Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
A mais perigosa face de um golpe é ambiguidade. Ao mesmo tempo em que as forças populares se organizam para o combate ao regime de exceção, que se articula a defesa de direitos ameaçados e que se estabelecem frentes ampliadas de lutas, o baile da reação segue seus passos como se nada estivesse ocorrendo. Se as grandes disputas que hoje se apresentam no horizonte da justiça social e da democracia brasileira se orientam para as reformas trabalhista e da previdência, nem por isso se aquieta a pauta da contrarrevolução brasileira. A direita dorme com um olho bem aberto.
A cada dia, em votações no Senado e na Câmara, vai se sedimentando o projeto regressivo e conservador que inspira o golpe. Como quem paga faturas no prazo devido, o Congresso vai, ponto a ponto, desmanchando o edifício social construído durante décadas de luta pelo povo brasileiro. Na mesma levada, além de desconstruir o Estado que surgiu com a Constituição de 1988, cria condições para a retomada de ganhos do sistema financeiro, destrói a indústria nacional, criminaliza os movimentos populares e promove leilões que levam à xepa a soberania nacional em áreas estratégicas.
Amparados inicialmente pela imprensa e seus articulistas orgânicos – pontas de lança de um setor que vem recebendo sua paga na forma de generosas campanhas de publicidade a favor das reformas antipopulares e entreguistas – os projetos do governo não eleito agora passam a integrar a pauta convencional de um parlamento confiável. Confiável e venal. Confiável porque venal. É nessa mudança de patamar que reside a ambiguidade do golpe. Se no primeiro momento a disputa era ideológica, agora é apenas questão de procedimentos. Há uma legitimidade que brota da ilegitimidade.
Ataques à EBC e ao ensino médio
Duas medidas provisórias aprovadas nos últimos dias no Senado mostram que a brasa da disputa travada na sociedade precisa ser reavivada com o sopro da resistência. A primeira delas foi a reestruturação da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que passou fácil pela votação de 47 a 13, indo para sanção do presidente não eleito. Pela MP, a empresa, na prática, deixa de ter caráter público e ganha carimbo estatal. A nova engenharia institucional é uma fachada para a inspiração chapa-branca projetada para a EBC.
O Conselho Curador, que era majoritariamente composto por integrantes da sociedade civil, foi extinto. Em seu lugar foi criado um anódino Conselho Editorial e de Programação, submetido às decisões da diretoria. No comando da EBC, passa a mandar um presidente escolhido pela Casa Civil e referendado pelo Senado, que pode ser afastado a cada piti do presidente ou de seus aliados que não se considerarem bem na fita. Em vez da independência do mandato do presidente da empresa, que até então não poderia coincidir com o do chefe do executivo, a caneta vai para a mão de um sabujo, destes que habitam hoje as redações e assessorias mais cotadas. A pena que escreve é a mesma que censura.
Outra MP, votada pelo Senado apenas um dia depois, com resultado de 43 a 13 e também encaminhada para sanção, aprova a reforma do ensino médio. Em linhas gerais, o projeto foi ligeiramente modificado em sua inspiração original. Se por um lado recuperou os conteúdos de áreas como filosofia, sociologia e artes, nem por isso garantiu que as disciplinas sejam oferecidas em todas as escolas. Alvo de protestos de estudantes e educadores, a reforma chegou empacotada, sem discussão e sem sensibilidade para as características do setor, inclusive em sua especificidade regional.
Com pouco tempo de discussão, a MP anuncia com uma mão a autonomia para os estudantes decidirem seus destinos, ao mesmo tempo em que se integra no bojo do austericídido que congela recursos para políticas públicas e sociais, inclusive educação. Sem explicitar uma política de investimentos, abre flanco para uma diferenciação inevitável entre setor público e privado, deixando ainda uma porta para o modelo de profissionalização com nítido viés de classe. Se a educação tem sido a bandeira sempre vicária da meritocracia, a reforma aprovada pelo Senado escancara as desigualdades.
Tanto na comunicação pública como na educação, as duas MPs vencem a primeira etapa no processo espúrio de legitimação. Foram paridas por um governo golpista, a soldo dos interesses de dois setores parceiros de primeira hora. A resistência que marcou todo o processo, tanto dos defensores da comunicação pública como da educação plural – com destaque para a heroica resistência dos estudantes em ocupações cidadãs em todo o país – não pode ser dada como vencida.
Ao mesmo tempo em que a sociedade se mobiliza para defender os direitos trabalhistas e previdenciários, é preciso retomar a disputa em outras frentes. A leniência do Congresso frente às demandas do governo não eleito não garante nada além da mancha de vergonha na história dos conspiradores. A batalha começou nas ruas. E não pode sair delas tão cedo. Nenhum direito a menos. Não se podem respeitar decisões paridas no ventre da usurpação.
A mais perigosa face de um golpe é ambiguidade. Ao mesmo tempo em que as forças populares se organizam para o combate ao regime de exceção, que se articula a defesa de direitos ameaçados e que se estabelecem frentes ampliadas de lutas, o baile da reação segue seus passos como se nada estivesse ocorrendo. Se as grandes disputas que hoje se apresentam no horizonte da justiça social e da democracia brasileira se orientam para as reformas trabalhista e da previdência, nem por isso se aquieta a pauta da contrarrevolução brasileira. A direita dorme com um olho bem aberto.
A cada dia, em votações no Senado e na Câmara, vai se sedimentando o projeto regressivo e conservador que inspira o golpe. Como quem paga faturas no prazo devido, o Congresso vai, ponto a ponto, desmanchando o edifício social construído durante décadas de luta pelo povo brasileiro. Na mesma levada, além de desconstruir o Estado que surgiu com a Constituição de 1988, cria condições para a retomada de ganhos do sistema financeiro, destrói a indústria nacional, criminaliza os movimentos populares e promove leilões que levam à xepa a soberania nacional em áreas estratégicas.
Amparados inicialmente pela imprensa e seus articulistas orgânicos – pontas de lança de um setor que vem recebendo sua paga na forma de generosas campanhas de publicidade a favor das reformas antipopulares e entreguistas – os projetos do governo não eleito agora passam a integrar a pauta convencional de um parlamento confiável. Confiável e venal. Confiável porque venal. É nessa mudança de patamar que reside a ambiguidade do golpe. Se no primeiro momento a disputa era ideológica, agora é apenas questão de procedimentos. Há uma legitimidade que brota da ilegitimidade.
Ataques à EBC e ao ensino médio
Duas medidas provisórias aprovadas nos últimos dias no Senado mostram que a brasa da disputa travada na sociedade precisa ser reavivada com o sopro da resistência. A primeira delas foi a reestruturação da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que passou fácil pela votação de 47 a 13, indo para sanção do presidente não eleito. Pela MP, a empresa, na prática, deixa de ter caráter público e ganha carimbo estatal. A nova engenharia institucional é uma fachada para a inspiração chapa-branca projetada para a EBC.
O Conselho Curador, que era majoritariamente composto por integrantes da sociedade civil, foi extinto. Em seu lugar foi criado um anódino Conselho Editorial e de Programação, submetido às decisões da diretoria. No comando da EBC, passa a mandar um presidente escolhido pela Casa Civil e referendado pelo Senado, que pode ser afastado a cada piti do presidente ou de seus aliados que não se considerarem bem na fita. Em vez da independência do mandato do presidente da empresa, que até então não poderia coincidir com o do chefe do executivo, a caneta vai para a mão de um sabujo, destes que habitam hoje as redações e assessorias mais cotadas. A pena que escreve é a mesma que censura.
Outra MP, votada pelo Senado apenas um dia depois, com resultado de 43 a 13 e também encaminhada para sanção, aprova a reforma do ensino médio. Em linhas gerais, o projeto foi ligeiramente modificado em sua inspiração original. Se por um lado recuperou os conteúdos de áreas como filosofia, sociologia e artes, nem por isso garantiu que as disciplinas sejam oferecidas em todas as escolas. Alvo de protestos de estudantes e educadores, a reforma chegou empacotada, sem discussão e sem sensibilidade para as características do setor, inclusive em sua especificidade regional.
Com pouco tempo de discussão, a MP anuncia com uma mão a autonomia para os estudantes decidirem seus destinos, ao mesmo tempo em que se integra no bojo do austericídido que congela recursos para políticas públicas e sociais, inclusive educação. Sem explicitar uma política de investimentos, abre flanco para uma diferenciação inevitável entre setor público e privado, deixando ainda uma porta para o modelo de profissionalização com nítido viés de classe. Se a educação tem sido a bandeira sempre vicária da meritocracia, a reforma aprovada pelo Senado escancara as desigualdades.
Tanto na comunicação pública como na educação, as duas MPs vencem a primeira etapa no processo espúrio de legitimação. Foram paridas por um governo golpista, a soldo dos interesses de dois setores parceiros de primeira hora. A resistência que marcou todo o processo, tanto dos defensores da comunicação pública como da educação plural – com destaque para a heroica resistência dos estudantes em ocupações cidadãs em todo o país – não pode ser dada como vencida.
Ao mesmo tempo em que a sociedade se mobiliza para defender os direitos trabalhistas e previdenciários, é preciso retomar a disputa em outras frentes. A leniência do Congresso frente às demandas do governo não eleito não garante nada além da mancha de vergonha na história dos conspiradores. A batalha começou nas ruas. E não pode sair delas tão cedo. Nenhum direito a menos. Não se podem respeitar decisões paridas no ventre da usurpação.
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