Por Murilo Cleto, na revista Fórum:
Em 1978, com História do medo no Ocidente, o historiador francês Jean Delumeau interrompeu um silêncio de séculos na academia, algo lamentado há pelo menos três décadas por Lucien Febvre, que se queixou por não haver, até então, “[...] uma história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria”. É somente com a terceira geração da escola dos Annales, denominada História das Mentalidades, que o medo surgiu como objeto passível de investigação pela disciplina.
E esta ausência não é aleatória. Segundo Delumeau, fundada nos princípios da narrativa heroica, a história forjada enquanto apropriação do Estado a partir da Baixa Idade Média e consolidada com a Escola Metódica do século XIX relacionou frequentemente o medo à covardia, figura improvável nos relatos dos grandes feitos dos cavaleiros das Cruzadas aos imperadores oitocentistas. Mais do que isso, a própria renovação promovida pela historiografia francesa a partir dos anos 1920 não havia sido capaz de pensar a subjetividade a ponto de encarar sentimentos, dentre eles o medo, como fonte. Prova disso é a primazia do estruturalismo econômico, predominante até os anos 60 do século XX, e só superado a partir de novos diálogos interdisciplinares, como com a antropologia e a psicologia.
Mas qual o grande feito de Delumeau? Em primeiro lugar, a capacidade de admitir que o medo sentido pelo ser humano distingue-se do sentido pelo animal irracional, que encerra-se no temor de ser devorado. O homem, ao contrário dos demais, desenvolve a consciência da sua finitude logo quando se reconhece como fração do mundo. E, ainda, apesar de o medo ser comum a todos os “normais”, como destacou Sartre, a sua produção é tão mutável quanto sistemas econômicos e regimes políticos. É isso que explica o fato de que o cachorro, por exemplo, tenha hoje exatamente o mesmo medo do que no século XIV, o que não é o caso do homem, fundamentalmente diferente agora daquele que, nos trezentos, temia o inferno mais que tudo, além de judeus, bruxas e muçulmanos.
Em segundo lugar, e neste mesmo sentido, Delumeau reconhece que, apesar de sentido e muitas vezes expressado individualmente, os medos são produções do imaginário coletivo e que dialogam, portanto, com o seu tempo. Roger Caillois disse, certa vez, que “o medo humano, filho de nossa imaginação, não é uno mas múltiplo, não é fixo mas perpetuamente cambiante”. E é isso que justifica a escrita da sua história.
Entre 1300 e 1800, Delumeau percorre a história do medo no Ocidente a partir de uma das suas principais formas de expressão: a violência. Não é por acaso que boa parte de suas fontes seja, sim, formada por elucubrações filosóficas ou construções morais, mas sobretudo por ações de ódio motivadas pela insegurança. Álibi da violência, é o medo quem a autoriza como salvaguarda de algum valor, seja o da própria existência ou de algum princípio moral. Este quadro ajudou a se entender a “caça às bruxas”, por exemplo, menos como um genocídio e mais como uma limpeza necessária.
No século XXI, as bruxas já não são mais as mesmas. As originais foram sepultadas com o processo de secularização do mundo a partir do Iluminismo. Agora há outros espectros que rondam o imaginário e também produzem medos significativamente distintos daqueles de séculos atrás. Alguns deles não são inéditos, mas requentados graças à ascensão do Estado do bem-estar social, até hoje um problema para uma civilização fundada sob preceitos meritocráticos que naturalizam as desigualdades historicamente construídas em nome de uma falsa sensação de neutralidade do poder.
É só assim que se pode explicar a rejeição à política de cotas, aos programas sociais e, também, aos projetos de lei que reconhecem identidade de gênero como algo mais complexo do que as definições estanques comumente aceitas de “homem” e “mulher”. Essa rejeição é, em primeira instância, medo. E, neste sentido, Jean Wyllys é um pesadelo.
Desde 2010, quando assumiu pela primeira vez o posto de deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, já se viu tudo a seu respeito. Atribuiu-se a Jean Wyllys uma série de falas catastróficas, como uma que relacionava crentes na Bíblia a palhaços; outra em que afirmava que deputados ganham pouco; e, ainda, uma que diz que o brasileiro é um povo ignorante. Além disso, roda pelas redes uma infinidade de boatos envolvendo a sua imagem como defensor da pedofilia, do ensino do islamismo nas escolas públicas e até da zoofilia.
Há pouco tempo, uma fala do deputado na CPI do genocídio contra a juventude negra e pobre no Brasil passou a circular com o conteúdo editado em que dizia ser “potencialmente mais perigosa” uma pessoa negra e pobre do que uma branca de classe média. A edição retirou do texto a formulação “tem um imaginário impregnado, sobretudo nos agentes das forças de segurança”, que antecedia o restante da afirmação. O vídeo ganhou destaque quando foi postado por Marisa Lobo, autodenominada “psicóloga cristã”, que, dentre outras bandeiras, defende a “cura gay” para homossexuais em busca de “regeneração”, a despeito de todas as recomendações dos conselhos de psicologia pelo mundo. Mesmo reconhecendo o corte, dias depois, Marisa não retirou o vídeo do ar.
Em 2013, o site humorístico de notícias falsas Sensacionalista lançou a notícia de que a “bancada gay”, com destaque para Jean Wyllys, havia preparado um projeto de lei que proibia o casamento entre evangélicos. A sátira buscava ironizar, claro, as incoerências da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas o texto foi rapidamente incorporado por portais neopentecostais, que reproduziram-no como verdadeiro. Ainda hoje, mais de dois anos depois e apesar de todos os esclarecimentos possíveis sobre a piada, o deputado continua sendo frequentemente ofendido e ameaçado na própria página do portal.
Recentemente também, em função da oposição feita ao projeto que reduz a idade penal no país de 18 para 16 anos, Jean Wyllys teve a imagem empregada numa montagem que apontava sua falta de coerência ao defender, enquanto isso, a compulsoriedade da cirurgia de mudança de sexo para crianças a partir de 12 anos. A rede de boatos saiu tanto de controle que hoje o site do deputado abriga uma seção “Verdade ou Mentira”, onde é possível atestar a veracidade do que se veicula sobre ele na internet .
A rejeição a Wyllys não é gratuita. Na intimidade de quem produz, mas, principalmente, compartilha algumas destas histórias horripilantes, há uma série de medos recalcados. Alguns deles mais explícitos, outros nem tanto. Jean Wyllys representa hoje a ocupação de um espaço privilegiado do poder e que por muito tempo lhe foi negada por uma intolerância declarada e agora metamorfizada por um fundamentalismo religioso que não admite a própria homofobia e a converte em defesa de “valores cristãos” ou da “família”. Este não é o primeiro deputado assumidamente homossexual na história do Brasil, que elegeu, em 2006, Clodovil, figura pouco identificada com o movimento LGBT e que chegou a se manifestar de forma contrária ao casamento gay.
Em sua plataforma de campanha, Jean Wyllys incorpora pautas que se cruzam com a sua trajetória, de origem pobre, nordestina e homossexual. Isso também é um problema, à medida que ameaçam um modo confortável de encarar o mundo. Improvável seria imaginar que políticos atualmente alçados ao posto de celebridade diante do rechaço explícito aos direitos LGBT, como Levy Fidelix e Jair Bolsonaro, tivessem tanta repercussão há vinte anos. Em 1995 essa estridência não era tão necessária, afinal sua hegemonia moral não se via ameaçada nem de longe. De lá para cá, enquanto cresceu a representatividade não-hétero em setores organizados da sociedade civil e no próprio parlamento, a política institucional abrigou discursos cada vez mais violentos. O resultado – e também motivação – disso está nas ruas: o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Há nada menos que um assassinato por motivação homofóbica a cada 28 horas.
Quase quarenta anos depois, a obra de Delumeau não é fundamental apenas porque explica grandes medos enterrados com o tempo, mas porque instrumentaliza a leitura de outros tantos fabricados pelo imaginário daqueles que têm consciência da sua finitude. Compreendê-los é também ter melhores condições de intervir e evitar a barbárie. Morto em 1984, o filósofo Michel Foucault sugere com precisão o que os aflige:
“Acho que o que mais perturba quem não é gay é a forma de vida gay, e não os atos sexuais. [...] Eu me refiro ao temor geral de que os gays desenvolvam relações intensas e satisfatórias apesar de não se ajustarem à ideia que os outros têm do que sejam essas relações. O que muitas pessoas são incapazes de tolerar é a possibilidade de que os gays sejam capazes de criar tipos de relações não previstas até agora.”
Foucault estava certo. Wyllys também. Admitir o terror, que é o medo convertido em agressão, é uma escolha. E você, tem medo do quê?
Em 1978, com História do medo no Ocidente, o historiador francês Jean Delumeau interrompeu um silêncio de séculos na academia, algo lamentado há pelo menos três décadas por Lucien Febvre, que se queixou por não haver, até então, “[...] uma história do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria”. É somente com a terceira geração da escola dos Annales, denominada História das Mentalidades, que o medo surgiu como objeto passível de investigação pela disciplina.
E esta ausência não é aleatória. Segundo Delumeau, fundada nos princípios da narrativa heroica, a história forjada enquanto apropriação do Estado a partir da Baixa Idade Média e consolidada com a Escola Metódica do século XIX relacionou frequentemente o medo à covardia, figura improvável nos relatos dos grandes feitos dos cavaleiros das Cruzadas aos imperadores oitocentistas. Mais do que isso, a própria renovação promovida pela historiografia francesa a partir dos anos 1920 não havia sido capaz de pensar a subjetividade a ponto de encarar sentimentos, dentre eles o medo, como fonte. Prova disso é a primazia do estruturalismo econômico, predominante até os anos 60 do século XX, e só superado a partir de novos diálogos interdisciplinares, como com a antropologia e a psicologia.
Mas qual o grande feito de Delumeau? Em primeiro lugar, a capacidade de admitir que o medo sentido pelo ser humano distingue-se do sentido pelo animal irracional, que encerra-se no temor de ser devorado. O homem, ao contrário dos demais, desenvolve a consciência da sua finitude logo quando se reconhece como fração do mundo. E, ainda, apesar de o medo ser comum a todos os “normais”, como destacou Sartre, a sua produção é tão mutável quanto sistemas econômicos e regimes políticos. É isso que explica o fato de que o cachorro, por exemplo, tenha hoje exatamente o mesmo medo do que no século XIV, o que não é o caso do homem, fundamentalmente diferente agora daquele que, nos trezentos, temia o inferno mais que tudo, além de judeus, bruxas e muçulmanos.
Em segundo lugar, e neste mesmo sentido, Delumeau reconhece que, apesar de sentido e muitas vezes expressado individualmente, os medos são produções do imaginário coletivo e que dialogam, portanto, com o seu tempo. Roger Caillois disse, certa vez, que “o medo humano, filho de nossa imaginação, não é uno mas múltiplo, não é fixo mas perpetuamente cambiante”. E é isso que justifica a escrita da sua história.
Entre 1300 e 1800, Delumeau percorre a história do medo no Ocidente a partir de uma das suas principais formas de expressão: a violência. Não é por acaso que boa parte de suas fontes seja, sim, formada por elucubrações filosóficas ou construções morais, mas sobretudo por ações de ódio motivadas pela insegurança. Álibi da violência, é o medo quem a autoriza como salvaguarda de algum valor, seja o da própria existência ou de algum princípio moral. Este quadro ajudou a se entender a “caça às bruxas”, por exemplo, menos como um genocídio e mais como uma limpeza necessária.
No século XXI, as bruxas já não são mais as mesmas. As originais foram sepultadas com o processo de secularização do mundo a partir do Iluminismo. Agora há outros espectros que rondam o imaginário e também produzem medos significativamente distintos daqueles de séculos atrás. Alguns deles não são inéditos, mas requentados graças à ascensão do Estado do bem-estar social, até hoje um problema para uma civilização fundada sob preceitos meritocráticos que naturalizam as desigualdades historicamente construídas em nome de uma falsa sensação de neutralidade do poder.
É só assim que se pode explicar a rejeição à política de cotas, aos programas sociais e, também, aos projetos de lei que reconhecem identidade de gênero como algo mais complexo do que as definições estanques comumente aceitas de “homem” e “mulher”. Essa rejeição é, em primeira instância, medo. E, neste sentido, Jean Wyllys é um pesadelo.
Desde 2010, quando assumiu pela primeira vez o posto de deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, já se viu tudo a seu respeito. Atribuiu-se a Jean Wyllys uma série de falas catastróficas, como uma que relacionava crentes na Bíblia a palhaços; outra em que afirmava que deputados ganham pouco; e, ainda, uma que diz que o brasileiro é um povo ignorante. Além disso, roda pelas redes uma infinidade de boatos envolvendo a sua imagem como defensor da pedofilia, do ensino do islamismo nas escolas públicas e até da zoofilia.
Há pouco tempo, uma fala do deputado na CPI do genocídio contra a juventude negra e pobre no Brasil passou a circular com o conteúdo editado em que dizia ser “potencialmente mais perigosa” uma pessoa negra e pobre do que uma branca de classe média. A edição retirou do texto a formulação “tem um imaginário impregnado, sobretudo nos agentes das forças de segurança”, que antecedia o restante da afirmação. O vídeo ganhou destaque quando foi postado por Marisa Lobo, autodenominada “psicóloga cristã”, que, dentre outras bandeiras, defende a “cura gay” para homossexuais em busca de “regeneração”, a despeito de todas as recomendações dos conselhos de psicologia pelo mundo. Mesmo reconhecendo o corte, dias depois, Marisa não retirou o vídeo do ar.
Em 2013, o site humorístico de notícias falsas Sensacionalista lançou a notícia de que a “bancada gay”, com destaque para Jean Wyllys, havia preparado um projeto de lei que proibia o casamento entre evangélicos. A sátira buscava ironizar, claro, as incoerências da proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas o texto foi rapidamente incorporado por portais neopentecostais, que reproduziram-no como verdadeiro. Ainda hoje, mais de dois anos depois e apesar de todos os esclarecimentos possíveis sobre a piada, o deputado continua sendo frequentemente ofendido e ameaçado na própria página do portal.
Recentemente também, em função da oposição feita ao projeto que reduz a idade penal no país de 18 para 16 anos, Jean Wyllys teve a imagem empregada numa montagem que apontava sua falta de coerência ao defender, enquanto isso, a compulsoriedade da cirurgia de mudança de sexo para crianças a partir de 12 anos. A rede de boatos saiu tanto de controle que hoje o site do deputado abriga uma seção “Verdade ou Mentira”, onde é possível atestar a veracidade do que se veicula sobre ele na internet .
A rejeição a Wyllys não é gratuita. Na intimidade de quem produz, mas, principalmente, compartilha algumas destas histórias horripilantes, há uma série de medos recalcados. Alguns deles mais explícitos, outros nem tanto. Jean Wyllys representa hoje a ocupação de um espaço privilegiado do poder e que por muito tempo lhe foi negada por uma intolerância declarada e agora metamorfizada por um fundamentalismo religioso que não admite a própria homofobia e a converte em defesa de “valores cristãos” ou da “família”. Este não é o primeiro deputado assumidamente homossexual na história do Brasil, que elegeu, em 2006, Clodovil, figura pouco identificada com o movimento LGBT e que chegou a se manifestar de forma contrária ao casamento gay.
Em sua plataforma de campanha, Jean Wyllys incorpora pautas que se cruzam com a sua trajetória, de origem pobre, nordestina e homossexual. Isso também é um problema, à medida que ameaçam um modo confortável de encarar o mundo. Improvável seria imaginar que políticos atualmente alçados ao posto de celebridade diante do rechaço explícito aos direitos LGBT, como Levy Fidelix e Jair Bolsonaro, tivessem tanta repercussão há vinte anos. Em 1995 essa estridência não era tão necessária, afinal sua hegemonia moral não se via ameaçada nem de longe. De lá para cá, enquanto cresceu a representatividade não-hétero em setores organizados da sociedade civil e no próprio parlamento, a política institucional abrigou discursos cada vez mais violentos. O resultado – e também motivação – disso está nas ruas: o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Há nada menos que um assassinato por motivação homofóbica a cada 28 horas.
Quase quarenta anos depois, a obra de Delumeau não é fundamental apenas porque explica grandes medos enterrados com o tempo, mas porque instrumentaliza a leitura de outros tantos fabricados pelo imaginário daqueles que têm consciência da sua finitude. Compreendê-los é também ter melhores condições de intervir e evitar a barbárie. Morto em 1984, o filósofo Michel Foucault sugere com precisão o que os aflige:
“Acho que o que mais perturba quem não é gay é a forma de vida gay, e não os atos sexuais. [...] Eu me refiro ao temor geral de que os gays desenvolvam relações intensas e satisfatórias apesar de não se ajustarem à ideia que os outros têm do que sejam essas relações. O que muitas pessoas são incapazes de tolerar é a possibilidade de que os gays sejam capazes de criar tipos de relações não previstas até agora.”
Foucault estava certo. Wyllys também. Admitir o terror, que é o medo convertido em agressão, é uma escolha. E você, tem medo do quê?
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