fazer crer, a oposição, voltando ao poder, encontraria terra arrasada e uma situação ingovernável. Aécio, que não se repôs da derrota, com a irresponsabilidade que lhe é própria, desenha um abismo futuro a seus pés e deixa claro que não terá fôlego para chegar a 2018. Já Geraldo Alckmin é cuidadoso, ele que, governando o maior estado do país, sabe como seria dar um tiro no pé, ao querer passar do Palácio dos Bandeirantes a um Planalto estilhaçado. Logo poderá disputar a liderança da oposição com José Serra, dono de uma ambição desmedida e capaz de usar os mais insidiosos meios, como parece ter feito ao detonar, faz alguns anos, as ambições presidenciais de Roseana Sarney. Guerra de foice numa oposição que não tem programa alternativo, mas apenas vontade de derrubar o adversário.
Isso se nos ativermos a certa mídia e a partidos de oposição. Mas se olhamos mais fundo, nos setores realmente decisivos, encontramos outro cenário. Os dirigentes da Fiesp e da Firjam não parecem tão negativos. Pelo contrário. E nos levam a repensar a própria ideia de golpe.
Normalmente associamos golpe a uma ruptura na ordem jurídico-institucional, com a deposição das autoridades. Dia 20 de agosto, muitos de nós saímos à rua com cartazes e faixas em defesa de um governo legalmente eleito. Mas eis que nos deparamos com o perigo de outro tipo de golpe, à primeira vista invisível, onde a legalidade se mantém, mas a legitimidade poderia corroer-se.
Há sinais inquietantes à vista. Foi plantada a notícia de uma possível saída de Joaquim Levy do governo. Porém tudo poderia indicar tratar-se de um pretexto para reforçá-lo ainda mais. Confirmada sua permanência no governo, com declarações incisivas do setor mais próximo do Planalto, então o sensível mercado – um grupo de especuladores - reagiu favoravelmente. Levy pôde viajar tranquilo ao exterior, pois seu poder permanece aparentemente intacto. Antes disso ele se reuniu com as maiores lideranças empresariais e, ao fim do encontro, um dos participantes telefonou à presidente para levar, em primeira mão, a posição das chamadas “classes produtivas”, pedindo uma política fiscal equilibrada e cortes nos gastos, mesmo que afetassem programas sociais. Estava ali embutido um apoio que mais se parecia ao abraço que asfixia.
Dito em palavras simples, para esses setores não seria necessário derrubar a presidente, ela mesma poderia servir aos interesses do grande capital. Em plena recessão cantada pela mídia, cresce como nunca o lucro dos bancos e do 1% mais rico do país, cuja renda é cerca de 90 vezes maior do que a dos 10% mais pobres. Essa crise penaliza os setores inferiores e chega a uma boa porção da classe média. A mal denominada “nova classe média”, os cerca de quarenta milhões que saíram do nível da pobreza nos governos do PT, correm o risco de regressão e de estar entre os que mais pagam a conta do ajuste acordado por Levy e sua equipe ultraliberal.
Economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz estão cansados de denunciar, pela imprensa norte-americana, que uma política de ajustes, sob o pretexto de enfrentar a recessão, na verdade a retroalimenta. Reduz-se a produção, cai a oferta, aumenta o desemprego e retrai-se a demanda, seguindo num círculo vicioso descendente. E o terrível é que essa receita segue sendo proposta aqui, na Grécia e onde for o caso. À primeira vista pareceria um desvario, um equívoco com receitas de economistas que, como gosta de dizer com ironia Delfin Neto, vivem dentro de um ritual religioso ou falsamente científico. Porém, na verdade, é uma política pragmática e consequente, claramente orientada para defender os interesses do grande capital especulativo.
O governo apresentou um déficit orçamentário de 30,5 bilhões, previsto para 2016, indicado como sinal de transparência. Como enfrentá-lo? Para os fiscalistas no governo a solução seria basicamente uma, como sinalizada pelos empresários: corte nos gastos, mesmo atingindo os programas sociais. Mas aqui temos felizmente uma contradição. Dilma declarou enfaticamente: “Foram feitos todos os cortes possíveis no orçamento, sem prejudicar os recursos dos programas sociais”. Fazer o contrário seria renegar um dos mais importantes eixos programáticos que restariam do programa original do governo. Ali as gestões do PT obtiveram resultados expressivos. Mas na realidade, o programa “Minha Casa Minha Vida” praticamente está diminuindo o ritmo, atendendo nos próximos meses apenas obras em curso. E o Pronatec seguirá com um desempenho menor.
Lula intervém para, ao mesmo tempo pedir o fim de uma tensão interna Joaquim Levy - Nelson Barbosa e, logo adiante, solicitar que se liberem créditos para aquecer a economia, em direção oposta do receituário Levy.
Que fazer diante de um orçamento deficitário? Uma saída seria crescer a receita, com aumento da tributação. O governo chegou a anunciar a volta da CPMF, para logo voltar atrás. Outra saída poderia seu o combate à sonegação: a dívida ativa da União chegou a 1,46 trilhões! Cobrar dos grandes devedores poderia ser um caminho e não seria necessário um ajuste, que recai sobre os mais pobres. Mas na prática parece irrealizável. A solução poderia estar também numa medida aparentemente simples, mas impossível de implementar na atual conjuntura, no acordo com os empresários, via Levy: um imposto sobre as grandes fortunas.
Já foi calculado por Amir Khair, que gravar essas grandes fortunas daria um resultado de 100 bilhões, resolvendo com acréscimo o rombo orçamentário. Mas isso não aparece no horizonte imediato, nem aqui, nem em outros países, incluídos os Estados Unidos, onde Obama não consegue dobrar a maioria opositora e a tendência Reagan. Para este e os republicanos, numa previsão enganosa, tributar menos os ricos seria ter mais recursos para, na reinversão, alimentar a economia. No caso brasileiro, o grande capital, praticamente livre de impostos, não vai necessariamente reinverter seus ganhos na produção, mas pode seguir fazendo crescer suas contas nos paraísos fiscais, realizando gastos suntuosos, comprando belas residências na Flórida ou na Riviera. E a tributação desigual segue penalizando os assalariados.
Fica claro que chegar ao governo não leva necessariamente a mudar o poder real. No Brasil, temos o seguinte paradoxo: um esforço do governo que, pelas políticas sociais, deu excelentes resultados para a melhoria dos setores populares, corre o risco de involução na redistribuição da renda. Pelos dados do IPEA e do IBGE, vai ficando clara a confirmação das análises de Piketty quanto à crescente concentração do capital. Este autor declara enfaticamente que não discutir impostos sobre a riqueza é pura loucura.
A situação tende a tornar-se ainda pior, aumentando as disparidades sociais. Com isso, os grandes produtores, da indústria ao agronegócio, só teriam que se beneficiar com a nova política econômica do segundo governo Dilma. Para a Fiesp então, não interessaria uma ruptura institucional. A atual política já lhe daria segurança. Daí o apoio demonstrado, velada ou abertamente.
Em março de 1964, o general Kruel indicou ao presidente João Goulart que o II exército o apoiaria, desde que ele se desfizesse dos esquerdistas, ao seu ver enquistados no governo. Jango não aceitou e caiu. Agora, uma política econômica sempre mais ortodoxa, levaria a manter e reforçar o apoio dos grandes setores produtores. Ela marginaliza os setores populares que, entretanto, ainda estão em boa parte mobilizados contra possível golpe de ruptura legal. Entretanto este não parece ser necessário, já que, insidiosamente, dentro da própria institucionalidade vigente, as exigências do poder real vão sendo atendidas.
Não estamos vivenciando a posta em prática de uma sorte de golpe, mais ou menos camuflado, salvas as regras institucionais? Em tantos países, partidos socialistas ou de esquerda passaram a tomar decisões com as receitas de seus adversários. Isso em nome de uma governabilidade que justificava as mais esdrúxulas alianças. Nesse caso, os setores dominantes não precisariam derrubar o governo. Esse se manteria, ao preço de aceitar os ditames do poder real.
Na França, François Mitterrand sustentou e dobrou seu septenato, renegando o projeto que o levou ao poder em 1981, em meio a grande entusiasmo popular e com promessas de estatizações. Este projeto foi mais adiante interrompido e chegou mesmo a entrar num processo de regressão.
Saímos às ruas para defender o mandato da presidente Dilma e seguiremos atentos às tentativas de ruptura institucional, denunciando também esse golpe camuflado. Depois das mobilizações do dia 20 de Agosto, em vários lugares do país estão sendo preparados manifestos, em defesa da democracia, dos direitos populares e da soberania nacional. Eles denunciam uma tecnocracia que tenta capturar o Estado a serviço dos interesses dos setores dominantes. Dia 5 de setembro, em Belo Horizonte, foi lançada uma Frente Brasil nessa direção. No dia da pátria, 7 de setembro, o 21º Grito dos Excluídos, liderado pela conferência dos bispos católicos e com o apoio de movimentos sociais, teve o seguinte lema: “Que país é esse que mata gente, que a mídia mente e nos consome?” O governo da presidente Dilma teria que sentir o clamor que vem das bases da sociedade e que lhe daria apoio para evitar políticas antipopulares.
Se a oposição fosse um pouco mais inteligente, veria que as políticas econômicas de ajuste poderiam preparar sua volta ao poder em 2018, sem necessidade de abreviar prazos eleitorais. Um programa de oposição, basicamente, teria que continuar as linhas mestras da atual política ortodoxa, mas além disso, como nos tempos da “privataria tucana”, escancarando o mercado aos interesses do grande capital globalizado. Dando-se conta dessa realidade este último, frio e pragmático, daria um puxão de orelhas a essa mídia vociferante, fazendo-a mudar seus tiques violentos. Fala-se de uma possível aproximação das Organizações Globo com as políticas de ajuste do governo. Nesse caso seus serviçais teriam que refrear suas reações figadais.
Tudo parece indicar que a presidente chegará ao final de seu mandato mas, se não houver uma inflexão nas políticas econômicas, poderá transmitir uma herança maldita aos apoiadores de esquerda que buscarem sucedê-la. Compete aos setores populares, partidos progressistas, movimentos sociais, independentes e intelectuais de esquerda, fazer-se presentes e exigir mudanças de rota. Trata-se, ademais, de fortalecer uma estratégia, num prazo longo, que deveria ir além dos prazos eleitorais de 2016 e 2018, buscando novas alternativas para a construção de um país menos desigual e mais justo.
Vejamos uma situação com algumas semelhanças. Giuseppe Dosseti foi um importante político italiano no pós-guerra. Saiu de cena e fez-se religioso, criando um centro de reflexão e de espiritualidade. Mas em 1994, sentindo uma terrível crise política e ética dos partidos, voltou de seu isolamento e exigiu uma mudança nos rumos de seu país. Baseou-se num texto do profeta Isaias, com uma pergunta a alguém que via a realidade do alto e pela frente: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?”. E veio a resposta: “o amanhecer vai chegar” (Is. 21,11-12). Para além das crises, num horizonte histórico ambicioso, temos de trabalhar para a criação de uma ampla aliança popular e nacional transformadora.
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