Por André Pasti, na revista CartaCapital:
Logo após assumir o mandato, em 10 de dezembro passado, o novo presidente argentino Mauricio Macri investiu esforços na desconstrução da regulação democrática da comunicação no país.
Por meio de decretos de urgência, sem qualquer debate com o Parlamento e a sociedade civil, o presidente modificou toda a estrutura prevista na chamada Lei de Meios, em vigor desde 2009, para garantir pluralidade e diversidade na mídia argentina.
Nos primeiros dias de governo, Macri nomeou um interventor para a AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), agência reguladora do país, que fiscaliza a aplicação da lei, e destituiu autoridades que possuíam mandato até 2017.
As primeiras medidas buscaram transferir para o executivo federal o controle das decisões regulatórias sobre os meios. Na reorganização ministerial, o presidente passou por cima da lei (e transferiu para o Ministro de Comunicação poderes que antes eram da AFSCA.
Elogiada pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), a agência reguladora foi considerada um dos principais avanços da Lei de Meios, por prever a participação da sociedade civil e a presença da oposição ao governo nas tomadas de decisão sobre o setor.
A Lei de Meios também assegura que o mandato dos membros da entidade não deve coincidir com os mandatos presidenciais. Os atuais iriam até o final de 2017, mas Macri destituiu por decreto o diretor do órgão, Martín Sabbatella.
De acordo com a lei, a remoção de um membro da AFSCA deveria ser aprovada por dois terços dos integrantes do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual, somente em caso de descumprimento da função. Na véspera do Natal, a entidade foi cercada por autoridades policiais e os servidores foram obrigados a desocupar o prédio (veja vídeo).
No dia 30 de dezembro, por meio de outro decreto, o órgão regulador do audiovisual, assim como a agência de telecomunicações (AFTIC), foram dissolvidos e Macri criou uma nova agência, chamada Enacom (Ente Nacional de Comunicaciones). A nova entidade está sob total controle do Executivo, comandada pelo macrista Miguel De Godoy, sem qualquer participação social.
O último ataque foi dado nesta segunda-feira (4), quando um novo decreto modificou profundamente o conteúdo da Lei de Meios. Alterações no texto reduziram os mecanismos de combate à concentração, flexibilizando os limites de propriedade, ampliando a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com a principal restrição à monopolização no setor: o alcance de, no máximo, 35% da população por um mesmo grupo midiático.
O novo decreto ainda garante ao Presidente da República a possibilidade de destituir, sem motivos, qualquer membro da nova entidade de regulação.
Retrocessos para o direito à comunicação
Os argumentos utilizados por Macri para tamanha intervenção no setor estão alinhados com os interesses e os discursos dos grandes conglomerados midiáticos do país, sobretudo do Grupo Clarín – a Globo local.
Na opinião do chefe de gabinete do novo Presidente, é necessário acabar com os limites à concentração de propriedade dos meios para garantir mais investimentos e mais concorrência – quando, sabe-se, a tendência é exatamente a oposta: num mercado desregulado, como quer Macri, os oligopólios ganham força e a concorrência diminui.
Outro argumento empregado pelo novo governo é um velho conhecido da imprensa local: o de que a Lei de Meios representaria uma guerra contra o jornalismo livre e a favor da censura. A novidade, agora, é acusar a lei de tecnologicamente ultrapassada, por regular apenas o rádio e a TV. Para o professor Martín Becerra, da Universidade Nacional de Quilmes, tal discurso esconde o interesse de derrubar obstáculos legais para os principais grupos empresariais se expandirem.
O mesmo afirma Diego de Charras, diretor de Ciências da Comunicação da Universidade de Buenos Aires (UBA), para quem o argumento está sendo usado apenas para criar uma nova legislação que atenda aos interesses dos grandes grupos. Macri já anunciou que encaminhará ao Parlamento a proposta de uma nova lei de comunicação, visando acabar com a Lei de Meios.
A política de Macri aponta, claramente, para uma liberalização econômica do setor midiático, com autorizações de fusão e maior concentração das empresas – por isso, agrada à maioria dos grandes grupos midiáticos. Mas ameaça a pluralidade de ideias, a diversidade na produção de conteúdo audiovisual e a liberdade de expressão, além de desrespeitar o processo democrático de construção da atual política pública de comunicação na Argentina.
As críticas de defensores do direito à comunicação no país, portanto, são inúmeras. Damián Loreti, vice-presidente da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), lembra que, segundo a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA, a entidade de regulação dos meios deveria ser um órgão independente e com autonomia do poder político e econômico.
Para Santiago Marino, professor da Universidade Nacional de Quilmes, os decretos reformam, por meio de uma decisão unilateral que não resulta da busca de consensos, uma lei que foi aprovada por amplas e diversas maiorias, com grande legitimidade.
O relator para a liberdade de expressão da OEA, Edison Lanza, ao contrário do que disse o novo Ministro da Comunicação, afirmou que ainda há muita concentração midiática na Argentina, e que democracias robustas em todo o mundo impõem limites à propriedade cruzada dos meios.
Resistência nas ruas
O ataque à lei e a reorganização da regulação da comunicação via decretos presidenciais também tem encontrado grande resistência nas ruas. É notória a ampla mobilização social para a defesa da Lei de Meios.
Duas grandes manifestações, nos dias 14 e 17 de dezembro, ocorreram em diversas cidades do país, reunindo milhares de pessoas sob o lema “Na Lei de Meios não se toca”. Dias antes, houve um “abraço” simbólico à sede da AFSCA, que também foi local de um grande protesto no dia 23 de dezembro, antes da efetivação da intervenção.
A resistência social é resultado direto do processo de participação social realizado ao longo da formulação da lei, que nasceu de uma ampla convergência de organizações e movimentos da sociedade, intitulada Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, formada em 2004 a partir das lutas sociais pela democratização da comunicação, que vinham dos anos 1980.
Na ocasião, os princípios defendidos pela Coalizão foram oportunamente assumidos pelo governo de Cristina Kirchner, em resposta ao conflito de sua gestão com os principais conglomerados de comunicação do país.
Após o lançamento de um anteprojeto de lei baseado na proposta da sociedade civil, o governo promoveu a realização de 25 fóruns, que contaram com a participação de cerca de 10 mil pessoas, para debater a lei. Os problemas da monopolização midiática e da falta de pluralidade foram amplamente debatidos, expandindo a defesa da comunicação como um direito e da liberdade de expressão para todas e todos.
O projeto que resultou deste processo, enviado ao Congresso, trazia 200 modificações, revelando a incidência da sociedade civil na formulação da lei. O enfrentamento no Judiciário para afirmar sua constitucionalidade e o acompanhamento de sua aplicação nos últimos seis anos também trouxeram o tema ao centro do debate público. Não à toa, agora a Lei de Meios está sendo tão defendida pela população.
A tarefa não será simples. A batalha seguirá na Justiça, com ações em curso do ex-diretor Sabbatella, sobre o comando da AFSCA. Mas, em menos de um mês de governo Macri, o horizonte aponta para a desconstrução da regulação democrática da comunicação e para medidas que atendam apenas aos interesses dos grandes grupos midiáticos. A tendência é centralizar a regulação dos meios no Poder Executivo, desconsiderar a legislação sobre participação social vigente e desmontar os avanços da Lei de Meios no combate à monopolização midiática. São retrocessos gravíssimos.
Outras mudanças na comunicação argentina também estão por vir – desde o futuro dos canais públicos, como os educativos Pakapaka e Encuentro, até a comunicação estatal, englobando o destino da agência de notícias estatal Télam e a provável saída da Argentina do financiamento da rede regional de TV TeleSUR.
No Brasil, para aqueles que defendem a democratização das comunicações e reivindicam historicamente uma nova lei que traga pluralidade e diversidade ao setor midiático local, mais do que acompanhar atentamente as movimentações em curso na Argente, é importantíssimo defender os avanços conquistados pela sociedade civil com a aprovação da Lei de Meios, atualmente com alto risco de se esvair.
* André Pasti é doutorando em Geografia Humana na USP, professor da Unicamp e integrante do Intervozes. Está acompanhando as mobilizações em defesa da Lei de Meios direto de Buenos Aires.
Logo após assumir o mandato, em 10 de dezembro passado, o novo presidente argentino Mauricio Macri investiu esforços na desconstrução da regulação democrática da comunicação no país.
Por meio de decretos de urgência, sem qualquer debate com o Parlamento e a sociedade civil, o presidente modificou toda a estrutura prevista na chamada Lei de Meios, em vigor desde 2009, para garantir pluralidade e diversidade na mídia argentina.
Nos primeiros dias de governo, Macri nomeou um interventor para a AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), agência reguladora do país, que fiscaliza a aplicação da lei, e destituiu autoridades que possuíam mandato até 2017.
As primeiras medidas buscaram transferir para o executivo federal o controle das decisões regulatórias sobre os meios. Na reorganização ministerial, o presidente passou por cima da lei (e transferiu para o Ministro de Comunicação poderes que antes eram da AFSCA.
Elogiada pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (Organização dos Estados Americanos), a agência reguladora foi considerada um dos principais avanços da Lei de Meios, por prever a participação da sociedade civil e a presença da oposição ao governo nas tomadas de decisão sobre o setor.
A Lei de Meios também assegura que o mandato dos membros da entidade não deve coincidir com os mandatos presidenciais. Os atuais iriam até o final de 2017, mas Macri destituiu por decreto o diretor do órgão, Martín Sabbatella.
De acordo com a lei, a remoção de um membro da AFSCA deveria ser aprovada por dois terços dos integrantes do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual, somente em caso de descumprimento da função. Na véspera do Natal, a entidade foi cercada por autoridades policiais e os servidores foram obrigados a desocupar o prédio (veja vídeo).
No dia 30 de dezembro, por meio de outro decreto, o órgão regulador do audiovisual, assim como a agência de telecomunicações (AFTIC), foram dissolvidos e Macri criou uma nova agência, chamada Enacom (Ente Nacional de Comunicaciones). A nova entidade está sob total controle do Executivo, comandada pelo macrista Miguel De Godoy, sem qualquer participação social.
O último ataque foi dado nesta segunda-feira (4), quando um novo decreto modificou profundamente o conteúdo da Lei de Meios. Alterações no texto reduziram os mecanismos de combate à concentração, flexibilizando os limites de propriedade, ampliando a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com a principal restrição à monopolização no setor: o alcance de, no máximo, 35% da população por um mesmo grupo midiático.
O novo decreto ainda garante ao Presidente da República a possibilidade de destituir, sem motivos, qualquer membro da nova entidade de regulação.
Retrocessos para o direito à comunicação
Os argumentos utilizados por Macri para tamanha intervenção no setor estão alinhados com os interesses e os discursos dos grandes conglomerados midiáticos do país, sobretudo do Grupo Clarín – a Globo local.
Na opinião do chefe de gabinete do novo Presidente, é necessário acabar com os limites à concentração de propriedade dos meios para garantir mais investimentos e mais concorrência – quando, sabe-se, a tendência é exatamente a oposta: num mercado desregulado, como quer Macri, os oligopólios ganham força e a concorrência diminui.
Outro argumento empregado pelo novo governo é um velho conhecido da imprensa local: o de que a Lei de Meios representaria uma guerra contra o jornalismo livre e a favor da censura. A novidade, agora, é acusar a lei de tecnologicamente ultrapassada, por regular apenas o rádio e a TV. Para o professor Martín Becerra, da Universidade Nacional de Quilmes, tal discurso esconde o interesse de derrubar obstáculos legais para os principais grupos empresariais se expandirem.
O mesmo afirma Diego de Charras, diretor de Ciências da Comunicação da Universidade de Buenos Aires (UBA), para quem o argumento está sendo usado apenas para criar uma nova legislação que atenda aos interesses dos grandes grupos. Macri já anunciou que encaminhará ao Parlamento a proposta de uma nova lei de comunicação, visando acabar com a Lei de Meios.
A política de Macri aponta, claramente, para uma liberalização econômica do setor midiático, com autorizações de fusão e maior concentração das empresas – por isso, agrada à maioria dos grandes grupos midiáticos. Mas ameaça a pluralidade de ideias, a diversidade na produção de conteúdo audiovisual e a liberdade de expressão, além de desrespeitar o processo democrático de construção da atual política pública de comunicação na Argentina.
As críticas de defensores do direito à comunicação no país, portanto, são inúmeras. Damián Loreti, vice-presidente da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC), lembra que, segundo a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA, a entidade de regulação dos meios deveria ser um órgão independente e com autonomia do poder político e econômico.
Para Santiago Marino, professor da Universidade Nacional de Quilmes, os decretos reformam, por meio de uma decisão unilateral que não resulta da busca de consensos, uma lei que foi aprovada por amplas e diversas maiorias, com grande legitimidade.
O relator para a liberdade de expressão da OEA, Edison Lanza, ao contrário do que disse o novo Ministro da Comunicação, afirmou que ainda há muita concentração midiática na Argentina, e que democracias robustas em todo o mundo impõem limites à propriedade cruzada dos meios.
Resistência nas ruas
O ataque à lei e a reorganização da regulação da comunicação via decretos presidenciais também tem encontrado grande resistência nas ruas. É notória a ampla mobilização social para a defesa da Lei de Meios.
Duas grandes manifestações, nos dias 14 e 17 de dezembro, ocorreram em diversas cidades do país, reunindo milhares de pessoas sob o lema “Na Lei de Meios não se toca”. Dias antes, houve um “abraço” simbólico à sede da AFSCA, que também foi local de um grande protesto no dia 23 de dezembro, antes da efetivação da intervenção.
A resistência social é resultado direto do processo de participação social realizado ao longo da formulação da lei, que nasceu de uma ampla convergência de organizações e movimentos da sociedade, intitulada Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, formada em 2004 a partir das lutas sociais pela democratização da comunicação, que vinham dos anos 1980.
Na ocasião, os princípios defendidos pela Coalizão foram oportunamente assumidos pelo governo de Cristina Kirchner, em resposta ao conflito de sua gestão com os principais conglomerados de comunicação do país.
Após o lançamento de um anteprojeto de lei baseado na proposta da sociedade civil, o governo promoveu a realização de 25 fóruns, que contaram com a participação de cerca de 10 mil pessoas, para debater a lei. Os problemas da monopolização midiática e da falta de pluralidade foram amplamente debatidos, expandindo a defesa da comunicação como um direito e da liberdade de expressão para todas e todos.
O projeto que resultou deste processo, enviado ao Congresso, trazia 200 modificações, revelando a incidência da sociedade civil na formulação da lei. O enfrentamento no Judiciário para afirmar sua constitucionalidade e o acompanhamento de sua aplicação nos últimos seis anos também trouxeram o tema ao centro do debate público. Não à toa, agora a Lei de Meios está sendo tão defendida pela população.
A tarefa não será simples. A batalha seguirá na Justiça, com ações em curso do ex-diretor Sabbatella, sobre o comando da AFSCA. Mas, em menos de um mês de governo Macri, o horizonte aponta para a desconstrução da regulação democrática da comunicação e para medidas que atendam apenas aos interesses dos grandes grupos midiáticos. A tendência é centralizar a regulação dos meios no Poder Executivo, desconsiderar a legislação sobre participação social vigente e desmontar os avanços da Lei de Meios no combate à monopolização midiática. São retrocessos gravíssimos.
Outras mudanças na comunicação argentina também estão por vir – desde o futuro dos canais públicos, como os educativos Pakapaka e Encuentro, até a comunicação estatal, englobando o destino da agência de notícias estatal Télam e a provável saída da Argentina do financiamento da rede regional de TV TeleSUR.
No Brasil, para aqueles que defendem a democratização das comunicações e reivindicam historicamente uma nova lei que traga pluralidade e diversidade ao setor midiático local, mais do que acompanhar atentamente as movimentações em curso na Argente, é importantíssimo defender os avanços conquistados pela sociedade civil com a aprovação da Lei de Meios, atualmente com alto risco de se esvair.
* André Pasti é doutorando em Geografia Humana na USP, professor da Unicamp e integrante do Intervozes. Está acompanhando as mobilizações em defesa da Lei de Meios direto de Buenos Aires.
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