Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Professor de História da Universidade de Harvard, a mais prestigiada instituição de ensino do planeta, nos próximos dias o brasileiro Sidney Chalhoub estará no centro dos debates acadêmicos internacionais sobre o impeachment contra Dilma Rousseff.
Naquele mesmo encontro de Nova York ao qual Fernando Henrique Cardoso desistiu de comparecer pelo receio de ser hostilizado em função de sua postura favorável ao golpe parlamentar de abril-maio, o Conselho Executivo do XXXIV Congresso da Associação de Estudos Latino Americanos (LASA), decidiu formar uma comissão de cinco acadêmicos, de cinco países diferentes, que deverá produzir um relatório para responder a uma questão específica: "determinar se as acusações contra a Presidenta Dilma Rousseff estão de acordo com os parâmetros constitucionais estabelecidos para processos de impeachment, se elas têm credibilidade e se o parlamento brasileiro segue as regras processuais devidas."
Único brasileiro da comissão, cinco livros publicados, com uma carreira construída na Universidade de Campinas, onde se aposentou após 35 anos, Sidney Chalhoub foi escolhido como coordenador dos trabalhos.
Entre 18 e 27 de julho, os integrantes da comissão passarão uma temporada entre Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, consultando documentos e ouvindo políticos, assessores e outros profissionais envolvidos no caso, sejam aliados da presidente afastada, sejam de personalidades ligadas ao governo interino de Michel Temer. Pelo prestígio da LASA, a maior e mais respeitada entidade de pesquisadores sobre América Latina no mundo, o trabalho está destinado a ter uma repercussão política evidente no desfecho da crise, até porque as conclusões do relatório devem ser divulgadas dias antes da decisão final do Senado. Autor de estudos que ajudaram a renovar a visão convencional sobre a abolição da escravidão, demonstrando o papel real dos cativos na conquista da liberdade, Chaloub deu a seguinte entrevista ao 247:
Você costuma dizer que, vista em processos de longa duração, a história brasileira tem um traço marcante: a cada momento de ampliação de direitos das camadas subalternas, segue-se uma reação forte das camadas superiores, que procuram paralisar o processo e até fazer o país retroceder, muitas vezes através da violência política.
Acho que podemos enxergar isso em pelo menos três eventos importantes de nossa história. Não acontece apenas no Brasil, é claro, mas aqui é um processo marcante. Podemos falar em grandes avanço e retrocessos no período da abolição, no final do século XIX. Também assistimos a uma situação semelhante no início dos anos 1960, que foi enfrentada pelo golpe militar de 1964. E podemos falando mesmo processo agora. Após um longo período de ampliação de direitos, que na verdade teve início antes do governo Lula, temos a ascensão de um governo que pretende não só barrar a ampliação de direitos, mas revogar conquistas e melhorias acumuladas ao longo de décadas, que podem chegar inclusive a CLT, que é de 1941.
Podemos explicar os avanços e retrocessos no século XIX?
No caso da abolição, foi tudo muito claro e explicito. A cada passo favorável a emancipação dos escravos, seguia-se uma reação contrária. A lei de 1871, que permitia aos escravos comprar a própria liberdade, pagando pela alforria, foi produto de uma disputa duríssima, que durou um ano inteiro e paralisou o país numa das grandes crises do Império. O debate envolvia convicções profundas do Brasil daquele tempo. Os proprietários de escravo não só achavam que era natural manter uma pessoa sob o regime de cativeiro. Também consideravam inaceitável que alguém tivesse o direito de comprar a própria liberdade, mesmo pagando um valor equivalente ao que se poderia definir como valor de mercado. Além da perda econômica, eles não aceitavam a conquista de direitos da outra parte. Não se podia conviver com a ideia de que um antigo escravo pudesse tornar-se uma homem livre. Para além das questões de natureza econômica, havia essa questão fundamental, política. De certa forma, este era o ponto mais importante.
O que veio depois?
Dez anos depois, o alforriado era uma realidade social inegável. Os escravos nem sempre tinham recursos para comprar a liberdade mas se organizavam coletivamente, de uma forma que hoje poderíamos chamar de cooperativas, conseguindo libertar um bom número de cativos. Faziam coletas, recebiam apoio. Com o tempo, eles se tornaram uma força social e política ponderável. A reação foi a lei de 1881, a primeira da história do Brasil que proibia o voto dos analfabetos. Até então, achava-se natural que toda pessoa livre pudesse votar em eleições. Ninguém questionava a ausência de educação formal, num país onde o ensino era acessível a poucas famílias. Com a presença do escravo, criamos uma lei que só seria abolida um século depois, em 1988, na Constituição escrita após a ditadura. A proibição do analfabeto era e sempre foi uma medida contra os escravos e, mais tarde, contra seus descendentes, o que parece ser uma tradição em sociedades onde o cativeiro teve uma função social importante. Mesmo nos Estados Unidos, onde as condições da abolição foram inteiramente diferentes, essas restrições ao voto dos negros sempre existiram e ainda existem.
Muitas pessoas definem a proclamação da República como uma reação dos fazendeiros contra a Monarquia que aboliu a escravidão. Está correto?
Não há dúvida de que a República foi produto de uma revolta dos fazendeiros contra a Coroa, que enxergavam como verdadeiro protagonista da abolição. Pode-se falar em vingança. O papel da Coroa não deve ser exagerado, porém. Quaisquer que fossem as convicções da família imperial, a Coroa conviveu com a escravidão por várias décadas e, em 1888, respondeu a uma pressão crescente da sociedade e também do mundo desenvolvido, com quem o Brasil tinha uma relação de grande dependência. Naquele momento, de afirmação de noções típicas da sociedade burguesa, como democracia, liberdade, direitos do indivíduo, o cativeiro era um fator insuportável para ampliar o isolamento internacional do país. Também era um elemento de crise interna. Nos processos de alforria, os tribunais de Justiça davam ganho de causa aos escravos, o que acelerava as contradições de uma sociedade fundamentada no trabalho não-remunerado, de homens e mulheres que não podiam ter nenhum direito. A abolição ocorreu depois de uma fuga massiva de escravos do país inteiro, que se iniciou no final de 1887 e prolongou-se por cinco meses, num processo de luta e rebeldia que demonstrava uma situação fora de controle.
Neste contexto, como foi a reação dos antigos senhores de escravos?
Foi violentíssima. Em linguagem de hoje, eles criaram uma ação afirmativa ao contrário.
Como assim?
Sem negar que a República é uma forma de governo mais compatível com os valores de nossa época, cabe reconhecer que ela nasceu para interromper a ampliação de direitos que necessariamente deveria ter seguido o fim da escravidão. Esta é sua origem. Não por acaso, os fazendeiros de São Paulo decidiram criar um programa de integração subsidiada do imigrante europeu. Este foi trazido ao país em condições que, mesmo incluindo dificuldades e sacrifícios, certamente não tinham comparação com a realidade dos navios negreiros, até porque eram programas voluntários. Aqui, o imigrante entrava no sistema de colonato, que lhe permitia acesso a uma parte da terra para o plantio. Não era o ideal mas era vantajoso ao que se oferecia ao escravo.
Qual a semelhança entre 1964 e 2016?
Todos nós conhecemos a interpretação corrente para o golpe de 64. Essa visão descreve uma radicalização de conflitos de classe que, em determinado momento, se tornou tão acirrada que não cabia nas instituições existentes. Eu acho que essa interpretação até ajuda justificar um golpe, pois sugere que não havia outro jeito de sair da crise a não ser por uma ruptura institucional. Só que a realidade não era esta, como mostram pesquisas mais recentes, que apontam para um enfoque mais verdadeiro e realista. Não havia crise institucional nenhuma. O que havia era a recusa política por parte da elite dirigente em aceitar avanços que ocorriam normalmente dentro das instituições existentes, de modo pacífico e perfeitamente legal. O grande foco de mudanças se processava pela Justiça do Trabalho, que, após anos de existência, mostrava-se capaz de cumprir seu papel.
Como assim?
Essa descoberta, que permite reinterpretar todo um período histórico, não é minha. Encontra-se num trabalho essencial, de pós-doutorado, do professor Fernando Teixeira da Silva que, infelizmente, não se encontra disponível em livro. O professor mostra que nos anos anteriores ao golpe ocorre uma evolução na postura da justiça do trabalho, onde surge uma constante de resultados favoráveis aos trabalhadores. Essa era a grande mudança. Não era radicalização. O que havia era a ampliação de direitos, como hoje. Falava em radicalização quem queria mudar a situação e dar o golpe.
No livro Visões da Liberdade, você critica estudiosos que não reconhecem o papel do escravo na luta pela liberdade. Um dos criticados é Fernando Henrique Cardoso que, nos tempos acadêmicos, fez pesquisas sobre a abolição da escravatura, em especial nos estados do sul do país.
No momento em que publicou seus trabalhos, Fernando Henrique e outros intelectuais de sua geração ajudaram a questionar a noção oficial da época, que dizia que vivíamos sob uma democracia racial. Foi uma contribuição importante, que deve ser reconhecida, e que teve início com os trabalhos de seu professor, Florestan Fernandes. Muitos anos antes destas pesquisas, outros intelectuais, também importantes, trilharam pelo mesmo caminho. O próprio (Joaquim) Nabuco dizia que a elite do país, branca, tinha a responsabilidade de terminar a escravidão, para não correr o risco de que os próprios escravos o fizessem.
Qual era o risco de que eles falavam?
Eles temiam que seu modo de vida - que consideravam tão próximo da belle epoque europeia - fosse ameaçado pelo avanço de direitos. Contra a rebelião dos escravos, queriam uma rebelião senhorial.
Você acredita que a postura política de Fernando Henrique em relação aos governos Lula-Dilma reproduz aquilo que escreveu sobre os escravos?
A postura dele revelava uma dificuldade essencial para aceitar a figura do trabalhador - escravo ou não - como sujeito político coletivo, capaz de atuar por seus direitos. Acreditava que a violência do cativeiro fora capaz de reduzir o escravo a uma coisa, incapaz de consciência e vontade. Vejo essa semelhança.
Como você enxerga o apoio dele ao golpe de abril-maio?
Eu acho lamentável que, neste momento, o Fernando Henrique esteja negando sua própria história e tenha preferido jogar fora uma herança importante. Não vamos esquecer, por exemplo, que seu governo foi o primeiro a assinar políticas de ação afirmativa. Posso até entender que deve ser muito difícil sofrer quatro derrotas seguidas em eleições presidenciais. Deve ser duro. Mesmo assim, não consigo entender uma guinada tão radical, de quem faz uma aposta aventureira. Mesmo admitindo que não deveria esperar grandes coisas, confesso que estou decepcionado.
Você fez um artigo onde comparava o juiz Sérgio Moro a Simão Bacamarte. Para quem não lembra, Bacamarte é um personagem de um conto de Machado de Assis que, deslumbrado com as novidades da psiquiatria europeia, acaba internando uma cidade inteira num hospício. No final, ele mesmo vai morar na instituição. O que há em comum entre os personagens?
No conto, Machado de Assis discute o espírito missionário, de salvação nacional, que surge com frequência na história do país. Naquela época de grandes epidemias e primeiros sinais de colapso das grandes cidades, eles se concentravam nos médicos e nos engenheiros. Eles poderiam impedir nossas doenças e tornar nossas cidades habitáveis. Não fariam isso através da política, mas através da técnica, de um conhecimento supostamente científico, fora do alcance do cidadão comum. A utilidade do pensamento de Machado, um observador político muito mais atento do que se costuma reconhecer, é mostrar que esse tipo de visão pode até trazer benefícios reais, mas abre caminho para todo tipo de abuso e atos arbitrários.
Em tempos recentes, quais antecedentes podem ser lembrados?
No final da ditadura militar, a crise econômica transformou os ministros da Fazenda em personagens sagrados. Eram tratados como divindades, por uma população convencida de que sofria do "vírus da cultura inflacionária" que só os economistas sabiam como curar. Perdemos a conta de quantos pacotes foram baixados sem consulta popular, todos fracassados. Chegamos a aceitar o confisco da poupança dos brasileiros, a permitir que os depósitos bancários fossem travados. Só quando a política ocupou seu lugar é que as questões reais puderam ser encaradas e até certo ponto resolvidas.
Professor de História da Universidade de Harvard, a mais prestigiada instituição de ensino do planeta, nos próximos dias o brasileiro Sidney Chalhoub estará no centro dos debates acadêmicos internacionais sobre o impeachment contra Dilma Rousseff.
Naquele mesmo encontro de Nova York ao qual Fernando Henrique Cardoso desistiu de comparecer pelo receio de ser hostilizado em função de sua postura favorável ao golpe parlamentar de abril-maio, o Conselho Executivo do XXXIV Congresso da Associação de Estudos Latino Americanos (LASA), decidiu formar uma comissão de cinco acadêmicos, de cinco países diferentes, que deverá produzir um relatório para responder a uma questão específica: "determinar se as acusações contra a Presidenta Dilma Rousseff estão de acordo com os parâmetros constitucionais estabelecidos para processos de impeachment, se elas têm credibilidade e se o parlamento brasileiro segue as regras processuais devidas."
Único brasileiro da comissão, cinco livros publicados, com uma carreira construída na Universidade de Campinas, onde se aposentou após 35 anos, Sidney Chalhoub foi escolhido como coordenador dos trabalhos.
Entre 18 e 27 de julho, os integrantes da comissão passarão uma temporada entre Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, consultando documentos e ouvindo políticos, assessores e outros profissionais envolvidos no caso, sejam aliados da presidente afastada, sejam de personalidades ligadas ao governo interino de Michel Temer. Pelo prestígio da LASA, a maior e mais respeitada entidade de pesquisadores sobre América Latina no mundo, o trabalho está destinado a ter uma repercussão política evidente no desfecho da crise, até porque as conclusões do relatório devem ser divulgadas dias antes da decisão final do Senado. Autor de estudos que ajudaram a renovar a visão convencional sobre a abolição da escravidão, demonstrando o papel real dos cativos na conquista da liberdade, Chaloub deu a seguinte entrevista ao 247:
Você costuma dizer que, vista em processos de longa duração, a história brasileira tem um traço marcante: a cada momento de ampliação de direitos das camadas subalternas, segue-se uma reação forte das camadas superiores, que procuram paralisar o processo e até fazer o país retroceder, muitas vezes através da violência política.
Acho que podemos enxergar isso em pelo menos três eventos importantes de nossa história. Não acontece apenas no Brasil, é claro, mas aqui é um processo marcante. Podemos falar em grandes avanço e retrocessos no período da abolição, no final do século XIX. Também assistimos a uma situação semelhante no início dos anos 1960, que foi enfrentada pelo golpe militar de 1964. E podemos falando mesmo processo agora. Após um longo período de ampliação de direitos, que na verdade teve início antes do governo Lula, temos a ascensão de um governo que pretende não só barrar a ampliação de direitos, mas revogar conquistas e melhorias acumuladas ao longo de décadas, que podem chegar inclusive a CLT, que é de 1941.
Podemos explicar os avanços e retrocessos no século XIX?
No caso da abolição, foi tudo muito claro e explicito. A cada passo favorável a emancipação dos escravos, seguia-se uma reação contrária. A lei de 1871, que permitia aos escravos comprar a própria liberdade, pagando pela alforria, foi produto de uma disputa duríssima, que durou um ano inteiro e paralisou o país numa das grandes crises do Império. O debate envolvia convicções profundas do Brasil daquele tempo. Os proprietários de escravo não só achavam que era natural manter uma pessoa sob o regime de cativeiro. Também consideravam inaceitável que alguém tivesse o direito de comprar a própria liberdade, mesmo pagando um valor equivalente ao que se poderia definir como valor de mercado. Além da perda econômica, eles não aceitavam a conquista de direitos da outra parte. Não se podia conviver com a ideia de que um antigo escravo pudesse tornar-se uma homem livre. Para além das questões de natureza econômica, havia essa questão fundamental, política. De certa forma, este era o ponto mais importante.
O que veio depois?
Dez anos depois, o alforriado era uma realidade social inegável. Os escravos nem sempre tinham recursos para comprar a liberdade mas se organizavam coletivamente, de uma forma que hoje poderíamos chamar de cooperativas, conseguindo libertar um bom número de cativos. Faziam coletas, recebiam apoio. Com o tempo, eles se tornaram uma força social e política ponderável. A reação foi a lei de 1881, a primeira da história do Brasil que proibia o voto dos analfabetos. Até então, achava-se natural que toda pessoa livre pudesse votar em eleições. Ninguém questionava a ausência de educação formal, num país onde o ensino era acessível a poucas famílias. Com a presença do escravo, criamos uma lei que só seria abolida um século depois, em 1988, na Constituição escrita após a ditadura. A proibição do analfabeto era e sempre foi uma medida contra os escravos e, mais tarde, contra seus descendentes, o que parece ser uma tradição em sociedades onde o cativeiro teve uma função social importante. Mesmo nos Estados Unidos, onde as condições da abolição foram inteiramente diferentes, essas restrições ao voto dos negros sempre existiram e ainda existem.
Muitas pessoas definem a proclamação da República como uma reação dos fazendeiros contra a Monarquia que aboliu a escravidão. Está correto?
Não há dúvida de que a República foi produto de uma revolta dos fazendeiros contra a Coroa, que enxergavam como verdadeiro protagonista da abolição. Pode-se falar em vingança. O papel da Coroa não deve ser exagerado, porém. Quaisquer que fossem as convicções da família imperial, a Coroa conviveu com a escravidão por várias décadas e, em 1888, respondeu a uma pressão crescente da sociedade e também do mundo desenvolvido, com quem o Brasil tinha uma relação de grande dependência. Naquele momento, de afirmação de noções típicas da sociedade burguesa, como democracia, liberdade, direitos do indivíduo, o cativeiro era um fator insuportável para ampliar o isolamento internacional do país. Também era um elemento de crise interna. Nos processos de alforria, os tribunais de Justiça davam ganho de causa aos escravos, o que acelerava as contradições de uma sociedade fundamentada no trabalho não-remunerado, de homens e mulheres que não podiam ter nenhum direito. A abolição ocorreu depois de uma fuga massiva de escravos do país inteiro, que se iniciou no final de 1887 e prolongou-se por cinco meses, num processo de luta e rebeldia que demonstrava uma situação fora de controle.
Neste contexto, como foi a reação dos antigos senhores de escravos?
Foi violentíssima. Em linguagem de hoje, eles criaram uma ação afirmativa ao contrário.
Como assim?
Sem negar que a República é uma forma de governo mais compatível com os valores de nossa época, cabe reconhecer que ela nasceu para interromper a ampliação de direitos que necessariamente deveria ter seguido o fim da escravidão. Esta é sua origem. Não por acaso, os fazendeiros de São Paulo decidiram criar um programa de integração subsidiada do imigrante europeu. Este foi trazido ao país em condições que, mesmo incluindo dificuldades e sacrifícios, certamente não tinham comparação com a realidade dos navios negreiros, até porque eram programas voluntários. Aqui, o imigrante entrava no sistema de colonato, que lhe permitia acesso a uma parte da terra para o plantio. Não era o ideal mas era vantajoso ao que se oferecia ao escravo.
Qual a semelhança entre 1964 e 2016?
Todos nós conhecemos a interpretação corrente para o golpe de 64. Essa visão descreve uma radicalização de conflitos de classe que, em determinado momento, se tornou tão acirrada que não cabia nas instituições existentes. Eu acho que essa interpretação até ajuda justificar um golpe, pois sugere que não havia outro jeito de sair da crise a não ser por uma ruptura institucional. Só que a realidade não era esta, como mostram pesquisas mais recentes, que apontam para um enfoque mais verdadeiro e realista. Não havia crise institucional nenhuma. O que havia era a recusa política por parte da elite dirigente em aceitar avanços que ocorriam normalmente dentro das instituições existentes, de modo pacífico e perfeitamente legal. O grande foco de mudanças se processava pela Justiça do Trabalho, que, após anos de existência, mostrava-se capaz de cumprir seu papel.
Como assim?
Essa descoberta, que permite reinterpretar todo um período histórico, não é minha. Encontra-se num trabalho essencial, de pós-doutorado, do professor Fernando Teixeira da Silva que, infelizmente, não se encontra disponível em livro. O professor mostra que nos anos anteriores ao golpe ocorre uma evolução na postura da justiça do trabalho, onde surge uma constante de resultados favoráveis aos trabalhadores. Essa era a grande mudança. Não era radicalização. O que havia era a ampliação de direitos, como hoje. Falava em radicalização quem queria mudar a situação e dar o golpe.
No livro Visões da Liberdade, você critica estudiosos que não reconhecem o papel do escravo na luta pela liberdade. Um dos criticados é Fernando Henrique Cardoso que, nos tempos acadêmicos, fez pesquisas sobre a abolição da escravatura, em especial nos estados do sul do país.
No momento em que publicou seus trabalhos, Fernando Henrique e outros intelectuais de sua geração ajudaram a questionar a noção oficial da época, que dizia que vivíamos sob uma democracia racial. Foi uma contribuição importante, que deve ser reconhecida, e que teve início com os trabalhos de seu professor, Florestan Fernandes. Muitos anos antes destas pesquisas, outros intelectuais, também importantes, trilharam pelo mesmo caminho. O próprio (Joaquim) Nabuco dizia que a elite do país, branca, tinha a responsabilidade de terminar a escravidão, para não correr o risco de que os próprios escravos o fizessem.
Qual era o risco de que eles falavam?
Eles temiam que seu modo de vida - que consideravam tão próximo da belle epoque europeia - fosse ameaçado pelo avanço de direitos. Contra a rebelião dos escravos, queriam uma rebelião senhorial.
Você acredita que a postura política de Fernando Henrique em relação aos governos Lula-Dilma reproduz aquilo que escreveu sobre os escravos?
A postura dele revelava uma dificuldade essencial para aceitar a figura do trabalhador - escravo ou não - como sujeito político coletivo, capaz de atuar por seus direitos. Acreditava que a violência do cativeiro fora capaz de reduzir o escravo a uma coisa, incapaz de consciência e vontade. Vejo essa semelhança.
Como você enxerga o apoio dele ao golpe de abril-maio?
Eu acho lamentável que, neste momento, o Fernando Henrique esteja negando sua própria história e tenha preferido jogar fora uma herança importante. Não vamos esquecer, por exemplo, que seu governo foi o primeiro a assinar políticas de ação afirmativa. Posso até entender que deve ser muito difícil sofrer quatro derrotas seguidas em eleições presidenciais. Deve ser duro. Mesmo assim, não consigo entender uma guinada tão radical, de quem faz uma aposta aventureira. Mesmo admitindo que não deveria esperar grandes coisas, confesso que estou decepcionado.
Você fez um artigo onde comparava o juiz Sérgio Moro a Simão Bacamarte. Para quem não lembra, Bacamarte é um personagem de um conto de Machado de Assis que, deslumbrado com as novidades da psiquiatria europeia, acaba internando uma cidade inteira num hospício. No final, ele mesmo vai morar na instituição. O que há em comum entre os personagens?
No conto, Machado de Assis discute o espírito missionário, de salvação nacional, que surge com frequência na história do país. Naquela época de grandes epidemias e primeiros sinais de colapso das grandes cidades, eles se concentravam nos médicos e nos engenheiros. Eles poderiam impedir nossas doenças e tornar nossas cidades habitáveis. Não fariam isso através da política, mas através da técnica, de um conhecimento supostamente científico, fora do alcance do cidadão comum. A utilidade do pensamento de Machado, um observador político muito mais atento do que se costuma reconhecer, é mostrar que esse tipo de visão pode até trazer benefícios reais, mas abre caminho para todo tipo de abuso e atos arbitrários.
Em tempos recentes, quais antecedentes podem ser lembrados?
No final da ditadura militar, a crise econômica transformou os ministros da Fazenda em personagens sagrados. Eram tratados como divindades, por uma população convencida de que sofria do "vírus da cultura inflacionária" que só os economistas sabiam como curar. Perdemos a conta de quantos pacotes foram baixados sem consulta popular, todos fracassados. Chegamos a aceitar o confisco da poupança dos brasileiros, a permitir que os depósitos bancários fossem travados. Só quando a política ocupou seu lugar é que as questões reais puderam ser encaradas e até certo ponto resolvidas.
Hoje o Judiciário tem hoje um poder imenso, sem paralelo. A tese é que "tudo é corrupção e todos são corruptos." A partir daí, cria-se o arbítrio, que é o caminho para a seletividade, para o uso político da Justiça. Nós temos vazamentos preocupantes, há bastante tempo. Dias antes da eleição presidencial de 2014, saiu aquela reportagem dizendo que Lula e Dilma "sabiam" dos esquemas de corrupção. Como é que isso nunca foi investigado? Nossos juízes agora falam muito, sobre qualquer assunto. Deveriam ser investigados, precisam dar explicações. Precisamos voltar ao país onde os juízes falam pelos autos.
Nesse ambiente, como você encara o afastamento da Dilma?
Quem estuda a vida cotidiana dos trabalhadores e das pessoas pobres sabe que vivemos num país onde vigoram regras que a qualquer momento podem jogar um cidadão na ilegalidade. Todo mundo conhece a história do sujeito que mora há 20 anos num lote de terra até que um dia aparece um sujeito com documentos que dizem que é o legítimo proprietário e deve ir embora em uma semana. Temos comunidades inteiras, no país inteiro, que sobrevivem nessa situação, de risco constante de serem colocados em situação ilegal. Não somos um país de corruptos nem de deliquentes. Nosso sistema legal tem regras múltiplas, contraditórias e incoerentes.
Nesse ambiente, como você encara o afastamento da Dilma?
Quem estuda a vida cotidiana dos trabalhadores e das pessoas pobres sabe que vivemos num país onde vigoram regras que a qualquer momento podem jogar um cidadão na ilegalidade. Todo mundo conhece a história do sujeito que mora há 20 anos num lote de terra até que um dia aparece um sujeito com documentos que dizem que é o legítimo proprietário e deve ir embora em uma semana. Temos comunidades inteiras, no país inteiro, que sobrevivem nessa situação, de risco constante de serem colocados em situação ilegal. Não somos um país de corruptos nem de deliquentes. Nosso sistema legal tem regras múltiplas, contraditórias e incoerentes.
Essa situação cria um espaço infinito para se agir arbitrariamente, porque a cada dia você pode mudar a interpretação de determinada lei, de uma regra. E aí chegamos ao impeachment, com base nas chamadas pedaladas fiscais. Sempre foram aceitas e são utilizadas. Não há motivo para uma autoridade supor que aquilo que podia ser feito há um ano não possa ser repetido agora - a menos que tenha ocorrido uma mudança na legislação em vigor. Não. Basta mudar a interpretação da mesma lei, por um órgão que é tem uma função de assessorar o Congresso, pelo Tribunal da Contas da União, para você ter base para uma condenação. É um absurdo.
É possível antecipar o resultado dos trabalhos da comissão que virá ao Brasil?
Não. Tenho minhas opiniões, que não escondo de ninguém. Mas tenho o compromisso de fazer um trabalho sério, acadêmico, sem ideias preconcebidas. Isso quer dizer que ao longo das pesquisas e depoimentos posso conhecer argumentos novos e mudar de opinião. Não conheço pessoalmente nenhum dos demais integrantes da comissão, o que é até um bom sinal. Mas tenho certeza de que todos têm esse compromisso.
É possível antecipar o resultado dos trabalhos da comissão que virá ao Brasil?
Não. Tenho minhas opiniões, que não escondo de ninguém. Mas tenho o compromisso de fazer um trabalho sério, acadêmico, sem ideias preconcebidas. Isso quer dizer que ao longo das pesquisas e depoimentos posso conhecer argumentos novos e mudar de opinião. Não conheço pessoalmente nenhum dos demais integrantes da comissão, o que é até um bom sinal. Mas tenho certeza de que todos têm esse compromisso.
0 comentários:
Postar um comentário