Foto do filme "O lado escuro do chocolate" |
Você sabia que com o mesmo valor de dois ovos de Páscoa “de luxo” vendidos no Brasil daria para comprar uma criança africana para trabalhar como escrava na lavoura do cacau na Costa do Marfim? Sério. Um ovo personalizado da marca Chocolat du Jour lançado este ano custa 497 reais. E uma criança do Mali ou de Burkina Faso custava 230 euros (941 reais, ao câmbio de hoje) entre os traficantes entrevistados pelo dinamarquês Miki Mistrati para o documentário O Lado Negro do Chocolate em 2010. É possível que tenha havido alguma inflação no mercado de escravos por lá desde então. Ou não.
Em julho do ano passado, a Universidade de Tulane, nos EUA, publicou um estudo mostrando que cerca de 2,2 milhões de crianças africanas trabalharam na produção de cacau na Costa do Marfim e em Gana entre 2014 e 2015, quase todos de forma perigosa – a maioria das crianças trabalha usando um facão, colhendo a fruta do cacaueiro e quebrando a castanha na mão. Crianças de até 10 anos de idade carregam sacas pesadas, que causam problemas em seu desenvolvimento físico. 4 mil do total de menores se encontravam em condições análogas à escravidão. E isso mesmo que, 15 anos atrás, os principais fabricantes de chocolate tenham assinado um compromisso para pôr fim à prática até 2008 (o compromisso agora foi estendido até 2020).
O mundo consome 7 milhões de toneladas de chocolate por ano, metade delas na Europa. A produção, ao contrário, é quase toda africana. A Costa do Marfim produz 33% do cacau do mundo; o Brasil, que chegou a ser o segundo produtor e o primeiro exportador mundial, ainda é o maior produtor de cacau das Américas e o quarto do mundo. Natural que, quando chega a Páscoa, o consumismo dos ovos de chocolate faça tilintar os bolsos dos fabricantes.
Este ano, a indústria de chocolate colocou 95 milhões de ovos à venda em todo o país. O Brasil está entre os países que mais consomem chocolate, mas as vendas estão em queda nos últimos anos. Ainda assim, calcula-se que o setor movimente cerca de 12,5 bilhões de reais por ano, 25% apenas na Páscoa. Aí a gente se pergunta: como agradar nossos filhos e ao mesmo tempo não dar dinheiro a indústrias que exploram o trabalho escravo infantil na África? Mesmo sendo produtores de cacau e importando pouco (apenas 5% em 2015), é impossível afirmar que estamos comendo chocolate que não participou desta cadeia.
As fábricas de chocolate não compram cacau, compram uma matéria-prima processada pelas mega-corporações, como Barry Calebaut, Cargill e ADM Cocoa (atualmente Olam), todas acusadas de fazer vista grossa ao trabalho infantil na lavoura do cacau em países da África. À “torta de cacau”, uma espécie de borra de café, são acrescentados gordura vegetal hidrogenada, baunilha e muito, muito açúcar. A legislação exige que se tenha 25% de “sólidos de cacau” para ser chamado chocolate. Mas nestes “sólidos” pode ter um pouco de tudo.
Desde 2012 está proibido importar cacau da Costa do Marfim no Brasil, por razões técnicas: duas cargas chegaram do país com insetos vivos, favorecendo o risco de pragas. Mas a indústria nacional importa de Gana, onde também foi encontrado trabalho escravo. Se o governo fosse mais rigoroso, poderíamos hoje ter apenas cacau brasileiro em nosso chocolate. O cacau que é produzido no sul da Bahia, por exemplo, é um cacau praticamente orgânico, que tradicionalmente utiliza poucos pesticidas. Afetada pela praga da vassoura-de-bruxa no final da década de 1980, a lavoura cacaueira se recuperou e produziu 260 mil toneladas de cacau no ano passado. Hoje há, inclusive, produtores da região se especializando na fabricação de chocolates gourmet, ou melhor, de chocolate “verdadeiro”, sem tanta adição de açúcar e com mais cacau.
“A lavoura do cacau no sul da Bahia, por ser cultivada sob os remanescentes da mata atlântica, faz com que o Brasil seja vanguarda em sustentabilidade”, diz o produtor Francisco Correia, de Ilhéus, que produz os chocolates Coroa Azul. “O verdadeiro chocolate é um extrato da floresta. Vem de um cacau cultivado em base agroecológica, molhado pela chuva, sombreado pela Mata Atlântica e que tem na preparação artesanal das amêndoas de cacau o conhecimento oralizado tradicionalmente por cerca de 200 anos.”
O ministério da Agricultura poderia muito bem criar um selo “livre de trabalho escravo” ou “livre de trabalho infantil” para qualificar o chocolate vendido no Brasil. Enquanto isso não ocorre, o consumidor pode simplesmente boicotar as três marcas denunciadas em setembro de 2015 em San Francisco por utilizarem trabalho escravo infantil na produção de cacau: Mars, Nestlé e Hershey. Os consumidores californianos que entraram com a ação na Justiça acusam as empresas de “propaganda enganosa” por não colocar na embalagem que trabalho infantil foi utilizado na produção do chocolate – ainda mais quando se trata de um produto consumido em grande escala também por crianças. É imoral.
E não são só os pequenos os explorados. Em 2014, um repórter da TV holandesa emocionou o mundo ao entregar barras de chocolate a trabalhadores na lavoura do cacau na Costa do Marfim que NUNCA tinham provado a guloseima. Imaginem: eles plantam, colhem e secam o cacau, mas nem imaginavam o gosto que tinha o resultado de seu trabalho. “É doce!”, se espantam. Assista [aqui].
Na contramão do trabalho escravo, na bolivariana Venezuela há uma estatal do cacau e existe uma fábrica de chocolate, Oderí, que trabalha de forma cooperativa, sob uma visão socialista da produção e comercialização, com renda revertida para a comunidade e os pequenos produtores. Há quem diga que o cacau venezuelano é o melhor do mundo, mas o cultivo da planta não tinha o incentivo do governo até a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999. Chávez considerava o cacau “um produto estratégico” para o país.
Veja também o documentário O Lado Negro do Chocolate, com legendas em português [aqui]. E boa Páscoa.
0 comentários:
Postar um comentário