quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Carmen Lúcia e a remilitarização do país

Por Luis Nassif, no Jornal GGN:

Há tempos venho juntando um conjunto de indícios que apontam para um aumento da interferência militar nas políticas internas do país. O ápice foi a atitude da nova presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Carmen Lúcia, de convocar as Forças Armadas (FFAAs) para discutir segurança interna.

A respeito do “Xadrez das Vivandeiras dos Quarteis” (http://migre.me/vgKxM), recebo o seguinte e-mail do jornalista O, que recebeu de L., brasileiro que mora na Argentina. Ambos pediram sigilo de fonte.


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De L. para O.

Prezado amigo,

li o artigo de hoje do Nassif sobre a aproximação perigosa do governo golpista com os militares. Por uma feliz coincidência, o Página 12 publicou hoje uma matéria intitulada “Jugar con el fuego” na qual faz um resumo de um painel ocorrido recentemente aqui em Buenos Aires.

O evento reuniu acadêmicos e jornalistas para apresentar o documento “La riesgosa política del gobierno para las Fuerzas Armadas”.

O texto foi publicado pelo Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), conhecida organização de direitos humanos aqui na Argentina, e trata, adivinha do quê?, de um paulada na clara intenção do governo Macri de acabar com a saudável e histórica distinção entre Defesa e Segurança Interna.

Os argentinos conhecem bem a merda que é, para o conjunto da sociedade, colocar as Forças Armadas para fazer papel de polícia. Com a redemocratização, eles conseguiram separar bem os papéis institucionais dos militares e da polícia, estabelecendo claramente, do ponto de vista legal e administrativo, os limites das Forças Armadas.

Agora, estão muito receosos das intenções do governo Macri de acabar com essa conquista histórica. E, claro, com o que isso pode representar: uma porta escancarada para a repressão política, para a violação dos direitos individuais, sobretudo das populações menos favorecidas.

Veja você que, por razões semelhantes, o que se vive aqui na Argentina é parecido como que está ocorrendo no Brasil. A diferença é que aqui há mais vozes que gritam.

No Brasil, há pouquíssimas. Nassif é um dos únicos a chamar a atenção para isso. De modo que te envio abaixo os links para a matéria e para o documento do CELS. Acho que o Nassif vai adorar receber os dois.


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Vamos a um breve apanhado do que ocorre na Argentina, para avaliar melhor o papel da Ministra Carmen Lúcia.

A reportagem do Página 12 é sobre encontro realizado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) sobre o tema. No encerramento do painel, Horácio Verbitsky, presidente do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS) denunciou documento do governo Macri, procurando militarizar a polícia de segurança. Os demais especialistas presentes alertaram para o “enfraquecimento do princípio da demarcação entre os conceitos de segurança e defesa”.

Os argumentos invocados por Macri para envolver as Forças Armadas nas questões internas foram o da prevenção do terrorismo e do tráfico de drogas e a contenção da agitação social e dos protestos.

Vamos ver como fica o nosso Xadrez com essas novas movimentações.

Peça 1 – a desmilitarização na Argentina

A Argentina foi vítima de uma ditadura militar trágica, que deixou milhares de vítimas e protagonizou a guerra das Malvinas e a derrota ampla para a Inglaterra.

De lá para cá, houve um gradativo processo de reinstitucionalização das Forças Armadas promovido desde 1983 pelo presidente Raul Alfonsin.

O principal ponto acertado foi o da clara demarcação entre os conceitos de segurança e de defesa. Segurança é trabalho para a polícia; defesa, para as Forças Armadas. Segurança trata de crimes; defesa trata de inimigos externos.

A estratégia argentina consistiu, de um lado, na subordinação constitucional dos militares ao poder civil. Foram punidos os crimes contra a humanidade ocorridos na ditadura e desmilitarizados todos os cargos do Ministério da Defesa.

Peça 2 – porque não envolver FFAA com repressão interna

O trabalho apresentado no seminário lista inúmeros argumentos para não se envolver as FFAAs com repressão interna.

A primeira razão é que as Forças Armadas atuam dentro do conceito de guerra, na qual a lógica é do extermínio do inimigo. Os militares não estão treinados para o uso gradual das forças, o que explica que suas intervenções sempre têm nível maior de letalidade.

A formação do militar é mais demorada que a do policial. Por isso mesmo, não se resolve a adaptação com re-treinamento ou com mudança de equipamentos, diz o estudo.

Em 2006, o governo do México envolveu as Forcas Armadas na luta contra o crime organizado. Segundo informe de janeiro de 2013 da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), as denúncias por torturas, assassinatos e desaparecimento de presos aumentaram em 1.000% no período de seis anos. E não houve nenhuma redução no tráfico.

O mesmo ocorreu na Colômbia, com seguidas denúncias de violação de direitos humanos, chegando à prática de assassinatos como indicador de eficácia.

Em vários países, as próprias Forças Armadas se deram conta dos riscos de entrarem na luta contra o narcotráfico.

Os riscos para as Forças Armadas estão no envolvimento de oficiais e soldados com a corrupção. No México, as Forças Armadas foram infiltradas por redes criminosas que acabaram controlando boa parte de sua estrutura e adotando suas técnicas nas disputas com outras quadrilhas. O mesmo ocorreu na Colômbia, com integrantes das Forças Armadas envolvidas em redes de narcotráficos e de armamentos.

Peça 3 – o Comando Sul e a luta contra o narcoterrorismo

No seminário foram levantados um acerto e um erro da política argentina pós-ditadura. O acerto foi a subordinação dos militares às lideranças políticas, inclusive com a punição dos que foram responsáveis por crimes contra a humanidade.

O erro foi não ter reconhecido a fundo o novo papel das forças armadas como última linha de defesa nacional contra a agressão externa.

Ao permitir o financiamento externo através do Comando Sul - uma tropa multinacional coordenada pelo Departamento de Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas -, mas na prática comandada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos (http://migre.me/vgGi3 ehttp://migre.me/vgGiD).

Originalmente, o Comando Sul foi criado para combater o narcotráfico. Mas, segundo denunciou Horácio Verbitsky, já incluiu catástrofes naturais e indigenismo como temas de preocupação. (http://migre.me/vgVn5).

Sediado em Miami, Flórida, o Comando Sul dos Estados Unidos é uma organização militar regional unificada, ligada ao Departamento de Defesa dos EUA. Seu papel é o de organizar a cooperação com forças de segurança da América do Sul, Central e Caribe, somando mais de 30 países da região. É comandado por um general 4 estrelas e organizado em diretorias, comandos e forças tarefas militares.

Em 2011, em entrevista à Folha (http://migre.me/vgGGh), o ex-embaixador do Brasil nos EUA no governo FHC, Rubens Barbosa, já denunciava as interferências indevidas do Comando Sul nos assuntos internos dos países. Acusava-o de alimentar a imprensa com boatos sobre terrorismo na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), afim de valorizar sua atuação. Sediado em Miami, o comando treinava militares paraguaios, acenando com a ameaça dos “brasiguaios”.

O chefe da Força, general James Hill, equiparava as drogas a armas de destruição em massa e defendia o fim das restrições legais à interferiria dos militares em assuntos internos.

Na Argentina, diz o trabalho, nenhum estudo sério comprovou que o narcotráfico é o maior problema para a segurança interna. Mas é o álibi para a ampliação das intervenções das Forças Armadas e da militarização da estratégia de intervenção policial.

Nenhuma coincidência, portanto, nas atuações recentes do Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, montando um carnaval em torno da suposta rede terrorista brasileira, e da nova presidente do STF, Carmen Lúcia, convocando as FFAAs para discutir a segurança interna.

Continuando nesse ritmo, em breve será uma ameaça à democracia brasileira maior que o próprio Gilmar Mendes. Gilmar é partidário, vale-se de todos os instrumentos legais em defesa dos seus, mas tem conhecimento suficiente sobre os riscos do excesso de poder de corporações do Estado, do MInistério Público Federal às Forças Armadas. Carmen Lúcia parece ser uma completa sem-noção.

Aliás, o assessor de imprensa de Alexandre Moraes é um militar. E o chefe de gabinete do MInistro-Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, é um general.

Peça 4 – os sinais da militarização na Argentina

A lógica da Argentina de Macri é similar àquela desenhada nas primeiras medidas do Brasil de Michel Temer. Trata-se de envolver as Forças Armadas nas disputas internas, a pretexto de combater o narcotráfico, o terrorismo e as agitações populares. Dali para a repressão política seria um pulo.

O seminário anotou os seguintes indícios:

· Em 19 de janeiro de 2016, através do Decreto 228/16, o governo declarou estado de emergência na segurança pública. Definiu um protocolo permitindo às Forças Armadas derrubarem aeronaves “hostis”, algo não previsto em nenhuma norma de direito internacional. E abriu a possibilidade de enfrentar “novas ameaças”, caminho aberto para que seja envolvida no combate ao narcotráfico. O governo Temer vem ensaiando medidas nessa direção, agora com o apoio de Carmen Lúcia.

· Operação Fronteira, através do decreto 152/16, permitindo recursos militares tecnológicos e humanos para a Operação Escudo Norte, que atua nas fronteiras. No Sistema de Defesa Nacional não há nenhum tipo de atividade de fronteira que se enquadre em ameaça à integridade nacional. O novo Plano Nacional de Segurança, semi-divulgado por Alexandre de Moraes avança nessa direção.

· Instruções ao Ministério da Defesa para recolher informações sobre narcotráfico e terrorismo nos seus países de origem. No Brasil, o GSI (Gabinete de Segurança Institucional), ligado à presidência da República já articular os serviços de informações das Forças Armadas no monitoramento de movimentos sociais.

· Designação de militares como funcionários do Ministério de Defesa. Desde Raul Alfonsin vinha-se desmilitarizando cada vez mais os cargos no Ministério da Defesa, entregando-os a civis. Nos últimos meses os militares voltaram a ocupar o Ministério da Defesa. No Brasil, esse movimento foi iniciado por Aldo Rebelo, ainda como Ministro da Defesa do governo Dilma Rousseff. E está sendo radicalmente ampliado pelo novo Ministro, Raul Jungman.

Peça 5 – a caixa de Pandora da remilitarização

A ideia básica desse modelo é ajudar a fortalecer governos de direita, contra movimentos populares e partidos de esquerda. Imagina-se que conferindo uma missão específica às Forças Armadas – a luta contra o narcotráfico e os “subversivos” – ela vá se ater a esses campos, sendo comandada por políticos para lá de suspeitos.

Com a desmoralização crescente do poder civil, o resultado óbvio será o de, em algum ponto do futuro, as FFAAs abolirem os intermediários.

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