sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Tiros em Curuguaty e o golpe no Paraguai

Por Leonardo Wexell Severo, de Assunção, Paraguai

Para o advogado Victor Azuaga, as peças do enorme quebra-cabeça do “confronto” que matou 11 camponeses e seis policiais em Marina Kue, no município de Curuguaty, no dia 15 de junho de 2012 estão mais encaixadas do que nunca: “Está claro que foi um massacre planificado, com propósitos muito bem definidos”.

Frente à comoção nacional que se seguiu, somada ao ensurdecedor bombardeio midiático e à incrível prostração do governo de Fernando Lugo em dar respostas a crimes pelo quais não era responsável, o presidente foi submetido a um processo de impeachment e apeado do poder sete dias depois.
“Os disparos vieram todos de cima, do helicóptero. Como em campo aberto os tiros poderiam ter vindo tão do alto?”, questiona Azuaga, frisando que, claramente, foram dados por “franco-atiradores que dispunham de armas de guerra”. Do outro lado, camponeses “armados” com foices, facões e meia dúzia de escopetas enferrujadas, para matar animais do campo, que, conforme a própria perícia, não foram sequer usadas. A única que aparece como tendo sido disparada não pertencia aos sem-terra e apareceu, do nada, vários dias depois.
Já os policiais, utilizando-se da tecnologia, assinalou o advogado, “utilizaram um helicóptero Robinson com capacidade de filmar para orientar sua atuação em terra, transmitindo também ao Ministério do Interior. Onde está este material? Não só o filme não apareceu, como o piloto morreu há poucos dias”. Uma sucessão de conveniências favoráveis ao governo que tem provocado protestos dos movimentos de solidariedades, em especial da Articulação Curuguaty.
Além disso, lembrou Azuaga, “ocorreram execuções sumárias, como a do trabalhador sem-terra Luis Paredes, em quem o tiro entrou pela boca e saiu pelo olho”. Outro exemplo, o de Adolfo Castro, morto em frente ao filho de dois anos depois de ter se entregue, deixa evidente a disposição de parte dos agressores. Seria cômico se não fosse trágico, mas o exame de balística feito às pressas, sob encomenda, foi feito por um ginecologista.
Na avaliação de Azuaga, Erven Lovera – que era irmão do tenente-coronel Alcides Lovera - chefe da guarda pessoal do presidente Fernando Lugo e “guarda-costas” do atual mandatário, Horacio Cartes, “conhecia o plano, mas não sabia que era parte dele”. “Temos um áudio em que Erven diz: quando disparem desde o helicóptero, atiraremos desde abaixo”. Erven Lovera foi o primeiro a ser morto, enquanto dialogava com o negociador dos sem-terra, que também cai imediatamente. Uma rajada se houve logo em seguida, instaurando-se, conforme relatam os camponeses “o salve-se quem puder”. Dezenas de soldados foram atingidos por “fogo amigo”.
A atuação conjunta no sanguinário episódio entre a Polícia Nacional e o Grupo Especial de Operações (GEO), treinado por militares estadunidenses e por técnicos da CIA – só reforça as suspeitas de um plano orquestrado, dirigido a um fim muito claro: a aniquilação de um projeto de desenvolvimento nacional, com forte componente social. O próprio Erven Lovera, conforme Azuaga, teria passado por um desses “cursos” no exterior, ostentando inclusive fardamento norte-americano. 

O governo do Paraguai aprovou recentemente uma autorização para a chegada de dezenas de “técnicos” do Exército da Colômbia – reconhecidamente treinados pela CIA – para atuar no país.
Condenando a escancarada tendenciosidade do Tribunal de Apelação, “que em menos de 24 horas, sem analisar as provas” voltou a remarcar o julgamento para Assunção, na próxima terça-feira, o advogado alerta para o sem-número de irregularidades cometidas. “São muitas as arbitrariedades, tanto dos magistrados como dos representantes do Ministério Público, sempre em favor do grupo Riquelme”, afirma Azuaga. 

A família de Blas Riquelme, falecido recentemente, reivindica a posse de Marina Kue, foi líder do Partido Colorado, do ex-ditador Alfredo Stroessener, da mesma forma que Blader Rachid, pai do jovem promotor Jalid Rachid, empenhando na injustiça contra os camponeses. Os grandes latifundiários paraguaios, donos de terras “mal habidas” – tomadas na mão grande ou com apoio das ditaduras de turno - veem uma decisão favorável aos sem-terra como um grande risco à manutenção da estrutura fundiária do Paraguai. Conforme o último censo, mais de 85% das terras são propriedade de apenas 2% da população.
“Há na verdade muitos interesses relacionados à terra por detrás deste processo, dos que acreditam que podem tapar o sol com um peneira. No momento do massacre havia uma grande quantidade de maconha estocada numa propriedade contígua, mas os policiais estavam em grande quantidade em Marina Kue”, sublinhou o advogado.

Entre os acintosos absurdos do processo que “só julga os camponeses”, apontou o advogado, está o fato de que não podem ser acusados de invasão, por tratar-se de uma organização que busca a repartição de terras do Estado. “A Associação de Vizinhos foi constituída desde 2004, não estava à margem da lei, reivindicava terras públicas, portanto não há delito”.

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