segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A EBC e a democratização da mídia

Por Akemi Nitahara, no jornal Brasil de Fato:

Com a mesma rapidez de quando assumiu provisoriamente o governo, o agora efetivado presidente Michel Temer investe novamente contra a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Dessa vez, ferindo de morte o projeto de comunicação pública do país com a edição da Medida Provisória 744*, publicada no dia 2 de setembro e assinada pelo presidente em exercício na ocasião, Rodrigo Maia. A MP saiu apenas dois dias após a efetivação do impeachment que afastou em definitivo Dilma Roussef da presidência da república.

Ainda em construção, a comunicação pública cumpre uma cláusula constitucional. A EBC foi criada para tirar do papel o artigo 223 da Constituição Federal, que em seu caput determina: "Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”. O projeto surgiu de uma luta de quase duas décadas pela democratização e regulamentação da mídia, encampada por entidades como FNDC, CUT, Arpub, Amarc, Abepec e Intervozes.

A EBC agrega a TV Brasil, as rádios Nacional e MEC no Rio de Janeiro, em Brasília e na Amazônia, a Agência Brasil e a Radioagência Nacional. Todos veículos públicos de comunicação, que dão espaço para o que não é de interesse da mídia comercial, como programação infantil, educativa, cinema nacional e música clássica. É a única que chega onde ninguém mais tem interesse em chegar, como a população ribeirinha e da fronteira da Floresta Amazônica. As agências fornecem conteúdo gratuito e com credibilidade para milhares de rádios, jornais e portais Brasil adentro, que não têm outra forma de bem informar seus públicos.

Ao retirar da lei 11.652/2008, que institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública e cria a EBC, todos os artigos que garantem autonomia em relação ao governo e participação social na empresa, a Medida Provisória 744 torna a EBC uma estatal vinculada, inclusive editorialmente, à Casa Civil. Não mais à Secretaria de Comunicação do Planalto, como era. Isso retira o caráter público da empresa e faz o país retroceder décadas na liberdade de expressão e democratização da mídia. Também foi publicado o Decreto 8.846*, que altera o Estatuto Social da empresa, corroborando com a perda de autonomia.

Conselho Curador

O Conselho Curador representa a sociedade dentro da EBC e tem como função zelar pelos princípios e pela autonomia da empresa, impedindo a ingerência do Governo e do mercado sobre a programação e gestão da comunicação pública. O colegiado defende as demandas da sociedade, em sua diversidade, na aprovação das diretrizes de conteúdo e do plano de trabalho.

O Conselho, dissolvido pela MP 744, vinha cumprindo seu papel e estava, inclusive, com uma consulta pública aberta para a renovação de cinco de seus 15 membros representantes da sociedade civil. O processo é aberto a todas as entidades interessadas em fazer indicações, sem restrições ideológicas. Mas, conforme previa a lei, vetadas a partidos políticos e entidades religiosas.

As cobranças sobre a direção da empresa para o cumprimento dos preceitos públicos da comunicação, e mesmo de ministros da Secom, eram constantes. As reuniões eram abertas, com transmissão pela internet e os documentos estão disponíveis na web**, como vídeos, atas, notas taquigráficas e também as diversas resoluções aprovadas pelos conselheiros.

Entre as resoluções, estão a que exige medidas para evitar a propaganda político-partidária nos programas religiosos, advertência sobre mudança na grade de forma abrupta, a que exige a diferenciação entre os serviços prestados ao governo federal por meio da TV NBR e do programa de rádio A Voz do Brasil e os veículos públicos da empresa e a que obrigava a empresa a tomar providências para evitar o partidarismo dentro dos veículos e garantir a pluralidade e interesse de fato público nos conteúdos veiculados.

O Conselho também atuou para a implantação da faixa da diversidade religiosa, para a efetivação do Comitê Editorial da Empresa, para a elaboração dos planos editoriais dos veículos e do Manual de Jornalismo da EBC, que preza pelo respeito à diversidade e aos direitos humanos. Apesar de não tratar de questões trabalhistas, o Conselho Curador apoiou os funcionários da EBC em demandas como a ocupação de cargos de chefia por trabalhadores da casa e a implantação de Processos de Seleção Interna (PSIs) para a ocupação desses cargos.

Com o fim do conselho, os interesses da sociedade ficam de fora de qualquer órgão de controle da EBC. No colegiado dissolvido havia representação dos movimentos indígenas, negros, de mulheres, do campo, artistas, da área do trabalho, pesquisadores e também uma funcionária da empresa. Entre as entidades atuantes no Conselho estão a Fórum Social Mundial, Rede Mulher e Mídia, Jovens Comunicadores e Mídia Periférica, Centro de Referência do Interesse Público, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira, União Brasileira de Escritores, Coordenação dos Movimentos Sociais e Núcleo de Estudos Sobre Mídia e Política. Agora, todos esses segmentos ficaram sem voz para lutar por visibilidade e direitos dentro da EBC.

Interessante ressaltar que, com o fim da comunicação pública, o Brasil se distancia de países com democracia consolidada, como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Japão, que têm leis fortes de regulamentação da mídia, que proíbem oligopólios e propriedades cruzadas e se orgulham de seus sistemas públicos.

Orçamento

Outro ponto que precisa ser esclarecido é em relação à fonte de recursos da EBC. Junto com a empresa, a lei, em seu artigo 32, criou a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), que é paga pelas empresas de telecomunicações. As teles, no entanto, têm questionado a contribuição judicialmente e pago em juízo, montante esse que já chega a R$ 2 bilhões, conforme artigo do então presidente Ricardo Melo*.

Outra parte foi liberada dessa disputa judicial e poderia ser usada pela EBC, valor que passa de R$ 800 milhões. Mas o dinheiro precisa ser liberado pelo governo para chegar à empresa, o que não tem acontecido. Com isso, o dinheiro da EBC está sendo usado para engrossar o superávit primário.

Além de contratos de conteúdo suspensos por causa do aperto orçamentário, serviços essenciais terceirizados estão sendo prejudicados. A sede na EBC do Rio de Janeiro, por exemplo, está à beira de um colapso, perto de ter os serviços de limpeza e transportes suspensos por falta de pagamento, segundo a comissão e o sindicato dos trabalhadores.

Mesmo destituídos de seus mandatos, os conselheiros da EBC continuam de prontidão na defesa da comunicação pública. Porque eles o fazem por um ideal de democracia, não por vaidade ou interesse pessoal.

* Akemi Nitahara, jornalista da EBC e representante dos funcionários no Conselho Curador da empresa.

Notas

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Mpv/mpv744.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11652.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8846.htm

http://www.ebc.com.br/institucional/conselho-curador/documentos

http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/08/1807921-a-verdade-sobre-a-ebc.shtml

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