Sem fazer muito esforço de raciocínio, não é difícil entender a pressa do governo Temer em aprovar uma emenda constitucional que limita o corte de gastos até 2037 - quando nenhum dos protagonistas da política e da economia do Brasil de hoje estará em atividade. (Muitos comentaristas também estarão aposentados, pelo mercado de trabalho e muito provavelmente pela realidade biológica).
A pressa é compreensível. Os argumentos de Henrique Meirelles e seus auxiliares para impor uma ditadura fiscal de duas décadas envolvem uma análise grosseira da economia do país, um diagnóstico furado de nossos problemas reais e a ausência de um horizonte realista para o progresso de um país com 200 milhões de habitantes, com renda média e mal distribuída. As razões para afogar a discussão são três, essencialmente:
1 - A primeira razão é elementar. Quanto mais se debate a ideia, mais se percebe sua incapacidade para gerar respostas teóricas e políticas num país que necessita crescer, criar empregos e gerar riqueza para uma população que passa a existência na corda bamba entre períodos de prosperidade - como ocorreu na década e meia recente - e o desalento absoluto. Implantado em anos relativamente recentes, o limite de gastos é uma camisa de força para a União Europeia e mesmo para os Estados Unidos. Imagine no Brasil, onde os investimentos públicos desempenham - por vias diversas, camufladas ou não - um papel essencial no apoio ao crescimento.
2 - O desânimo diante da proposta já inspirou o nascimento daquela escola de pensamento que aceita limite de gastos como tese abstrata, mas rejeita sua formulação concreta. É o caso do professor Bresser Pereira. Desenvolvimentista assumido, democrata corajoso - foi uma das primeiras vozes a denunciar o golpe contra Dilma - Bresser entrou na discussão com uma ideia própria. Afirma que apoia o controle de gastos com uma condição: quer incluir o gasto com juros, que hoje consome a fatia mais generosa - e intocável - dos gastos públicos. Quem acompanha a atuação política de Bresser, reconhece, aí, um exemplo de sua inteligência construtiva. É como se dissesse: está bem, no mundo atual não temos força para fazer tudo o que queremos. Então vamos limitar os investimentos públicos -- mas não vamos deixar o Estado financiar o capitalismo parasitário dos bancos e do rentismo. Se vamos punir o capital produtivo, que se puna, também, o financeiro.
Quando era ministro da Fazenda no governo José Sarney, Bresser formulou uma proposta originalíssima para o pagamento da dívida externa dos países quebrados pelo FMI e pelos mercados, entre eles o Brasil. O plano foi ridicularizado pelos aliados locais do império financeiro. Um pouco depois, o próprio governo norte-americano assumiu a parcela essencial do projeto de Bresser e lançou o Plano Brady, que assegurou algum oxigênio a economia mundial - e dos países sul-americanos, também. Num país sob a ditadura do pensamento único, a dissidência de Bresser permite um debate arejado sobre o papel dos juros nas distorções de fundo de nossa economia. Mas não é só.
3 - Quem se der ao trabalho de ler o artigo "Por um novo regime fiscal", de Felipe Rezende, (Valor Econômico ,15/9/2016, página A 11) irá encontrar uma argumentação demolidora contra a PEC 241/16. Professor assistente de Economia em Genebra, a base técnica de Rezende é irrespondível.
Para começar, ele vai direto ao ponto - o volume da dívida bruta em relação ao PIB. Mostra que se os números de 2016 são altos - a proporção é de 69,5% do PIB - ainda são bastante confortáveis quando se compara com 2002, quando representavam nada menos do que 76% da riqueza bruta do país e ninguém achou necessário falar numa ditadura fiscal prolongada.
Sem fazer associações políticas com os governos de plantão em cada época, que seriam inteiramente desfavoráveis à gestão de FHC, Rezende discute o que interessa hoje, que é a tentativa de criar uma situação de alarme apocalíptico. Fala de "críticos (que) pregam de forma genérica e arbitrária que a elevação recente da dívida pública levaria ao calote ou a uma aceleração inflacionária."
Nada disso, explica o professor, que faz uma lição de casa indispensável. Estudando a origem do aumento da divida, demonstra que o plano Meirelles tem como base uma confusão imperdoável entre economia real e contabilidade formal. Lembra que a dívida cresceu num período em que a transferência de títulos públicos para bancos federais atingiu 9,3% no mesmo período, uma operação de impacto real nulo sobre as obrigações do governo. Foi uma troca de papéis e não uma transferência de riqueza. Explica: "embora contabilmente essas operações tenham ampliado a dívida bruta, o impacto na dívida líquida foi neutro - já que esta subtrai os ativos financeiros das obrigações do governo." A conclusão do professor merece manchetes garrafais:
- Assim, escreve, a dívida líquida do setor público permanece nos menores níveis históricos. Por exemplo: em julho de 2016 era de 42,4% do PIB, enquanto em janeiro de 2002 correspondia a 52,3% do PIB.
É isso aí, meus amigos. Os anos de gastança de Lula e Dilma, que produziram a mais ampla distribuição de renda da história recente de nosso capitalismo, foram mais austeros do que o período FHC.
Depondo no Senado em defesa da gestão financeira do governo Dilma, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo disse que quem criticava a presidente por ter realizado uma gestão temerária das finanças públicas não sabia do que estava falando. "Em minha opinião ela errou por ter sido responsável demais", disse Belluzzo.
Os números de Felipe Rezende lhe dão razão. Se é tarde para reverter a deposição criminosa de uma presidente, ajudam a entender a necessidade de rejeitar um programa de impor uma recessão de 20 anos ao país.
0 comentários:
Postar um comentário